sábado, 28 de abril de 2012

Revisitando “Titanic” quinze anos depois


O aniversário de quinze anos de “Titanic” (1997), um dos maiores sucessos de bilheteria da história do cinema, foi comemorado em grande estilo, com o relançamento do filme em 3D em festa que teve novamente como protagonista Kate Winslet – a qual encetou com Leonardo Di Caprio o par romântico responsável por alvoroçar os corações das meninas dos anos 90. A má performance do longa nas salas norte-americanas e brasileiras, malgrado o investimento de dinheiro e tempo na produção da cópia em 3D (a qual teve início em 2005) deixam claro que os tempos são outros. Nem mesmo estratégias assertivas de marketing – que culminaram num lançamento no centenário do naufrágio do navio – deixaram as novas plateias curiosas para conhecerem o romance de Rose e Jack. Tampouco as antigas plateias interessadas em reverem-no e, por meio dele, redescobrirem a ingenuidade dos velhos tempos. Eu, que sou uma hopelessly old fool, não podia deixar de revê-lo – e o fiz junto da amiga com quem o vi pela primeira vez em 1997, quando tínhamos ambas 15 aninhos (e preciso dizer, Paula, como foi especial esse momento!).
“Titanic” é pra mim um desses casos de amor inexplicáveis: porque meu fascínio por ele não se deve à profundidade da história narrada, à qualidade de seus diálogos, à trilha sonora ou aos efeitos especiais – exceto pelos efeitos, trata-se, sejamos francos, de um melodrama convencional, de personagens tipificados, diálogos medianos e trilha sonora que rapidamente envelheceu (compreendo Winslet quando ela diz que “My heart will go on” a põe de estômago embrulhado – a música é mesmo de uma pieguice sem tamanho). Mas com quanto prazer não ouvíamos a canção-título, reproduzida de hora em hora nas rádios, entoada pela voz adocicada de Celine Dion e tendo vez por outra ao fundo as vozes apaixonadas do par romântico? E as filas enormes enfrentadas sempre que queríamos revê-lo, naquele tempo pré-download digital (que até a mim parece ter ocorrido na encarnação passada). E a leitura de seu roteiro baixado da internet discada; a coleção religiosa de seus posters... “Titanic” desde sempre teve para mim gosto de uma adolescência despreocupada que depois tentei fazer reviver algumas vezes, vendo-o em projeções tingidas de nostalgia. 
Mas revisitá-lo na tela grande, quinze anos depois, teve um gosto ainda mais especial. Descobri que minha geração não amou em vão. “Titanic” é um ótimo filme. A despeito da dureza com que o tratei aqui nalgum momento pregresso, caramba, “Titanic” é muito bom, mesmo... 
Sim, os personagens são quase todos planos. Mas como isso me incomodou pouco essa semana! Ao contrário: aquela sociedade de aparências da belle époque, em que o status era ostentado à flor da pele, só podia ser retratada a contento se tivesse seus achaques sublinhados, e para isso nada melhor que a tipificação. A mãe aristocrática e sem um tostão que vende a filha para um negociante endinheirado; o noivo rico, esnobe e impositivo, perfeito exemplar de macho daquela sociedade patriarcal que precisaria ainda esperar alguns anos antes de começar a ser sacudida: a aristocracia falida e o novo-rico, os dois elementos do topo da pirâmide social do alvorecer do século XX – quando status valia tanto quanto dinheiro e deviam, de preferência, andar de mãos dadas. 
A mãe e o noivo de Rose se multiplicam numa infinidade de pomposos a quem a história heroicamente nega o desejo de diferenciação. A divisão da sociedade em estamentos é potencializada, no filme, pela divisão empírica dos personagens nas três classes do navio. Mas quem ganha destaque é a terceira classe, a mais individualizada de todas; a única que tem objetivos concretos: primeiro, o sonho de ascender socialmente na “América” por meio do trabalho; depois, a luta empírica pela sobrevivência durante o naufrágio, hora em que os ocupantes da primeira classe têm primazia. 
