quinta-feira, 24 de dezembro de 2015

“Chatô, o rei do Brasil” (2015): os benefícios da maturação

Estou vivendo dias nostálgicos desde o começo da semana passada. Uma amiga de longa data defendeu uma tese de Doutorado escrita paulatinamente ao longo de dez anos – caso sui generis; quem conhece o âmbito universitário sabe que as exigências amontam e os prazos escasseiam. Enquanto eu a via diante da banca, cheia da maturidade e da segurança que a gente só conquista com o tempo, pus-me a lembrar dos anos da graduação, dos professores mortos e aposentados, das aulas densas de literatura, do bom e velho IEL que não volta mais. 
A decalagem temporal nos obriga a colocar as coisas em perspectiva. Caso análogo acontece quando hoje vemos o recém-lançado “Chatô, o rei do Brasil”, de Guilherme Fontes, filme vítima de tantas pauladas ao longo de vinte anos. 
A trivia a seu respeito é notória demais para nos estendermos longamente sobre ela. O diretor e produtor do longa-metragem levantou financiamento para rodá-lo nos idos de 1995, época da retomada do cinema nacional. Estouro de verba e dubiedade na prestação de contas culminaram no engavetamento do projeto e no envolvimento de Fontes nas malhas da Justiça. 
Hoje, passada tanta água por debaixo da ponte, descobre-se que o filme existe enquanto obra completa. Tendo sido rodado de cabo a rabo, ao que tudo indica, foi agora montado (os detalhes do processo me escapam, já que não encontrei dados suficientemente explicativos a esse respeito) e está aí, mostrando com que euforia os artistas cinematográficos de meados dos 90 se recolocavam na cena de onde haviam sido bruscamente retirados graças à treva na qual o país mergulhou durante a Era Collor. 
Além da nostalgia de ver uma Leandra Leal adolescente atuando como gente grande (ela é Lola, a espanholita recém-saída dos cueiros com quem o protagonista se casa); além das então balzaquianas Andréa Beltrão e Letícia Sabatella e do juveníssimo Gabriel Braga Nunes, está a qualidade empírica do filme. Grande qualidade. “Chatô” é uma obra de pulso e, agora saído a lume, mostra que não causou barulho em vão. 
Prova de que o filme é bom são os haters virtuais – com os quais o “Chatô” dos anos 90 nem sonharia em conviver – que o filme conquistou. Acusaram-no de falsear a biografia de Assis Chateaubriand, magnata da comunicação que passou os últimos anos entrevado devido a um acidente vascular. Acusaram-no de romper com a cronologia na narrativa da vida do homem, como se uma obra cinematográfica de sopro biográfico fosse obrigada à linearidade e à apreensão estritamente factual da vida do biografado. Acusaram-no da pretensão de querer o respaldo artístico do poderoso Francis Ford Coppola, desdenhando da obra porque ela não o conquistou. 
No jornalismo, como na Academia, há cada vez mais a dificuldade de o analista se debruçar sobre a obra artística, preferindo tratar de seu contexto em detrimento de tomá-la a peito. Já que não sou nem colunista de fofocas, nem burocrata, nem técnica da Receita Federal, não pretendo fazer isso aqui. 
No que toca à questão financeira, cumpre a ressaltar, aqui, o bom emprego da verba dirigida ao projeto. A história do folclórico milionário Assis Chateaubriand ganha contornos de festa do rei do camarote. Há ali uma estética do exagero com alto potencial crítico, que prenuncia as culminâncias do funk ostentação e do novo-riquismo: há de se ter de tudo, e muito, e já, e se publicizar largamente a respeito. 
Tento puxar pela memória de que descende a estética de “Chatô”. Talvez de “All that jazz” (Bob Fosse, 1979), ótima biografia disfarçada do diretor e coreógrafo de Bob Fosse na qual se implode não só a linearidade como os limites entre a Terra e o Céu (ou o inferno). O homem que dá a vida pelo show biss acabará dando-se a si próprio em espetáculo: as cenas de sua derradeira comédia musical misturando-se aos delírios vivíssimos que ele protagonizava na cama de hospital. 
Há disso no “Chatô” de Guilherme Fontes, já que Chateaubriand não era apenas fruto do show biss, como era um de seus articuladores brasileiros – ele é, lembremo-nos, o responsável pela chegada da TV no Brasil, e o dono da TV Tupi (1950), primeira emissora nacional. 
O filme (não li o livro do qual a obra de originou, de Fernando Morais) costura-se subjetivamente: um Chatô (Marco Ricca, ótimo) preso a uma cama de hospital tece os liames entre o presente e o passado que narra (a infância pobre, a formação, o casamento, a fome louca que tinha de sucesso/riqueza/mulheres/amor...). Seu passado costura-se à história do Brasil: seu casa-e-separa com Getúlio, suas intervenções nos programas de sua emissora de TV. 
Para além da “verdade histórica” daquilo que ele narra – já de saída minada, uma vez que quem conta o caso é um homem cuja saúde se deteriora –, está o gesto crítico do diretor. “Chatô” é a alegorização da política e da cultura nacionais. O Assis Chateaubriand cinematográfico é uma espécie de Chacrinha – só agora, do distanciamento temporal, conseguimos abarcar completamente a dimensão crítica daquele carnavalesco animador, por décadas a figura de maior destaque da TV brasileira. O nosso ridículo, a nossa macaqueação deleitosa do estrangeiro são postas em cena com escárnio, com Chacrinha como com “Chatô”
Ademais, a distância de 20 anos entre a rodagem da trama e a sua aparição pública lhe dá sentidos novos, um pouco pela nova conjuntura histórica, um pouco pelo poder mágico da máquina cinema de congelar o tempo. 
Ao mesmo tempo em que o filme espelha magistralmente a pornografia política nacional – que hoje atingiu os píncaros –, abre-se como um baú de tesouros e liberta caras e vozes com as quais a nossa memória afetiva já nos acostumou. 
Prometi uma análise de pulso do filme e só toquei a sua superfície – em casa de ferreiro o espeto é de pau... Mas a noite de Natal se aproxima e a resenha, de tão comprida, provavelmente será lida poucas vezes até o fim. Fica aqui um registro mais nostálgico que crítico. No frigir dos ovos, festejo o fato de o filme ter demorado tanto a sair. Li as primeiras notas sobre ele nalguma revista Querida, quando era uma moleca mal saída da infância. Eu precisava dessas duas décadas para digeri-lo como ele merece.

