Parece mentira que a obra prima de Gene Kelly e Stanley Donen completou esta semana 60 anos, tão lépida e faceira ela ainda é; mágica do cinema, que dá miraculosa juventude eterna a alguns de seus produtos. Nos três anos de blog quis muitas vezes falar desse filme ao qual já vi seguramente 60 vezes... Mas como me debruçar a contento em algo que tem pra mim tão grande valor afetivo? E o que dizer de uma obra sobre a qual tudo já se disse? O viés mais seguro para fazê-lo, penso hoje que seja o da memória. “Singin’ in the Rain” marcou-me mais que qualquer outro filme. Por mais tempo, pelo menos. Compilar minhas memórias dele talvez (me) ajude a entender porque eu o amo tanto.
“Singin’ in the Rain” foi no início projetado como mais um sucesso de box office da “unidade” de Arthur Freed na MGM. Moda na época era girar os musicais em torno do cancioneiro de compositores americanos relevantes. Desta vez escolheu-se a obra do próprio Freed e de Nacio Herb Brown, respectivamente letrista e compositor de sucessos dos talkies de Hollywood desde 1929. A música tema soou na revista cinematográfica “The Hollywood Review of 1929”, aurora do cinema falado. O sentimento infantil e festivo de se dançar debaixo de um aguaceiro foi o ponto de partida obrigatório para que Adolph Green e Betty Comden construísse o enredo. Costuram o longa outras canções da dupla Freed/Brown, compostas para filmes como “Babies in arms”, de 39 (Good Morning); “The Broadway Melody”, de 29 (“You were meant for me”, “The Broadway Melody”, “The wedding of the painted doll”); “São Francisco: cidade do pecado” (Would you) – filmes de qualidade muito variada, alguns bastante fracos (como “The Broadway Melody”, vencedor do Oscar de Melhor Filme em 29). É notável que esse material heterogêneo tivesse feito brotar flor tão bela.
Mais que beleza, o que Green e Comden conseguem é sistematizar, com artesania ímpar, a História de um filão cinematográfico de tremendo sucesso das décadas de 30-50 (o cinema musical) e de uma fase delicada do cinema mundial (a introdução do som e a reestruturação do quadro “estrelar” das grandes companhias). E isso de forma leve e bem-humorada, num produto de entretenimento plenamente apetecível à massa que ia ao cinema nos anos 50 – uma porção de pretensiosos do século XXI poderiam se aproveitar dessa lição, tornando a arte legível ao espectador contemporâneo...
Mais que beleza, o que Green e Comden conseguem é sistematizar, com artesania ímpar, a História de um filão cinematográfico de tremendo sucesso das décadas de 30-50 (o cinema musical) e de uma fase delicada do cinema mundial (a introdução do som e a reestruturação do quadro “estrelar” das grandes companhias). E isso de forma leve e bem-humorada, num produto de entretenimento plenamente apetecível à massa que ia ao cinema nos anos 50 – uma porção de pretensiosos do século XXI poderiam se aproveitar dessa lição, tornando a arte legível ao espectador contemporâneo...
“Singin’...” recua até o ano de 1927, até os momentos que antecedem e sucedem a chegada de “The Jazz Singer”, o primeiro filme da indústria a inserir de modo sistemático diálogos falados e música. Protagonizado por Al Jolson, artista de renome da Broadway daqueles tempos, o filme causou comoção, não só no público, desejoso de ouvir as vozes dos artistas, como do meio artístico, com razão temeroso de que artistas de vozes pouco atraentes perdessem espaço. Dentro deste contexto histórico recriado por Comden e Green é inserido Don Lockwood (Gene Kelly), personagem ficcional que remete a galãs como John Barrymore e Douglas Fairbanks, que incorporava nas telas o másculo protetor das fêmeas da Idade Média à Idade Contemporânea. Seu par romântico é a loura linda, instável e de voz pouco fotogênica Lina Lamont (Jean Hagen), alusão a atrizes como a norueguesa Greta Nissen, que perderam espaço na tela branca assim que Hollywood começou a falar.