 É a classe tratada com olhos mais carinhosos pelo diretor James Cameron: paira dela um desejo visceral de felicidade, pintado pelas festas regadas à dança e cerveja, pelas brincadeiras escatológicas e pelo riso fácil. Daí sairá o rapaz responsável por salvar a pobre menina rica das garras do status quo. Porém, Rose só merece a salvação porque já está no meio do caminho que separa os dois lugares socialmente marcados: a riqueza do passado lhe abriu as portas do conhecimento crítico que a faz questionar o mundo de aparências em que vive. No mundo criado pela película, o estudo (paradoxalmente) a prepara para ser um personagem da terceira classe, nessa leitura idílica que atribui aos pobres um conhecimento mais intenso de mundo, como se a pobreza dotasse o indivíduo de clarividência. E é também a tinta do idílio que colore o romance de Rose e Jack, reprodução do dueto romântico composto por indivíduos de diferentes classes sociais do qual os melodramaturgos vêm se servindo desde mil oitocentos e bolinha, e os cineastas na esteira deles, desde praticamente o surgimento do cinema. 
O par romântico funciona bastante bem. Embora algumas melosidades dispensáveis pontuem a história – de certa forma concorrendo para as piadinhas sobre o filme que circulam na web (O “Do you trust me?/ I trust you” repetido ad nauseam, por exemplo) – ele é composto com uma graça e leveza difícil de vermos nos blockbusters. Ponto para Kate Winslet e Leonardo Di Caprio, àquela altura dois jovens que já nos permitiam vislumbrar os excelentes atores nos quais se transformariam. Winslet, especialmente, que rouba a cena, mais pela luminosidade que ela trouxe de berço junto com o talento que pelos diálogos bobinhos que ela enceta com seu galã.
A parte que mais investimento recebeu neste filme-catástrofe obviamente que é a da catástrofe, desdobrada nos mínimos detalhes, não apenas no passo-a-passo do choque do navio no iceberg, seu paulatino afundamento e luta dos passageiros para se desvencilharem da carcaça gigante; como nos elementos melodramáticos inseridos na ação: o vilão desprezível que acusa o mocinho de roubo, prende-o, encomenda seu espancamento e torna-o e à ex-noiva alvos de um insólito tiroteio realizado no hall principal do navio semi-alagado. Mas ótima mesmo é a primeira parte, pela fotografia elegante que dá a ver toda a magnificência do navio e a riqueza de detalhes da encenação, e pela construção das personagens principais: a vivacidade de Jack na cena do jogo de pôquer e a elegância de Rose em seu embarque no Titanic, tomada num plongée que lhe revela aos poucos e começará, a partir dali, a descamar a mocinha, revelando a profundidade que subjaz à sua suposta superficialidade. 
O encontro de ambos, do choque à identidade e, finalmente, à explosão amorosa, é construído de modo verossímil e é um gosto de se ver. Algumas cenas são de grande beleza, e aqui me refiro menos à do enlaçamento dos pombinhos na proa do navio – que foi pensada como o encontro romântico por excelência mas hoje me soa algo posada – e mais à cena em que Rose posa para o jovem Jack, ou àquela em que ambos correm pela casa de máquinas do navio, a cauda esvoaçante do vestido rosado de Rose tornando-a romântica como nunca. 
Porque eram bons atores e não só "estrelas", Kate Winslet e Leonardo Di Caprio convencem como exemplares do velho e barbado casal apaixonado que aceita abdicar da vida para salvar o outro. Os primeiros planos daqueles dois rostos tão belos, planos altamente significativos, revelam o alto nível que imprimiram na composição dos personagens. Mas revelam mais. Se cada geração tem o par romântico que merece, a minha definitivamente não se saiu tão mal. Revendo Kate e Di Caprio, contemplo com imenso prazer meu rosto de menina. Realmente não amamos em vão. 