segunda-feira, 7 de dezembro de 2015

Coelho Netto e Euclides da Cunha vão ao cinema: notas sobre certa sessão de 1909

Da esquerda para a direita: Goulart de Andrade,
Coelho Netto e Euclides da Cunha. "A Tribuna", 14 ago. 1909.
cf: https://euclidesite.wordpress.com/imagens/fotografias-de-euclides/

Meses atrás, escreveu-me um pesquisador baiano a respeito de alguns exemplares da correspondência ativa e passiva de Coelho Netto que eu havia doado à UNICAMP. A tal doação aconteceu há mais de dez anos, época em que eu, ainda na graduação, desenvolvia uma pesquisa de iniciação científica sobre a passagem de Coelho Netto por Campinas (ganhei as cartas de presente do irmão da bibliotecária do campineiro Centro de Ciências, Letras e Artes e doei-a ao CEDAE). 
Nos idos de 1902, o já notório literato, então lente no afamado colégio Culto à Ciência, recebeu em sua casa o escritor novato, e ouviu em primeira mão, dele, trechos dos Sertões. Euclides retorna ao Rio, publica a obra e enceta com Coelho Netto uma amizade cuja intimidade explicita-se pela carta que eu, durante um tempo, tive em mãos – escrita pela pena de Euclides, na qual ele refere-se em termos pouco lisongeiros a certo “homem” que aparentemente teria desfeiteado seu amigo. 
O anedotário em torno desses escritores ganharia projeção não apenas devido à envergadura intelectual de Euclides da Cunha, mas ao desdobramento folhetinesco de sua vida (literalmente folhetinesco: os entornos do turbulento consórcio de Euclides e Ana Emília Ribeiro foram devassados pela minissérie da Rede Globo Desejo, exibida em 1990). 
Guilherme Fontes/ Dilermano, Vera Fischer/ Ana Emília e 
Tarcísio Meira/ Euclides da Cunha, Desejo
De volta ao Rio de Janeiro, em 1904, Coelho Netto encontra um prestigiado Euclides da Cunha, agora membro da Academia Brasileira de Letras, e cujo conhecimento do Norte torna-o chefe de certa missão Estatal que visava à demarcação de terras fronteiriças brasileiras em litígio. 
Na Capital Federal, os encontros dos dois literatos eram marcados por registros fotográficos veiculados pela imprensa. E um deles foi, quiçá, o último feito de Euclides em vida. Publicado pelo jornal carioca A Tribuna, em 14 de agosto de 1909, flagrava um Euclides da Cunha recém-saído do Cinema Ouvidor, acompanhado por Coelho Netto e pelo também escritor Goulart de Andrade. Um dia depois da publicação, Euclides seria morto pelo amante de sua esposa, após um embate iniciado por ele, do qual o outro levaria a melhor. 
Que relação teria aquela sessão cinematográfica de agosto de 1909 com o malfadado desfecho do escritor? 
Foto e dedicatória de Euclides da Cunha a Coelho Netto
Divulgada por ocasião da morte do escritor. "Gazeta de Notícias", 17 ago. 1909, p. 1
Fonte: BN Digital
Devo ao Sr. Felipe Rissato – o pesquisador ao qual me referi acima, interessado na correspondência de Euclides da Cunha – porção considerável dos desdobramentos apresentados a seguir; os quais juntam doses iguais de ficção e realidade, como o leitor observará. 
A relevância de Euclides da Cunha faz com que se minore o barulho sobre as circunstâncias de sua morte. Os jornais de então se deliciavam com casos escabrosos de traições e assassinatos – protagonizados, todavia, por classes sociais menos favorecidas. Crimes do tipo alimentavam o fait divers então, dando pasto para notícias de forte tom melodramático; desdobradas, por vezes, em filmes situados no limite entre a ficção e o documento. 
Euclides foi poupado dos detalhes sórdidos, até que, em 1918, não outro que Coelho Netto decide jogar novas luzes sobre o assunto. O fato dá-se durante a conferência “Feições do homem”, proferida por ele em 18 de agosto daquele ano, no Grêmio Euclides da Cunha – texto depois publicado, em resumo, no volume Por protesto e adoração: in memoriam de Euclydes da Cunha, organizado por Alberto Rangel. No entanto, nenhuma dessas narrativas é mais saborosa do que esta abaixo, publicada também por Coelho Netto, desta vez no Livro de Prata (1928). Cito o trecho correspondente (p. 259), a partir da transcrição de Rissato: 

[...] convidei-o a ver um pantafaçudo filme americano, que, então, se exibia na estufilha do Cinema Ouvidor. Goulart de Andrade, com quem nos encontramos, acompanhou-nos. Eram cenas de brutalidade selvagem entre vaqueiros do faroeste - correrias a cavalo, rixas tiroteadas, incêndios, rausos de mulheres com peripécias equestres, da mais desabusada ousadia. Por último, o indefectível adultério. Quando o marido ultrajado, arrombando a porta do rancho, caiu sobre os adúlteros a tiros, Euclydes pôs-se de pé d’um salto, bradando na escuridão da sala: “É assim que eu compreendo!” Surpreendidos com a rebentina, que fizera escândalo, procuramos contê-lo, ele, porém, continuou exagitado, louvando o procedimento do cowboy barbaçudo e já na rua, gesticulando nervoso, ainda rusgava: “Fizessem todos assim e não haveria tanta miséria como há por aí. Essa é a verdadeira justiça. Para a adúltera não basta a pedra israelita, o que vale é a bala”. 