O filme pinta a trajetória desse par romântico que, como tantos, foi cozinhado pelas revistas de
O filme pinta a trajetória desse par romântico que, como tantos, foi cozinhado pelas revistas de
fofocas de Hollywood. Ambos supostamente se amam. Na verdade, vivem a trocar farpas: o ator detestando a atriz; ela infantilmente acreditando nas fofocas ventiladas pela imprensa. A mulher de voz esganiçada e humor de prima-dona perde espaço para Kathy Selden (Debbie Reynolds), um dos tantos novos rostos surgidos com o som: jovem, fresca e musical. O galã mantém seu posto de macho alfa dentro e fora das telas, agora não mais como o “Cavaleiro Duelista” da fita muda sustada em plena produção, mas como o “Cavaleiro Dançante” da mais nova produção musical – gênero que ascende com a chegada do som, ironicamente atingindo naqueles anos 50 seu apogeu e seu declínio.
Se não bastasse a fidelidade com que a história dessa Era tumultuosa é contada em “Singin’ in the Rain”, o filme ainda surpreende pela genialidade com que conduz o que lhe é mais elementar: a
Se não bastasse a fidelidade com que a história dessa Era tumultuosa é contada em “Singin’ in the Rain”, o filme ainda surpreende pela genialidade com que conduz o que lhe é mais elementar: a
música e a comédia. Para ilustrá-lo, cenas pegas ao acaso bastam: A dançarina e atriz iniciante Kathy Selden (uma crua e talvez por isso mesmo eficaz Debbie Reynolds) é obrigada pelo acaso a dar carona a Don Lockwood: para resistir à investida do galanteador (o trocadilho com o nome do Don Juan não é casual), Kathy relativiza o valor artístico do trabalho dele – “Não passa de pantomima”, diz ela, diferente do teatro, arte de verdade, repleta de diálogos grandiosos. John Barrymore, irmão de carne-e-osso de Don Lockwood, possivelmente ouviu assertivas do tipo, ele que trocara os palcos onde declamara Shakespeare pelo cinema silencioso, muito mais lucrativo. Don no começo faz pouco da jovem que sonhava sucesso nos palcos: “Kathy Selden como Julieta, como Lady Macbeth, como Rei Lear (para esse papel você vai precisar usar uma barba)”. Mas no final, o desfecho cômico-patético-dramático de Don, que tem suas roupas rasgadas pelo carro de Kathy depois de lhe dizer teatralmente “I must tear myself from your side” (“Devo me apartar de você”, “tear” significando igualmente rasgar”), patenteia de modo efetivo o lugar de peça de museu que Hollywood legava aos artistas incapazes de fazerem a passagem do cinema silencioso para o sonoro.
Pérolas são todas as sequências do estúdio onde será filmado o filme-dentro-do-filme “Cavaleiro Duelista”: o plano-sequência de Don passeando pelo estúdio da fictícia “Monumental Pictures” (ironia graciosa com outros estúdios de nome hiperbólico, como a “Universal Pictures”), enquanto no segundo plano desenvolvem-se cenas que em nada se relacionam umas às outras (um ritual indígena; um ajuntamento de torcedores vestindo as cores da bandeira; uma luta em cima de uma locomotiva); as cenas do silent “Cavaleiro Duelista” propriamente ditas, por exemplo aquela em que Don executa trejeitos amorosos para a mulher fingida que era sua estrela, enquanto a boca dele lhe profere uma torrente de insultos; e depois, o mesmo estúdio aparelhado para a rodagem de filmes sonoros, com seus técnicos ainda acostumando-se com a novidade (os microfones mal posicionados que ora gravavam os batimentos cardíacos da atriz, ora deixavam de captar parte importante do que ela dizia).