terça-feira, 17 de abril de 2012

Barbara Stanwyck, a rainha


Estou numa fase Barbara Stanwyck desde que vi aquela loucura maravilhosa que é “Bola de Fogo” (1940).
Preciso dizer que é difícil de se estar numa fase Barbara Stanwyck. A mulher fez quase um cento de filmes, 5 anos de uma série televisiva de tremendo sucesso nos anos 60 (The Big Valley, 1965-1969), outros dois do premiado show que levava seu nome (1960-1961). Debutou em Hollywood junto com o cinema falado (em 1929), depois de um período de relativo sucesso na Broadway, e só se despediu das telas nos anos 80, depois de outro grande sucesso – “Os Pássaros Feridos” (1983) – impossível um final mais auspicioso. É uma dificuldade imensa abarcar num post o conjunto de sua obra tão extensa e profunda. 
Mais fácil é passar por ela com passos vagabundos, parando de hora em vez para admirar uma heroína heterodoxa ou uma cruel femme fatale; ou para apreciar melhor aquela história genial de elenco notável, ou aquela outra que só se salva mesmo pela personagem principal (porque qualquer história vale a pena com ela).
The Big Valley

Barbara fez muito de tudo: dramas, thrillers, comédias; muitos filmes bons e outros tantos ruins. Se o ator é aquela propalada criança grande que vive a brincar de fazer de conta, ela sem dúvida foi das mais matreiras. Tomou parte em muita coisa esquecível, porém, sempre com tanta segurança que se tornava a única coisa a fazer sentido na tal produção – prova indelével de seu amor e dedicação pelo que fazia.
Miss Stanwyck, a inatingível estrela de cinema, ou “a rainha”, como William Holden fazia questão de chamá-la depois que foi seu “Golden Boy”, vez por outra dava espaço para a Babs, fazendo renascer aquela moleca do Brooklyn que nos anos de 1910 só conhecia os stars a partir das poltronas piolhentas das saletas de cinema do bairro. Basta que a gente a veja em “The lady of Burlesque” (William Wellman, 1943) para que percamos todo o respeito que temos por ela: Lá está Babs, rebolando num número sofrível do teatro burlesco no qual sua personagem trabalha. Ela responde os trocadilhos infames lançados por seu co-protagonista para, pouco tempo depois, sair do palco dando cambalhotas. A sequência estapafúrdia é a única digna de nota desse thriller que é tão ruim ao ponto de não ter suspense algum... E só é digna de nota porque vemos por aí que Babs defendia a contento qualquer coisa que lhe caísse nas mãos.

Barbara foi uma atriz moderna avant-garde, ou, porque não dizermos, foi a primeira atriz moderna. É surpreendente que uma atriz como ela tivesse surgido dentro da produção controlada dos estúdios americanos dos anos 30-50, em que o artista estava fadado a interpretar continuamente variantes de um mesmo tipo. Além dela, só Bette Davis – outra rainha – transitava com eficácia entre gêneros e caracteres. Talvez porque o carma da beleza física não as tivesse pego, puderam interpretar vilãs sem que a aparência batesse de frente com o mundo tipificado hollywoodiano em que a beleza era um atributo da bondade. E porque esbanjavam talento, eram críveis como good girls, um pouco de maquiagem e muita arte sendo suficientes para que se transformassem nas mulheres mais lindas do mundo. Seus rostos de mulheres terrenas – por oposição às goddesses da tela prateada – quem diria, as trouxe modernas até aqui, e as arrastará assim até a eternidade (ao menos é o que essa fã espera).
Quando deu corpo à dama burlesca, Barbara já havia vestido todas as máscaras disponíveis em Hollywood. Foi conduzida ao estrelato pelas mãos do grande Frank Capra quando ele era ainda pequenino, e burilou seu estilo enquanto ajudava
o mestre a burilar o dele. Vemo-la muito pouco Barbara Stanwyck em “Ladies of Leisure(1930), um filme muito pouco Frank Capra: Babs é Kay Arnold, a jovem de vida equívoca que, dilacerada pelo amor impossível nutrido por um aristocrata, tenta o suicídio. Capra toma-a nuns primeiros planos com iluminação intensa e clara e ela aparece delicada, frágil, santificada. Tão distante da imagem de mulher firme, tão à frente de seu tempo, que a tornaria célebre nas mãos do próprio Capra na obra-prima “Adorável Vagabundo” (Meet John Doe, 1941). Barbara esteve sempre no meio-termo entre a frieza e a suavidade. É esse modo matizado como ela conduz suas personagens que a mantém moderna até agora, em detrimento das toneladas de lixo maniqueísta que Hollywood produziu.
Agora nós a vemos em “Stella Dallas” (King Vidor, 1937), drama mediano com uma obra-prima de interpretação. Aos 29, Barbara arrasa na pele da mãe de meia idade, pobre, cafona e livre, que, naquela sociedade cheia de preconceitos da época, precisa entregar a filha amada ao pai da jovem para vê-la ter alguma chance de futuro. Basta o plano final para que tenhamos dimensão da grandeza da atriz: close da mãe desgrenhada e linda em sua abnegação que, depois de ver a filha bem casada, desce a rua que as separará para sempre levando na cara um meio sorriso que mescla a tristeza da separação e a alegria do dever cumprido. Nenhuma maquiagem. Barbara só carrega no rosto seu imenso talento – louvável negação à maxfactorizada Hollywood dos anos 30, que pintava suas sofredoras como se fosse conduzi-las a um baile de gala. Ao deixar de mascarar a dor, Barbara humaniza sua personagem, remete-a a condição eterna da mãe que se doa pela prole – dando, assim, alguma vida a essa história triste de tão melodramática.
Stella Dallas