A vida teria imitado a arte? Euclides da Cunha teria agido sugestionado pelo filme que acabara de ver – filme que o teria feito reagir violentamente, à moda dos espectadores primordiais do cinematógrafo –, ou tais peripécias devem-se à pena já notoriamente fantasiosa de Coelho Netto? De todo modo, vale à pena espiarmos naquela fatídica sessão cinematográfica de 1909. 
Gazeta de Notícias, 13 ago. 1909, p. 6.
Fonte: BN Digital
Em 13 de agosto de 1909, data da sessão assistida pelos amigos, o Cine Ouvidor apresentou um conjunto de quatro fitas que nada deviam às sessões cotidianas da casa, compostas por fitas naturais, comédias e dramas. A primeira parte do programa consistia de uma fita natural, Um domingo em Douvenez, descrita como “belíssima fita panorâmica, que pelas suas ricas paisagens deixará os espectadores na mais agradável impressão”. A ela se seguiria A noiva do mexicano, “fina comédia de alto valor artístico”. A terceira e a quarta parte seriam ocupadas por Tristes resultados de uma explosão (ou O Caminho do Homem), “emocionante fita dramática; verdadeira maravilha em assunto e fotografia. Última novidade da importante casa Biograph”, e Fregoli por amor, “hilariante fita cômica, garantindo franco sucesso de risos”. Para fechar a programação, seria apresentada, na matinê, a fita O Ingrato, “sensacional drama, que tem arrancado palmas dos dignos espectadores.” 
Mary Pickford, a protagonista de
A noiva do mexicano
A fita deflagradora da reação exaltada de Euclides da Cunha seria, aparentemente, “A noiva do mexicano” – a suposta comédia seria também exibida no Cinema Brasil em 20 de agosto, sendo então considerada, conforme constatou Rissato, uma “importantíssima fita dramática de extraordinário assunto”. As incertezas quanto ao gênero e as parcas descrições das fitas são próprias desse período de estabilização da indústria, quando ainda se engendrava a maquinaria para criar e emplacar as fitas no mercado. Daí a dificuldade de se saber qual o título original da fita vista pelos três escritores. 
Rissato arrola uma lista de possíveis filmes, entre eles, dois de D. W. Griffith – o artista à época trabalhava para a Biograph; uma vez que “Tristes resultados de uma explosão” foi rodado por daquela casa, não é impossível que “A noiva do mexicano” houvesse saído do mesmo lugar. 
O filme que mais se encaixa na descrição de Coelho Netto (considerando-se as datas de lançamento das fitas e a rapidez com que chegavam ao Brasil) é “The Mexican Sweethearts”, lançado nos EUA em 29 de junho de 1909, de acordo com o IMDB (24 de junho, segundo a Mary Pickford Foundation). 
Mary Pickford – canadense que a revista Moving Picture World classifica como “uma espanhola nativa” – desempenha o papel da “señorita” mexicana que finge estar enamorada do soldado norte-americano para provocar seu namorado. O rapaz enceta uma vingança, sustada no último momento graças a um “engenhoso truque” da jovem. O soldado acaba escapando ileso. No desfecho, os namorados fumam cigarros, algo condizente com a “impetuosa natureza do tipo latino” – conforme o definia a revista supracitada, autora da sinopse do filme. 
Mary Pickford (ao centro) noutro papel de "espanhola",
em Ramona (Griffith, 1910).
Trata-se de uma espécie de “Carmen” com final feliz, o que caminha a contrapelo da descrição de Coelho Netto. No entanto, as cenas de batalha, sobre as quais Coelho Netto se debruça com vagar, foram, parece, um dos pontos altos da fita, tendo, segundo a trivia de Hollywood, servido de inspiração a Cecil D. DeMille. 
Não é impossível que o escritor brasileiro tenha emprestado à história daquela fatídica sessão de 1909 um sopro ficcional, passados já 20 anos de ocorrido o fato; como não é impossível que o enredo deste filme tenha se misturado ao de tantos vistos pelo escritor – um assíduo frequentador do cinematógrafo, malgrado as críticas que voltava às mirabolâncias exibidas sobre o pano branco –, ou que um superexcitado Euclides da Cunha tenha superinterpretado a fita. O título exato da película resta a ser conferido por um pesquisador mais pertinaz – ou mais sortudo. O certo é que, na antevéspera de procurar a sua morte, Euclides da Cunha foi a uma comuníssima sessão de cinema.
*
Como grande parte dos filmes dos primórdios da cinematografia, The Mexican Sweethearts não sobreviveu ao tempo. Não restam nem mesmo fotografias da obra de 3 minutos, cujas informações mais detalhadas podem ser acessadas por aqui.

quarta-feira, 11 de novembro de 2015

“Numa escola em Havana”: versão cubana de “Os incompreendidos”?


A blogueira volta hoje, depois de uma ausência de dois meses ocasionada por motivos profissionais. Segue de pé a promessa, feita no já longuínquo mês de agosto, de se comentar obras-primas do cinema europeu. 
O assunto do dia não primará pela atualidade. Proponho abaixo um paralelo entre “Os incompreendidos” (Les quatre-cents coups, 1959) e “Numa escola em Havana” (Conducta, 2014), filme que esteve em cartaz por aqui entre agosto e setembro, o qual porção da crítica considerou a versão cubana da obra de Truffaut. 
Escrita e dirigida por Ernesto Daranas, “Numa escola em Havana” efetivamente tem em comum com a obra do cineasta francês a qualidade do ator protagonista, o ótimo Armando Valdés Freire, em sua estreia no cinema. No mais, falamos de dois contextos políticos e sociais muito diferentes, e duas obras que, imersas nesses contextos, debruçam-se sobre diferentes questões – todas, no entanto, a girarem em torno do ambiente escolar. 
Carmela e Chala
A escola tematizada por Daranas é muito mais afável que aquela tomada pelas lentes (autobiográficas) de Truffaut. Destaca-se em primeiríssimo plano o caráter formador da escola cubana, representada por Carmela (Alina Rodriguez), “Professora Helena” matrona que se obriga ao hercúleo esforço de conduzir seus pupilos dentro e fora dos muros escolares. A personagem de Carmela carrega em si toda a ambivalência da trama: é adorável, ao mesmo tempo em que inverossimelmente plana, resvalando todo o tempo ao dramalhão novelesco. 
É curiosa, aliás, esta apreensão que mistura o olhar mais documental à realidade da ilha – as tomadas das moradias e populações paupérrimas que a habitam, recorrendo a expedientes ilegítimos para conseguirem se sustentar – a formas artísticas que vão na contracorrente do realismo, como a telenovela mexicana. 
Neste mesmo viés, o garoto protagonista do filme de Ernesto Daranas tem explicadas as
causas de seu desvirtuamento: é filho de mãe ausente, cedo consumida pelas drogas, e de pai desconhecido – o homem que lhe funciona à guisa de pai coloca-o a treinar cachorros para combates, esporte que, segundo a lógica instaurada na trama, transferirá o seu caráter violento ao menino cujo caráter se construía. A professora luta para burilar a personalidade do jovem, malgrado a doença que a acomete e o risco de aposentadoria compulsória que a ameaça quando ela passa ao largo das decisões da coordenação do colégio. Há closes vários de Carmela a exclamar “Na minha sala de aula, a autoridade sou eu.” e coisas do gênero, além dos comentários de tom professoral que perpassam a trama. 