Essas cenas todas encontram ressonâncias no mundo real. Hoje são notórias as brigas on screen e off screen entre artistas que o público julgava se amarem. Isso sem contar os problemas ocorridos durante a projeção, sobre os quais até revistas brasileiras debruçaram-se – a Cinearte, depois de relatar como um delay do som destruiu a atmosfera dramática de “Coquete” (1929), primeiro filme falado de Mary Pickford, questiona-se se o cinema sonoro sobreviveria. “Singin’ in the Rain” traz uma cena épica alusiva à questão, na qual a mocinha sem querer troca de voz com o vilão, transformando o drama na mais arrematada comédia e o “Cavaleiro Duelista”, num fracasso de bilheteria.
Ao tomar como objeto os bastidores de Hollywood do final de 1920, “Singin’ in the Rain” prefere a leveza ao drama. Escolhe como protagonista um astro que, como vários, fez com segurança a passagem do silencioso ao sonoro. Assim, tem a oportunidade de usar a trilha alegre e adocicada
que Freed e Brown criaram para tantos filmes em que imperava o Happy End. A minha preferida de todos os tempos, desde me conheço por cinéfila, é “Good Morning”, introduzida por Kathy Selden depois que ela propõe a Don e ao amigo comum Cosmo Brown (Donald O’Connor) transformarem o “Cavaleiro Duelista” no “Cavaleiro Dançante”. Meu lado feminista adora ver a jovenzinha com esse poder na sociedade de 1920, que começava a reconhecer os direitos da mulher; mas também meu lado crítico não deixa de perceber a ironia da situação posta em cena – caberá à nova geração a primazia nos musicais da época (tanto que é a adolescente “Judy Garland” a responsável por entoar “Good Morning” pela primeira vez em película).
Leveza que em momento algum significa fragilidade
Leveza que em momento algum significa fragilidade
de concepção. O filme tem uma porção de números musicais primorosamente coreografados: Além de “Good Morning” e da legendária “Singin’ in the Rain” destaca-se o balé da “Broadway Melody”, que no filme-dentro-do-filme sinalizaria a passagem da realidade ao sonho do protagonista, mas no filme serve de desculpa para uma das sequências mais sofisticadas da história do cinema musical: com grande corpo de baile, números de balé e sapateado, e uma longilínea Cyd Charisse dividindo com Gene uma sequência em que ela ora se faz de vamp arrasa quarteirão, ora de mocinha (prenúncio do que ela faria um ano mais tarde no número “A Murder Mistery in Jazz”, de “The Band Wagon”). Outro imperdível é “Make ’em Laugh”, que presta uma justa homenagem aos números disparatados do teatro de vaudeville, homenagem ainda mais cabível já que é dançado por Donald O’Connor, ator formado por esse teatro.
“Singin’ in the Rain” foi pouco lembrado pelo Oscar de 1953 (onde recebeu duas indicações e nenhum prêmio), talvez porque um ano antes “Sinfonia de Paris” – que também tinha o dedo de Gene – levara para casa 6 Oscars (incluindo os prêmios de Melhor Filme, Roteiro e Música). No entanto, ele teve a sorte de ter entre seus criadores o obstinado Gene Kelly, que anos depois produziria a triologia de documentários “That’s Entertainment”, hino de amor ao cinema musical que situava “Singin’ in the Rain” entre os grandes, ao lado de “Sinfonia de Paris”. Felizmente acreditaram em Gene, e agora esta e outras maravilhas do cinema musical estão em DVDs recheados de extras, prontas para deliciarem as novas gerações.
“Singin’ in the Rain” foi pouco lembrado pelo Oscar de 1953 (onde recebeu duas indicações e nenhum prêmio), talvez porque um ano antes “Sinfonia de Paris” – que também tinha o dedo de Gene – levara para casa 6 Oscars (incluindo os prêmios de Melhor Filme, Roteiro e Música). No entanto, ele teve a sorte de ter entre seus criadores o obstinado Gene Kelly, que anos depois produziria a triologia de documentários “That’s Entertainment”, hino de amor ao cinema musical que situava “Singin’ in the Rain” entre os grandes, ao lado de “Sinfonia de Paris”. Felizmente acreditaram em Gene, e agora esta e outras maravilhas do cinema musical estão em DVDs recheados de extras, prontas para deliciarem as novas gerações.