Brigitte Helm em Metrópolis (1927) |
Metrópolis é um cabal exemplo cinematográfico da humanidade desperdiçada imaginada por Machado de Assim nas Memórias Póstumas de Brás Cubas, e aí imagino o escritor nonagenário colado à poltrona de um cinema da Cinelândia no Rio de fins dos anos 20, exclamando atônito “É isso, é isso”: porque na minha utopia o escritor que ainda cruzaria lépido o limiar de seu centenário seria com frequência encontrado numa das salas do complexo, a sorver a vida de luzes e sombras que vez por outra atingia a agudeza do seu gênio.
Planos decupados das engrenagens do maquinário gigantesco sucedem-se na tela: o olhar ubíquo do cinema plasmando a ubiquidade do olhar do narrador delirante de Machado. Ao corpo da máquina sucedem-se planos do corpo social cindido. Em fila, operários sem rostos caminham rumo ao subsolo da máquina, à hora da troca de turnos. No plano superior, os bem-nascidos vivem num Éden artificial: douram seus corpos ao sol, brincam com as donzelas de sua escolha em jardins bem cuidados.
A metáfora é de claro entendimento: os operários vivem no inferno, os bem-nascidos no céu, e todos são igualmente ludibriados pelos poderes superiores. A máquina-cinema dá ao espectador uma consciência análoga à da máquina que, no filme, domina ricos e pobres. E testemunhará quando esses últimos tomam consciência de sua eterna espoliação e assumem o poder. A ironia é quando isso acontece: os discursos de tintas cristãs da angelical Brigitte Helm (uma das cenas mais geniais do cinema é, para mim, aquela em que ela sobe ao plano superior com crianças maltrapilhas e, apontando-lhes os bem-nascidos, diz cheia de ira “Olhem, são seus irmãos.”) podem muito menos que a fala inflamada de sua clone má, feita dos mesmos fios que alimentam a exploração na Metrópolis.
Metrópolis acaba destruída pela sanha coletiva; as crianças abandonadas em prol de uma revolta movida primeiro (somente?) pela paixão: a faceta má da brilhante Brigitte Helm mostrara-se uma Salomé cenas antes, levando à combustão aqueles que observavam a sua dança. A entrega apaixonada e acrítica que ela induz leva a multidão a transformar a já viciada Metrópolis na Babilônia da qual, não fosse pela Helm feita virgem Maria (mesmo o nome da mocinha é alusiva à mãe da igreja), não se salvariam nem as crianças, o futuro da cidade.
Impossível não notar o quanto de visionário há nessa obra de Lang, vendo-a nesse momento de intensa conflagração social que vivemos. Fica claro que na megalópole de Lang a religião tem papel preponderante, exercendo controle cujo fim é o bem-estar social. O conservadorismo da conclusão não nos permite, todavia, apagar o percurso, deixar de lado os elementos que põem em contato a sociedade imaginada pelo criador austríaco e a nossa.
Quatro anos após Metrópolis, outro grande Lang dará voz à massa. Em M., o vampiro de Dusseldorf, um grupo de criminosos altamente organizado assume por conta própria o papel da polícia inapta, persegue e apreende o assassino de crianças Peter Lorre. Os mesmos bandidos submetem-no ao julgamento sumário cujo desfecho será o seu extermínio, ali mesmo, no porão feito tribunal/patíbulo. Antes de receber o veredito, o psicopata desesperado desenha aos algozes o terror que é não conseguir controlar suas paixões. Depois de ser considerado culpado, clamará pela polícia e, portanto, pelo amparo do Estado, da democracia, da constituição, dentro de cuja configuração deseja responder pelos seus atos.
Peter Lorre em M. (1931) |
A força das multidões está sendo observada nitidamente nas ruas, nestes últimas semanas, no que elas têm de bom e ruim. Compelida por elas, a governança viu-se obrigada não apenas ao assentimento protocolar, mas à tomada objetiva de decisões (e daí a diminuição do valor das passagens de transporte coletivo, a abertura de um canal democrático de comunicação, por meio de um possível plebiscito, a punição exemplar da bandidagem de colarinho branco).
Cenas de M. |
Igualmente, decisões afobadas denunciam intuitos populistas – reescrever a constituição do dia pra noite não pode dar em boa coisa. No que toca aos populares, pessoas exercendo o salutar direito de gritar por mudanças acaba misturada a uma minoria de bandidos; quando não o tal éthos de massa toma o sujeito, e aí vemos, por exemplo, gente formada, empregada e aparentemente encaminhada imiscuída “não sabe como” no grupo que assalta certa joalheria.
O Lang de Metrópolis e M. vê com descrença a tomada de poder das massas. Tanto que são as instituições estabelecidas que retomam a ordem, a igreja no primeiro, o Estado no segundo.
Da distância que eu decidi tomar – já que nenhuma vez saí pra rua, coisa que de modo algum me honra –, vejo tudo com curiosidade, esperança, mas também uma ponta de temor. Porque minha atual religião é o cinema, observo nos exemplos vividos ou sonhados pela sétima arte o quanto pode o povo unido. O análogo do poder paralelo de M. descambou, na Alemanha, no nazismo – que depois ascendeu legalmente ao poder, cometendo atrocidades de forma idem.
Da distância que eu decidi tomar – já que nenhuma vez saí pra rua, coisa que de modo algum me honra –, vejo tudo com curiosidade, esperança, mas também uma ponta de temor. Porque minha atual religião é o cinema, observo nos exemplos vividos ou sonhados pela sétima arte o quanto pode o povo unido. O análogo do poder paralelo de M. descambou, na Alemanha, no nazismo – que depois ascendeu legalmente ao poder, cometendo atrocidades de forma idem.
James Stewart em Mr. Smith goes to Washington (1939) |
Mas quem me conhece bem sabe que estou mais pra mocinha desbirocada do otimista Frank Capra que pra personagem de distopia de Lang. Os heróis de Capra são sempre demasiado americanos, seus filmes de temática política invariavelmente fecham com discursos embandeirados, mas ainda assim eu me identifico mais com eles que com qualquer outra cinematografia. Meu inesquecível herói do diretor é o James Stewart de Mr. Smith goes to Washington (A mulher faz o homem, 1939), porque de todos os seus otimistas ele é o que mais me parece verossímil.
Stewart e Jean Arthur em Mr. Smith... |
Porém, a História mostra que os grandes movimentos são alavancados por acontecimentos banais. No filme de Capra, James Stewart defende desesperadamente seu projeto, recebendo em troca o desdém dos políticos e a violência de seu partido aos seus correligionários. Nas ruas de São Paulo, a polícia mete bala no povo que participa de um protesto pouco numeroso e pacífico. Quando Jimmy não consegue sustentar mais que um fio de voz, caixas e mais caixas de mensagens telegráficas de apoio inundam o Senado. Twittes invadem a web em apoio aos manifestantes paulistanos desbaratados com violência; fotografias do ocorrido são espalhadas via Facebook. Dias depois, milhões saem às ruas.