A narrativa sustenta-se, no entanto, pelas tomadas da cidade a partir de seus meandros: dos telhados dos pardieiros onde o menino Chala empina pipas e cria pombos, das ruelas comidas por décadas de desamparo, a unirem a população de Havana à gente miserável que vem do interior ainda mais empobrecido e, na falta do amparo do Estado, estende-se ao largo da via férrea. Sustenta-se, sobretudo, pelo trabalho fino realizado com o elenco infantil, que aparece no filme vivendo, não atuando – nenhuma sombra da técnica tinge o desempenho do grupo, que é o ponto alto da trama. 
Sobre os pontos de convergência com o filme de Truffaut. A crítica não foi apenas gentil ao comparar os dois meninos: Armando Valdés Freire tem a verve e a ironia de Jean-Pierre Léaud. Com sua sombranceria, com sua recusa às lágrimas, impede vitoriosamente que o filme torne-se folhetim barato. Mas suas fugas do jugo da instituição escolar têm causas muito diferentes das fugas de Antoine Doinel. 
Antoine Doinel, "Os incompreendidos"
Uma vez conduzido por uma autoridade paterna que lhe tira da obrigação de ser o provedor do lar, o menino é colocado na linha. A escola – de que a professora Carmela é a mais bem acabada representante – é tomada como o espaço do burilamento moral e intelectual do indivíduo. A coordenadora intransigente é um ponto fora da curva no cordato ambiente. O filme elimina arestas, e reproduz o ambiente escolar como o espaço da condução segura, deixando de lado as tensões que o amoldamento dos caracteres implica. Tensões essas que pulsam preponderentes no filme de Truffaut, obra menos preocupada em tecer as causas e consequências da delinquência juvenil do que em fazer emergir a ontologia da juventude – complexa e contraditória demais para ser compreendida e corrigida no espaço de um filme.

terça-feira, 1 de setembro de 2015

Que horas ela volta? (2015)

Um filme luminoso entrou em circuito nesta semana. Brasileiríssimo, para o nosso orgulho. “Que horas ela volta”, de Anna Muylaert, estreia por aqui com reputação internacional já consolidada: ganhou prêmio especial do júri dos festivais de Berlim e de Sundance, e o prêmio de audiência em Amsterdam. Trata-se de um dos filmes mais relevantes da última década, ao conjugar com maestria o valor estético ao humano. 
Porque ele vem sendo – felizmente – bastante comentado nas mídias sociais, é desnecessário apresentarmos em detalhes o seu enredo. Em linhas gerais, narra-se a história de Val, empregada doméstica de uma família abastada paulistana. 
Val lava, passa, cozinha, serve de babá ao filho do casal. É a garçonete, a doceira, a mãe substituta, a doméstica polivalente que os patrões cordialmente denominam “da família”, mas que a história nos mostra ser um remanescente simbólico da escravidão – pouco importando quão respeitado ou bem remunerado ele eventualmente o seja. A mulher sem sobrenome interpretada com excelência por Regina Casé é retrato verossímil de um vasto contingente empobrecido vindo, por décadas, do Nordeste ao Sudeste, em busca de melhores condições de vida. 
Muylaert divide o filme em duas partes: abre-o a partir dos olhos de Val, da cozinha, dos arredores da piscina onde brinca o menino rico e do quarto de empregada; migrando para os cômodos da casa-grande tão logo chega de Pernambuco Jéssica (Camila Márdila), a filha de Val que prestará vestibular na cobiçada Faculdade de Arquitetura da USP. À migração dos espaços sucede-se a miscigenação de um espaço noutro, de um grupo noutro – movimento realizado com uma percepção sociológica superior por parte da diretora (que é também a autora do roteiro). 
O filme foi tão festejado no exterior pela observação arguta que tece do Brasil moderno. Histórias desse tipo são um prato cheio para a fácil dicotomização dos tipos: os patrões exploradores e a empregada aviltada originariam dramas de fácil apelo emocional, no melhor estilo “Sinhá Moça” e “A Escrava Isaura”. Muylaert toma o caminho oposto, para criar uma obra alinhada à esquerda histórica – e aqui eu obviamente não me refiro aos partidos políticos de hoje, especialmente à massa amorfa que por aí vemos. Jéssica é filha da utopia sonhada por humanistas como Antonio Cândido, para os quais a educação é a base da promoção social. 
Qual é a chance de uma jovem pernambucana de classe social baixa ingressar na FAU? O percurso tecido de Val e Jéssica explicita que a distância moral do Brasil de 1995 para o de 2015 supera, em muito, os 20 anos de tempo que separam um momento do outro. Mesmo o indivíduo o mais obtuso não poderá negar o quanto medidas como a de transferência de renda, cooperaram para a diminuição do abismo social existente entre pobres e ricos, e para o empoderamento social daqueles que foram historicamente espoliados. Como esperar que alguém abaixo da linha da pobreza se julgue um cidadão de categoria semelhante àquele que ganha milhões? Que alguém que não tem sequer o que comer esteja apto a estudar? 
Juntamente com o aumento paulatino do IDH vê-se emergir uma classe social que por séculos esteve invisível, suportando uma pirâmide em cujo cume estão os sucedâneos dos senhores de escravos. Porque essa ascensão, mesmo restrita, convergiu com o aumento nos índices educacionais, hoje temos a ventura de observar a filha da empregada competindo com o filho da patroa por uma vaga na mais disputada das universidades. 
Esta questão social, fundamental para a elaboração da obra, não aparece em seu primeiro plano. O conflito de classes coloca-se quando a jovem leva a mãe para pensar sobre o lugar que ocupam na sociedade. Embora a antiga pirâmide social tenha ruído, os seus escombros ainda permanecem de pé, obstruindo a livre circulação, de modo mais ou menos evidente: na separação entre a suíte dos patrões e o quartinho abafado da empregada; no uniforme branco com que a babá se distingue da patroa; nas áreas proibidas aos serviçais (entre elas, a piscina, onde se misturam empiricamente os fluídos de patrões e empregados).  
“Que horas ela volta?” tem o mérito de nos colocar face-a-face com a nossa herança escravocrata, visível como nunca, nessa época de “emergência da classe C”. Porque o filme está sendo incensado por esta elite muito pouco afeita às meas culpas, fico acreditando, com otimismo, que vivemos a aurora de uma nova Era – na qual a integridade humana ultrapasse as barreiras sociais (e que, ao mesmo tempo, todos tenhamos o suficiente para vivermos com dignidade). 

