segunda-feira, 24 de dezembro de 2012

Beasts of the Southern Wild/ Les Bêtes du Sud Sauvage (2012)

A UGC – rede de cinema francesa responsável por uma tentadora carteirinha cujo pagamento de uma taxa mensal fixa dá direito à frequentação ilimitada de suas salas – está fazendo barulho este mês por conta de “Beasts of the Southern Wild” (“Indomável Sonhadora” no Brasil, previsto para sair por aí em fevereiro de 2013), que uma olheira da companhia exibidora descobriu logo no Festival de Sundance e comprou para a comercialização no país. A assertividade da mulher pagou-se. O filme (americano, independente) está rendendo ao jovem e até então desconhecido diretor Benh Zeitlin honrarias como o troféu Cámera D’Or de Cannes, além do AFI Awards, o Sutherland Trophy e da nominação para dezenas de outros prêmios. 
A companhia francesa, apoiando-se em comentários da imprensa especializada e de figuras emblemáticas como Ophra Winfrey e Barack Obama, vende-o como um chef d’oeuvre. Deu-lhe grande destaque em sua revista mensal e repete ad nauseam o seu trailer. Campanha tão agressiva de marketing só pode deixar de pé atrás o espectador acostumado a esse tipo de coisa, e foi bem esse o meu caso. Mas a tal tentadora carteirinha da UGC falou mais alto; urgia conferir até que ponto a propaganda tinha razão. 
Quenzhané Wallis
Pois ela estava certa. O filme é muito mais encantador do que promete o trailer bobinho, pontuado por frases de efeito de cunho metafísico, semelhantes ao aborrecido “Arvore da Vida” (The tree of life, Mallick, 2011). Mais que um encanto, ele é um hino de amor à família, à união, à natureza. Hino cantado de forma matizada, pela voz de uma menininha de seis anos que realiza cabalmente aquilo que Edgar Morin discute em As Estrelas: todo mundo mesmo pode, um dia, ser o personagem de si mesmo defronte da câmera. 
Quenzhané Wallis (Hushpuppy) foi descoberta pelo diretor quando tinha 5 anos, numa comunidade bayou da Louisiana. A personagem, escrita para ela, é de certo modo ela própria: criança a descobrir o mundo, “bicho do homem”, como há cada vez menos nessa idade, nesta época em que tudo se vê obrigado a amadurecer depressa demais. O enamoramento do diretor por essa imagem nostálgica da infância se efetiva, no filme, nos primeiros planos que invariavelmente a mostram; na câmera subjetiva que nos dá a história sempre sob o ponto de vista de Hushpuppy. Em sua comunidade primitiva (sem que com isso eu queira fazer qualquer julgamento depreciativo de valor) que tanta importância dá aos nomes, pois transferem suas características aos indivíduos, Hushpuppy é a menina agridoce aprendendo a duras penas como encontrar seu espaço no universo que, como ela aprenderá a perceber, não lhe pertence.


O assombramento frente ao mundo inóspito nós experimentamos juntos com a garotinha, já que compartilhamos sua visão às coisas. A história ganha ainda mais força cinematográfica porque o mundo em miniatura da menina enlaça-se ao da comunidade à qual ela pertence. Bathtub está em vias de ser inundada devido à construção de uma represa. O poder público tenta, com a burocrática assertividade que lhe é inerente, remover o grupo da região e realocá-lo. Há protestos, violência. Coisas que o telejornal reproduz diariamente e que, por isso mesmo, deixamos de enxergar, adquirem vida nova pelos olhos virgens de Hushpuppy. 
Os protestos ganham a conotação de festins embriagadores, em que a lógica capitalista é quebrada em prol da experimentação mágica do mundo. O pai ébrio, vítima de uma doença que em breve o matará, adquire para a menina os foros de rei, de senhor, de guerreiro, de herói. Ele é o domador daquela natureza viva, a matar com tiros de espingarda a tempestade noturna que os ameaça; o líder a conduzir o grupo à vitória. É o mágico que dá vida à filha ungido pela força da carne de jacaré. Seus gestos, olhados pela garotinha, nos fazem enxergar, como poucas vezes conseguimos, coisas graves do tipo: quanto o deslocamento de um grupo do seu habitat reverte em perda de sua identidade? 
A história traz como pano de fundo a preocupação com a natureza, tema que por ter sido já tão cantarolado pela direita, pela esquerda e pelo centro há tempos que perdeu sua força. Num universo no qual a intervenção de cada ser pode atrapalhar o equilíbrio do todo (como diz a menina na sua resoluta e pequena voz, prenhe daquele mundo fantástico que lhe ensinou o pai, a professora e sua relação profundamente afetiva com a fauna e a flora de Bathtub), que direito tem o homem em destruir todo um habitat? Se há ingenuidade nessa formulação, é uma ingenuidade infantil, plenamente perdoável porque também esconde muitas verdades. A personagem nos ajuda a formular perguntas que há muito deixamos de lado, bichos-homens sedentos de progresso e de tecnologia que somos. 