Mas rápido enxugamos a lágrima que ficou no canto do olho, pois já estamos a vê-la como a encantadora heroína sem nenhum caráter – variante que ela defendeu bem como ninguém – que usa seu poder de sedução para enredar o antropólogo tímido e jogá-lo nos braços dos patifes de sua família. O filme é “The Lady Eve(As três noites de Eva, Preston Sturges, 1941) e ela, o desdobramento perfeito da fêmea bíblica responsável por induzir o homem ao pecado. A vítima é Henry Fonda, que ironicamente será o fornecedor da serpente com a qual a jovem consumara a tentação. A cena da sedução dessa cômica femme fatale – leitura humorística das vamps que, no cinema dos primórdios, enrolavam-se como cobras... – é impagável pelo charme que exala. Melhor que ela só as sequências de comédia pastelão que se sucedem quando a vampira apaixonada decide ir atrás da vítima que a havia rechaçado para vingar-se dele. De Miss Stanwyck nasceu um dos tipos mais interessantes de good girl – aquela que une frescor, ironia e inteligência. Barbara fazia interpenetrar numa mesma personagem vilania e bondade, afastando-a de um maniqueísmo rasteiro, aproximando-se assim das mulheres de carne e osso que a viam nas telas. Isto está muito bem posto em “The Golden Boy” (Rouben Mamoulian, 1939), em que ela desempenha a mulher independente, amante do chefe, encantada pelo jovem violinista que se torna revelação no mundo do boxe. William Holden, o menino de ouro – que à época efetivamente não passava de um garoto, 11 anos mais jovem que sua rainha – combina idealismo e amargura extremos. Enquanto toca violino e sua alma se expande, ele e a mentora se descobrem apaixonados – e nós por eles, brilhantes como o par que percorrerá os dois lados da estrada de mão dupla que separa a emoção da dor, a arte da violência.Na sociedade patriarcal norte-americana da década de 30, em que a mulher acabara de ganhar direito ao voto mas ainda estava longe de atingir a igualdade com o homem, Barbara construiu uma persona que ensaia a fuga do jugo masculino por meio de sua dubiedade e altivez. Ao economizar nos gestos e lágrimas, afastando-se do dramalhão, a atriz injetou densidade psicológica nas mulheres que criava. Esta sutileza, essa recusa a se deixar possuir totalmente pelo galã e pelo público, essa incompletude de sentido é, acho eu, o que ainda a faz tão interessante.
Era por meio de seu gestual que, vez por outra, Barbara extravasava a emoção contida. John Travolta, no discurso de entrega do Oscar Honorário à atriz em 82 (o único que ela receberia, apesar da excelência de seu trabalho), remete-se à beleza e confiança impressos no caminhar dela ao longo da tela. E aí lembramos da explosão de desejo da aparentemente
fria Mae Doyle quando ela se entrega ao amante em “Clash by night” (Fritz Lang, 1952); da estranha Martha Ivers (de “O tempo não apaga”, Lewis Millestone, 1946) enquanto ela desce eufórica a escadaria que a levará ao namoradinho de infância, linda e leve pela primeira vez, como se só ele pudesse salvá-la da vida de hipocrisia que vivia desde que se separaram; da segurança com que sua Lily Powers de “Baby Face” (Alfred E. Green, 1933) usava seu corpo como lhe aprazia, plenamente dona de si num momento em que mulher nenhuma o era; de sua fragilidade ao cair nos braços do zé-ninguém Gary Cooper no final de “Adorável Vagabundo” (Frank Capra, 1941), tão dele como ele desde sempre fora dela.
Adorável Vagabundo


Com Billy Wilder, Barbara Stanwyck fez o sensacional thriller "Pacto de Sangue" (Double Idemnity, 1944), em que era “mulher decaída” até no último grau, com um par de amantes que ela manipulava para tomar posse da herança do marido. Barbara soube carregar com a mesma sem-cerimônia a espingarda e a flor, sabendo exatamente o que fazer com uma e outra. E como isso fica claro naquela delícia de western à la anos 60 que é The Big Valley, no qual a atriz sessentona veste com a mesma doçura e assertividade o papel de matriarca da família!... Suponho que também ela gostasse dessa sua característica, já que em seu discurso de aceitação do AFI Life Achievement ela agradece especificamente a Frank Capra e Billy Wilder: aquele por ensiná-la tudo sobre o cinema, este por ensiná-la a atirar... 
Meu amor por Barbara Stanwyck está impregnado de um orgulho imenso. Porque ela ressaltou a faceta masculina e a feminina que há em cada um de nós. Porque ela, extravasando os limites do star system, repudiou o histórico assujeitamento feminino, que ainda hoje nos violenta. 

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com Elvis...
Fonte: http://www.rockcellarmagazine.com/2011/08/22/musicians-on-motorcycles/elvis-presley-and-barbara-stanwyck-on-motorcycle/