Acabei minha resenha do filme sem resenhá-lo. Outros já o fizeram, e eu convido meus leitores a lê-los. Não sem antes deixar um depoimento pessoal. Se as obras artísticas nos tocam na medida em que cavocam fundo o nosso “eu”, esta me tocou muito: como Jéssica, sou oriunda de uma classe social menos favorecida, e encontrei meu lugar ao sol por meio da educação. No curso de Letras, descobri, com Antonio Cândido, que todos têm “Direito à Literatura”. Por meio dela, descobri o mundo e a mim mesma. Espero que muitos o façam, para que o Brasil finalmente alcance o tão almejado posto de “país desenvolvido”.

domingo, 16 de agosto de 2015

Último tango em Paris (1972)

Anos atrás, a Folha de S. Paulo publicou a imperdível coleção “Cine Europeu”, dedicada à produção dos autores fundamentais do continente. Além da obra que encima essas linhas, de Bernardo Bertolucci, há entre os escolhidos exemplares da cinematografia de Fellini, de Bergman, de Resnais, de Rossellini, de Truffaut, de Lang... Filmes para se fruir aos poucos, retornando-se a eles (à maioria deles, pelo menos), de tempos em tempos. Uma coleção, enfim, imperdível para os cinéfilos, sobre a qual estou me obrigando, agora, a comentar en passant durante o mês de agosto. Daqui para diante falaremos, portanto, de “Último tango em Paris” (Ultimo tango a Parigi), de “Os incompreendidos” (Les quatre cents coups, de François Truffaut, 1959) e de “Roma, cidade aberta” (Roma città aperta, de Roberto Rossellini, 1945). E que Deus me ajude. 
“Último tango em Paris” é precedido por uma reputação equívoca: de filme erótico, proibido pela censura militar brasileira até o ano de 1979 (pena mais branda do que a sofrida no Chile, onde ele permaneceu censurado por 30 anos, ou na Itália, onde foi recolhido até o final dos anos 80, e seu autor processado por obscenidade). A polêmica sem dúvida colaborou com o sucesso de público do filme – que, no entanto, se sobrepõe ao barulho para impor-se como obra de arte de relevância duradoura. 
O entrecho é possivelmente mais conhecido que o objeto fílmico: Marlon Brando (Paul) e Maria Schneider (Jeanne), um quarentão e uma mocinha, encontram-se casualmente num apartamento para alugar, em Paris, e encetam um relacionamento a princípio intentado como puramente sexual. As propaladas cenas de sexo explícito – mesmo a famigerada cena da manteiga são, nesses nossos tempos de obscena explicitude, consideradas quase que pudicas. O filme sustenta-se altaneiro à passagem do tempo por conta da sufocante densidade do conjunto – algo a que ainda não estamos acostumados. 
Surpreende pelo antiglamour – e, não obstante, a incontestável poesia – do intercurso amoroso do casal. Brando, que é muito bom ator, eu julgo que nunca esteve tão bem quanto aqui, dentro da pele do homem maduro, de beleza esvaecente, a quem o suicídio da esposa deixa no limite da sanidade. Schneider é repleta de beleza juvenil e carisma. Ambos têm grande química e, a despeito dos protestos posteriores da atriz – que se sentiu vilipendiada em momentos como o da tal cena de sexo anal, que teria sido rodada à sua revelia –, estão maravilhosamente bem. 
É certo que há uma exposição superabundante do corpo da atriz, em detrimento daquele do ator – mal notório da sociedade machista, para a qual o corpo da mulher é território tranquilamente explorado, nas mais variadas instâncias. Mas, em “Último tango...”, a nudez serve a um papel simbólico de despojamento que depõe a favor da sinceridade da cena. Para além de Paul e Jeanne, há o quarto mofado de apartamento, com seus exíquos móveis a servirem às necessidades imediatas do casal. Desnudam-se as máscaras sociais. Ambos tomam como parti pris existirem apenas para a completude dúbia do sexo, daí a imposição de Paul para que ambos sequer saibam dos primeiros nomes um do outro. 
O conhecimento do casal por parte do público se dá de forma errática, através da mais bela das cinematografias (de Vittorio Storaro), saturada em cálidos tons de vermelho, e de uma câmera que se alterna entre borboletear em longos planos pelos indoors e outdoors parisienses – de maneira entre dramática, acariciante e jocosa –, e tomar o casal protagonista em close, incluindo o espectador na tensão que escapa de ambos. Trata-se de um andamento musical, anunciado pela metáfora do tango que dá título à obra, e concretizado ao final dela – entre o plano-sequência que toma a passagem dos protagonistas pelo salão de dança repleto dos participantes do concurso de tango, e, enfim, a esdrúxula dança de Paul e Jeanne, cujo romantismo enviesado prenuncia o desenlace catastrófico do casal. 
A montagem fragmenta os mundos particulares de ambos, apresentados paulatinamente ao espectador: um e outro se caracterizam pela demasia, à qual o despojamento naquele quarto vazio que o casal passa a compartilhar é uma bem-vinda contraparte. O relacionamento às escondidas que Jeanne tem com Paul é o espelho invertido da relação exibicionista – à la Big Brother – que ela tem com seu namorado cineasta. A emergência da televisão é expressa de modo sardônico pelo filme, pelas histórias fake que ela veicula. Ao mesmo tempo em que o cinema ganha uma visada afetuosa, pela escolha de Jean-Pierre Léaud – o Antoine Doinel de Truffaut, a desempenhar, aqui, uma variação daquela sua célebre personagem – para o papel do noivo de Jeanne. 
“Último tango em Paris” é surpreendente. Pelo modo afirmativo como, à época, encenou o sexo  objeto “obsceno” (“fora de cena”, segundo a etimologia da palavra) por excelência , sem, com isso, atear-se à pornografia rasteira, como esse gênero de filmes fazia, então. Ao contrário, a obra é pontuada por diálogos lancinantes a respeito das relações humanas, a se equilibrarem entre o romantismo mais rasgado e a escatologia, ditos por um casal de atores de coragem ímpar. Isso, essa coragem de se atirar sem pudor dentro de um "outro", para se extrair o seu sumo, é o que transforma o ofício do ator n’algo que, suponho, transcende os limites do humano para atingir o sublime. No desempenho de Brando e Schneider, sobretudo, está a atemporalidade do filme.