O paulatino alagamento da “banheira” onde habita a comunidade de Hushpuppy obriga a garotinha ao amadurecimento. Processo difícil esse de se tornar homem. “I’m the man!”, o pai moribundo a faz dizer pouco antes de ela encetar uma jornada em busca da mãe perdida. No caminho, um prostíbulo. Uma mãe enxertada – mesmo assim, exímia preparadora daquela carne de jacaré que deu vida à menina – a ensinará que, na vida adulta, nem tudo é como queremos. 
Um brinde ao diretor Benh Zeitlin, que acumula ainda a função de coautor do roteiro, rapaz que mesmo tendo começado a carreira outro dia já demonstra surpreendente domínio do métier. Brindemos à sua história matizada, que se recusa a dar às costas à alegria, porém tampouco se abre às fórmulas gastas do happy end. Mas brindemos sobretudo à sua descoberta da pequena Quvenzhane, que neste nosso mundo de bebês adultos diz preferir o pé no chão aos sapatos, e os desenhos da Disney à Kylie Minogue. Oxalá o mundo purpurinado de Hollywood não estrague a grande artista que ela (felizmente) ainda não descobriu que é.


*
Duas palavras sobre a pequena atriz, da revista da UGC:

Illimité (déc. 2012), p. 7.

4 comentários:

disse...

Uau, parece-me um filme excelente! Uma pena que, por ser independente, demore mais a chegar por aqui ou mesmo apareça só em DVD. Adorei a imagem da menina "ouvindo" o passarinho. O título "Indomável Sonhadora" parece bem adequado.
Beijos e Feliz Natal!

Danielle Crepaldi Carvalho disse...

Lê, querida, começo te desejando um feliz Natal e um 2013 especialíssimo, e agradecendo pelos seus votos e pelas suas constantes passadas por aqui, que me deixam muito feliz!
Olha, o filme está sendo vendido aqui como um blockbuster. No dia em que o vi não havia muita gente na sala, mas aparentemente ele se tornou um sucesso comercial ao redor do mundo. Isso e o fato de ter ganho prêmio em Cannes fará com que ele seja exibido nos cinemas brasileiros (pelo menos o IMDB estabelece uma data de estreia...). Vamos torcer!
Acho que você vai gostar muito da história. A menina é ótima (também gosto dessa cena que você menciona).

Bjinhos
Dani

Anônimo disse...

A garota é muito expressiva. Filmes independentes me dão também certa pulga atrás da orelha, mas, pelo jeito, esse deu muito certo. Vou conferir quando chegar aqui.
(Chico Lopes)

Danielle Crepaldi Carvalho disse...

Oi, Chico!

Ah, meu amigo, esse é encantador! Confesso que o trailer me deu a sensação de déjà vu - o pretensiosíssimo "A Árvore da Vida" está em cada um dos segundos dele... Ainda bem que fui convencida a vê-lo pelo restante da propaganda ostensiva que a empresa exibidora lhe dedicou esse mês. Curiosa pra saber sua opinião. Me diz quando o vir?

Abraços e até
Dani