segunda-feira, 20 de julho de 2015

Um Bonde Chamado Desejo: mergulho de cabeça no âmago da desesperança

A obra-prima teatral de Tennessee Williams “A streetcar named Desire”, que mereceu um primoroso tratamento cinematográfico em 1951 (por parte de Elia Kazan, a partir de roteiro produzido pelo autor da peça) – filme conhecido por nós como “Uma rua chamada Pecado”, título rebarbativo o qual, segundo o amigo Chico Lopes, escamoteia o “desejo” visceral, considerado pecaminoso... – pode ser agora fruída em sua versão original, em Sampa. De saída, recomendo fervorosamente a montagem paulistana, em cartaz no Tucarena. Para os apreciadores da obra de Tennessee Williams, ou não. Para aqueles que conhecem o filme de Kazan, ou não. Para aqueles que amam a Arte enquanto expressão mais alta da subjetividade humana – para além de rótulos ou delimitações artísticas, enfim. 
Foto de divulgação da montagem paulistana de
"Um bonde..."
A montagem paulistana é dirigida por Rafael Gomes (também tradutor do texto) e tem como cerne uma estonteante Maria Luisa Mendonça (como Blanche Dubois), que divide a cena com Eduardo Moscovis (Stanley Kowalski), Virgínia Buckowski (Stella) e Donizeti Mazonas (Mitch), nos papéis principais. 
Maria Luisa Mendonça é uma de minhas atrizes preferidas, porque nela convivem a delicadeza das formas e a força da expressão. Antegozei, portanto, o prazer de vê-la neste papel que eu supunha – não me enganei – talhado para si. 
Vivien Leigh e Marlon Brando no filme
Tennessee Williams é um grande autor de personagens femininas. Não à toa, as grandes divas do cinema dos anos 50 passearam pelas suas heroínas tão artificiosas, e ao mesmo tempo, tão humanas: Ava Gardner e Deborah Kerr na “Noite do Iguana” (de John Huston, 1964), Kate Hepburn em “De repente, no último verão” (de Joseph L. Mankiewicz, 1959), Anna Magnani na “Rosa Tatuada” (Daniel Mann, 1955), Vivien Leigh em “Uma rua chamada pecado” (1951) – recorro aqui sobretudo à minha memória afetiva, já que a obra do autor é extensa no cinema como no teatro. 
Foto de divulgação da peça
Williams compôs exímias radiografias da classe média americana – em especial nessa época de perda das ilusões que se sucedeu ao massacre da Segunda Grande Guerra. O teatro obrigava-se ao desnudamento dos caracteres, das convenções, mais ainda depois da obscenidade atingida nos campos de batalha. A libido, por tanto tempo cerceada, exacerba nas obras do autor – seja pelos gestos ou pela verborragia das personagens. O cinema norte-americano felizmente bebeu de um pouco dessa liberdade, devido à paulatina queda da censura, daí a energia da Serafina de Anna Magnani, ou da Maxine de Ava Gardner. Porém, é no teatro que Tennessee Williams mais completamente se perfaz. 
A verborragia própria do autor vai bem com a boca de cena, onde o protagonismo é da voz e do corpo do ator. Mais ainda que no cinema, no qual o ator dissolve-se no ambiente, tomado usualmente de forma realista. 
Foto de divulgação da peça
A montagem paulistana é muito bem sucedida na escolha dos signos que inscreve em cena. O bonde faz-se presente em toda a sua extensão de sentido – ele é, lembremo-nos, a condução que leva Blanche Dubois da morada aristocrática que dividia com a família até o cortiço no arrabalde de New Orleans no qual a sua irmã Stella habita com o esposo Stanley – um operário braçal das imediações. O bonde, denominado literalmente “Desejo”, levará a moça bem nascida – agora pobre, porém, ainda uma aristocrata do espírito –, até o mais profundo interior, da cidade e de si mesma. 
Williams escolhe símbolos de legibilidade clara, para mais facilmente exacerbar as neuroses psíquicas de suas personagens – espelhos da nação. A inaptidão de Blanche Dubois – Branca do Bosque, como ela faz questão de informar a um pretendente seu – ao meio é patente. As tópicas da literatura romanesca brotam como sonho na peça, através dos devaneios de Blanche, mulher madura de corpo, mas com alma de mocinha Romântica – claramente inadaptada à realidade circundante. Blanche prefere a magia à realidade. O autor mergulha-a nos dejetos da corrompida sociedade norte-americana de fins dos anos 40. Aquele não era um tempo para utopias. 
Foto de divulgação da peça
Quando foi encenada, em 1947, o ponto culminante da peça foi a atuação do jovem Marlon Brando – que encarnaria Stanley também no cinema –, pela crueza com que ele deu vida à personagem máscula. Se Eduardo Moscovis está ótimo na montagem paulistana, se Virgínia Buckowski e Donizeti Mazonas são muito bons Stella e Mitch, a peça é toda de Maria Luisa Mendonça, pela perspicácia milimétrica com que ela dá corpo à mulher macerada pelos infortúnios, que se apega a todo custo à arte para trilhar os sendeiros da vida (como tantos de nós). 
Naquela época de perda das ilusões, o destino de Blanche é certo – queimar-se na própria chama, até as cinzas; até ser colhida pela insânia. Mendonça compreende bem demais a dimensão fatalista da personagem, e constrói uma Blanche arrebatada, bela, mistura ambivalente de desejo e amor pueril, de maturidade e meninice – como só podem ser as grandes personagens e as grandes atrizes. Constrói-a furiosamente, rasgando-se em cena, para que cada espectador penetre no âmago da personagem a quem ela empresta o seu corpo; corporificando com eloquência a definição que Jean Giraudoux dá ao Teatro: 

O teatro é, não uma imagem da vida, mas uma manifestação da vida, e não uma manifestação anódina e cotidiana, mas uma verdadeira prova de energia dos músculos e dos sentimentos.

Ver Maria Luisa Mendonça em cena é vivenciar uma experiência estética ímpar, que durará no coração do espectador por uma eternidade. Bravíssima, branca flor!


A referência ao texto original de Giraudoux segue abaixo: 
GIRAUDOUX, Jean. "Théâtre et Film". In: LAPIERRE, Marcel (org.) Anthologie du Cinema: rétrospective par les textes de l’art muet qui devint parlant. Paris: La Nouvelle Édition, p. 1946, p. 296-302.
Traduzi o artigo completo, a ser publicado em breve pela revista Pitágoras 500. Quando isso ocorrer, compartilho aqui o link.

sábado, 11 de julho de 2015

“Minha Querida Dama” (2014)

A comédia romântica não morreu – é o que percebemos tão logo passamos os olhos por “Minha Querida Dama” (“My Old Lady”), um digno produto do gênero que arrebanhou legiões aos cinemas dos anos 90, iluminado por graciosidades como Meg Ryan (que é dela?), e que nos últimos tempos imiscuiu-se ao thriller-pipoca (ou ao drama-pipoca) para entreter as plateias adolescentes (definitivamente já passei da idade de “Crepúsculos”, “Escrito nas Estrelas” e companhia ilimitada). 
O diretor Israel Horovitz – também autor do roteiro e da peça teatral da qual ele é oriundo – comanda, aqui, uma trinca de ouro: Kevin Kline (Mathias Gold), Kristin Scott Thomas (Chloé Girard), e Maggie Smith (Mathilde Girard). Todos, na melhor forma.  

O enredo é repleto das peripécias inerentes ao gênero: Kline viaja à Paris no intuito de tomar posse da única herança que o pai lhe deixara, um casarão situado no coração da Cidade-Luz – necessitado de reforma, sim, porém, imenso, ajardinado, um daqueles imóveis cujos valores se multiplicaram esponencialmente graças à especulação imobiliária dos últimos anos. Uma herança não desprezível para o tipo looser, que chegara à maturidade sem nada nem ninguém para chamar de seu. 
No entanto, a herança se revelará um presente de grego, tão logo Mathias Gold percebe que seu pai adquirira o casarão por meio de uma transação truncada, segundo a qual ele deveria pagar prestações mensais à vendedora, enquanto (e apenas enquanto) ela vivesse. O problema é que, cinquenta anos após a formalização do negócio, Mathilde Girard, a vendedora em questão, ainda permanecia lépida e faceira, malgrados os seus 90 anos passados. A capitalização da herança não podendo se formalizar, o empobrecido Mathias Gold vê-se preso no mausoléu com a velhinha e a sua filha, obrigado, ainda, a pagar-lhes as tais prestações por meio das quais ele poderia, um dia, vir a ser dono do local. 
Acabei de espalhar uma série de spoilers que não parará por aí. Filmes como esse, sem grandes revoluções estéticas plano formal, sustentam-se em grande medida pelo cuidado com a amarração do entrecho e pelo carisma dos atores principais. 
Neste gênero de filmes, o herói de moldes Românticos (portanto, no qual se misturam faltas e virtudes) pena para subir a ladeira pedregosa rumo à elevação espiritual. Kevin Kline conduz a sua personagem com uma delicadeza comovente – é aplaudível quando um ator se entrega com tamanha hombridade a desvarios melodramáticos que historicamente são talhados às personagens femininas. Ele alça voo porque tem ao seu lado a ótima Kristin Scott Thomas: espelho invertido do herói, a quem as vicissitudes do destino transformam em sua meia-irmã de alma (e de outras coisas mais). Juntos, Kline e Thomas dão-nos a nostalgia do casal Meg Ryan e Tom Hanks. 
A história é agridoce. A fixação do eixo da trama em Maggie Smith atesta simbolicamente que o gênero envelheceu. O par romântico principal não esconde as suas rugas – elogiada por Mathias, Chloé afirma: “Eu não sou bonita. Eu sou quase uma velha.” É impossível não notarmos as marcas que a passagem o tempo deixou no rosto de Kristin Scott Thomas, ao contrapomo-la à sua etérea heroína de “O Paciente Inglês” (Anthony Minghella, 1996). Do mesmo modo, o grisalho Mathias, de barba sempre por fazer, passa anos-luz ao largo do bigodudo imponente que enreda Meg Ryan em “Surpresas do Coração” (Lawrence Kasdan, 1995) – comédia romântica que foi enterrada junto com a década de 90. E o que dizer, então, de Maggie Smith? Nossos ídolos das telas, imagens projetadas de nós mesmos, envelhecem como nós. 
A passagem do tempo é inexorável. Só os tolos a floreiam. Embora emoldurado pelas convenções do gênero, “Minha Querida Dama” tem o mérito de iluminar os dilemas daqueles que chegaram à maturidade sem realizar o ideal de “realização pessoal” que a civilização ocidental ferinamente apregoa. Sem, todavia, entregar-se ao desespero. Embora muito possa nos faltar, ainda restam os amigos, os diálogos surpreendentemente reveladores. E Paris... A sequência metonímica do filme é, para mim, o dueto operístico que a personagem de Kevin Kline, passada a tempestade, trava com uma soprano desconhecida, às margens do Sena. Há muitos modos de exacerbar a felicidade, mas não há nenhum melhor do que este em Paris, onde as ruas soam como música.

sexta-feira, 19 de junho de 2015

Miss Julie (2014), ou, da atualidade de um velho Strindberg

Liv Ullmann, uma das principais musas de Ingmar Bergman, envereda para a direção após pouco mais de uma década (da última vez que comandou a batuta, em “Infiel”, de 2000, Bergman proveu-lhe a história). A obra escolhida é uma adaptação, de seu próprio punho, de “Senhorita Júlia” (1888), obras-prima do teatro moderno, de autoria do sueco August Strindberg. 
O resultado final é deslumbrante. 
Ullmann realizou um conjunto de escolhas precisas, prova da intimidade que tem com a peça que roteirizou. Em primeiro lugar, conteve-se diante da tentação – comum nos realizadores contemporâneos – de modernizar a obra: Juliette Binoche tentou-o recentemente, aferindo com a empreitada, pelo que eu li a respeito, resultados dúbios (no Brasil, Alessandra Negrini trilhou o mesmo caminho, recebendo da crítica uma resposta igualmente pouco animadora). 
Jessica Chastain (Mis Julie) e Colin Farrell (John)
A única alteração importante que fez a atriz-cineasta diz respeito à localização geográfica da história: a Irlanda do Norte rural, ao invés da Suécia. A mesma noite de solstício de verão, a mesma quantidade exígua de caracteres (que dão ao filme um sopro teatral, sustentado pelos diálogos, ainda que o cenário escolhido seja apropriado com perspicácia). A inconteste força dramática da história, sua patente atualidade – malgrado ela se passar no crepúsculo do século XIX –, demonstra quão desnecessária é a sua atualização ao contexto contemporâneo. 
Strindberg é, ainda hoje, moderno. Aliás, hoje, como nunca, pode ser compreendido em sua plenitude. 
Sua senhorita Júlia é uma melancólica. Precisou de todo século XX para que a sua alma pudesse ser perscrutada. Em 1888, data de seu nascimento, ela era uma anomalia, como tantas outras mulheres de fecho de século criadas por homens como Strindberg e Ibsen – homens do norte, tão diferentes de nós, tropicais, como a imprensa brasileira insistia em lembrar, cada vez que uma daquelas estranhas heroínas subia à nossa cena. Ullmann percebeu bem isso e, como é mulher – isso, especialmente, é fundamental –, conseguiu compreender bem a personagem, e apreender em extensão o histórico conflito existente entre os gêneros. 
Julia vive de vagar pelos campos, em nostalgia constante. O ambiente rural, importante para a psicologia da personagem, ocupa um primeiro plano na “Miss Julie” de Liv Ullmann, em sua magnificência opressora. O conflito entre drama romântico e drama moderno exacerba-se com força no filme, naquele quadro pitoresco de uma Irlanda rural palmilhada por uma mocinha povoada pelos romances históricos de Walter Scott e Alexandre Dumas. Julia vivia numa Era pós-Madame Bovary, senhora a quem a literatura romanesca se mostrara tão malsã. 
Samantha Morton/Kathleen
O desenvolvimento galopante da ciência e da técnica expulsaram as heroínas românticas do paraíso, arrastando à lama aquelas que insistiam em viver de sonhos. Julia é uma dessas desgraçadas. Órfã de mãe desde menina, encontra companhia entre os heróis da ficção. Embebida daquela literatura que rompia com as hierarquias sociais, vislumbra a possibilidade de um romance com um serviçal. Strindberg é preciso no burilamento desta personagem que vive o limiar do século XX presa aos liames do passado. 
 Aquela época de perda da inocência ganha corpo, em cena, à medida que se desenvolvem os caracteres de Julia e John. A poética aliteração que forma seus nomes, a prosa comovente que sai da boca de John, confundem tanto a mocinha quanto o espectador. O rapaz garboso que fala como um lord se revelará, ao termo da obra, um biltre – destruição simbólica de um século de verborragia sentimental. Para escapar à sua realidade vazia, Julia passa a noite de solstício criando para si um amor de ficção. A contraparte no jogo é John, que logo percebe a carência da jovem e se embui do papel de herói. 
Ao longo dos três atos da peça, Strindberg empreende um movimento de questionamento e destruição das hierarquias sociais – destruindo, de roldão, as tópicas buriladas pelo Romantismo. 
Atinge, no desfecho, não a clarividência, mas a desesperança. Em sua obra, a sociedade é pintada como espaço de conflito. Nalgum momento depois de Julia obrigar John a beijar-lhe os pés – lembrando-lhe do lugar subalterno que ele ocupava na sociedade –, nós, espectadores, vislumbramos uma possibilidade de salvação para ambos: quando o rapaz miserável abre seu coração à jovem aristocrática, antevemos um meio termo, entre a base e o topo da pirâmide social, onde ambos poderiam se abrigar. 
No entanto, logo caem as máscaras. Depois de se entregar a John, Julia é obrigada a encarar as inexpugnáveis convenções sociais, que punham uma nódoa no futuro da jovem deflorada. O discurso do rapaz transpira o indissolúvel conflito de gêneros – patente mesmo hoje, o que se dirá, então, em fins do século XIX? Julia, como a Nora de Ibsen (da "Casa de Bonecas") exacerbam os séculos de tolhimento a que haviam sido submetidas as mulheres.
Jessica Chastain
Por essas veredas tortuosas, Liv Ullmann conduz suas três personagens com brilho análogo. Jessica Chastain eu julgo que nunca esteve tão bem como neste filme, bela e frágil como tantas donzelas criadas pelos pintores Românticos. O filme todo ganha, aliás, uma dimensão de tableau – remissão de aparência nostálgica, mas, no final das contas, amarga, da sociedade que a arte edulcorara. Sua cena de suicídio, de grande beleza, remete à iconografia romântica referente à morte de Ofélia – Ullmann percebe a irmandade de alma das duas personagens, reduzidas, ambas, ao jugo da sociedade machista. Colin Farell penetra a dualidade de John, imprimindo-lhe com sagacidade um carregado sotaque irlandês que a pátina da “civilização” mal encobre. Samantha Morton é uma perfeita Kathleen, a cozinheira responsável, na peça, por verbalizar todos os preconceitos inerentes à “opinião pública”. 
Liv Ullmann criou um filme de comovente densidade, ao qual eu convido fervorosamente o público a visitar. Em tempos bicudos como os que estamos atravessando – não apenas no que se refere à produção cinematográfica, mas ao ultraconservadorismo que avassala nos campos sexual, político e religioso –, precisamos de obras que iluminem as nossas fissuras, e que nos apontem a luz.
Ophelia (John Everett Millais, 1851-1852)