Charlie Chaplin anda me povoando como nunca. No mês passado, um golpe de sorte obrigou o vagabundo a se materializar de novo aqui em casa, extensivamente. E eu, como tantas vezes, o descobri como se o visse pela primeira vez. André Bazin, um apaixonado inconteste do artista, dizia que o mérito de Chaplin estava no frescor sempre renovado de sua obra: malgrado as décadas que o separavam de seu público. Isso era verdade tanto entre os anos de 1940 e 60, época em que o crítico francês escreveu sobre a obra do cineasta, quanto o é hoje. Daí a relevância desses escritos – que, aliás, podem ser desfrutados de um só gole pelo público, já que foram reunidos num convidativo volumezinho editado pela Zahar.
Bazin destaca a inquestionável genialidade do artista, esmiuçando as características de sua obra que o fazem tão grande. Empresta seus pressupostos analíticos da Nouvelle Vague: toma Charlie Chaplin enquanto “autor”, uma individualidade que dá sentido ao conjunto de filmes que compôs. Como o crítico francês começa a produzir esses textos analíticos à época em que parte considerável da obra de Chaplin já havia vindo à luz, ele tem a chance de analisá-la em continuidade, percebendo a evolução da personagem ao longo das décadas, desde seu nascimento cinematográfico, no ano de 1914, até meados do século XX.
O crítico toma o artista enquanto figura empírica e enquanto imagem cinematográfica, analisando densamente a movimentação e o embricamento dessas duas instâncias. Entre a figurinha pálida de Carlitos – que ascendera do posto de personagem ao de mito, passando a habitar “a consciência da humanidade” – e o homem Charles Spencer Chaplin, há um mundo.
Sem a maquiagem |
Há, de saída, a relação dialética entre pessoa e personagem, responsável por moldar o cinema dos primeiros tempos. O vagabundo chapliniano fora primeiramente um desdobramento da persona de seu criador: rapaz franzino, não raro famélico, cuja infância se passara entre as mais popularescas ribaltas do vaudeville e os subempregos pelas vielas de Londres. Quando se fez homem, o ator mambembe se empregou – por obra do irmão – na companhia teatral que o levaria aos Estados Unidos. O resto é História.
Bazin debruça-se com cuidado na persona moral de Charlie Chaplin, determinante, segundo ele, na definição do palmilhar do Vagabundo pelas telas, no correr das décadas. Dos balbucios cinematográficos do desconhecido “Charlie”, na Cia Keystone, até a sua transformação no mundialmente conhecido personagem – e multimilionário ator –, pouco tempo se passa. Como poderia o homem bem alimentado e trajado vestir impunemente os andrajos da personagem que o tornara notório?
Chaplin demoraria a abandonar seu “Charlie” – personagem que, como tantos do cinema dos primórdios, atrelava criador e criatura. No entanto, logo se esforçaria para adensar os sentidos sociais de sua obra. É digno de nota o quanto o “Charlie” dos curtas e médias-metragens da Keystone (1914) distancia-se daquele de O Garoto (1921), Luzes da Cidade (1931) ou Tempos Modernos (1936). Neste transcurso de tempo, a depuração estilística da personagem – devido ao paulatino domínio do métier adquirido pelo seu criador – caminha lado a lado com a sua evolução “moral e psicológica”; e com a evolução técnica do cinema.
Num pastelão da Keystone: His prehistoric past (1914) |
Charlie saltaria das pantomimas teatrais da Karno Company para o lado de Marie Dressler, inconteste primeira-dama do pastelão cinematográfico dos anos de 1910 – coadjuvante, ele, nos palcos como nas telas. A marginália cênica se mistura à social. Dentre os atores do grupo de Karno, Chaplin destacava-se por sua performance de um bêbado – personagem que ele teria decalcado do pai alcoólatra, homem que cedo abandonara a família. Seus primeiros passos pela película ortocromática bebem desta fonte teatral, desempenhando, ele, uma personagem essencialmente de má-índole, a distribuir piparotes a torto e a direito, nos traseiros de seus adversários.
Porém, a mágica já principiava a acontecer nas telas. Aquela máscara branca e negra, vestida de calças largas e puídas, chapéu-coco e bengala – vagabundo brioso, um todo tão contraditório e, ainda assim, tão adorável – cedo se destacaria do conjunto cênico, transcendendo a película para atingir as culminâncias do mito. Com a relevância artística viria o sentimento de responsabilidade.
Com Jackie Coogan, em O Garoto (1921) |
Bazin não deixa de perceber o percurso comum dessas personagens que, esforçando-se por retribuir a predileção do público, inclinam-se à perfeição moral. Charlie se emendará aos poucos. Ou por meio da pseudo-maternidade, n’O Garoto – no qual a personagem a princípio recalcitrante acaba afeiçoada à criança de quem a princípio desejava se livrar –; ou então por amor. Bazin forja um argumento perfeitamente romanesco, ainda que verossímil, para explicar o elemento feminino na obra do artista. Naquele constante intercâmbio havido entre o Charlie real e o ficcional, as mocinhas chaplinianas davam corpo ao ideal romântico de seu criador, sendo representadas pelas apaixonadas reais do homem Chaplin – a exemplo de Edna Purviance ou Paulette Godard. E são essas mulheres que, na obra de Chaplin, fazem emergir o que de melhor há na personagem. Daí à obra do diretor voltar-se, segundo Bazin, à busca da mulher que o reconcilie com a sociedade e consigo próprio.
Com Edna Purviance |
Bazin não esconde sua preferência pelo Charlie Chaplin anárquico dos primórdios – a quem os aspectos cinemáticos preocupavam mais que os morais. Esta faceta do homem fora fundamental para o desenvolvimento do cinema: no forjamento das cenas perfeitas, tendo como máxima finalidade a construção e o encadeamento das gags – em detrimento do fio do enredo. A figura mítica de Carlitos nascera mais dos trejeitos e tiradas cômicas – buriladas à excelência –, que da complexidade das histórias narradas. Daí ao herói subsistir às cenas e aos filmes, povoando o nosso imaginário com a eternidade de um Pierrot.
Em Monsieur Verdoux (1947) |
O crítico, no entanto, não nega a importância desta evolução na topografia do mito. Os desdobramentos cinematográficos de Carlitos atrelam-se incontornavelmente à história da Sétima Arte. Nascido branco e negro, no absolutismo da película ortocromática – sucedânea da pintura que transformava as personagens do circo ou da Commedia Dell Arte em máscaras –, Carlitos precisou evoluir com o desenvolvimento técnico. O cinzento do pancromático matava o mito ao detalhar as fisionomias, constata Bazin. “A máscara lunar de Carlitos pouco a pouco desaparecia, corroída pelas nuances da película pancromática (...). Abaixo, como superposto, aparecia o rosto de um homem já envelhecido, escavado por algumas rugas, cabelos semeados em mechas brancas: o rosto de Charles Spencer Chaplin.” (p. 45)
Daí à natural metamorfose de Chaplin em Monsieur Verdoux (1947), considerado pelo crítico francês o duplo negativo de Carlitos. Daí o abandono (apenas suposto) da eterna personagem, por parte de seu criador, em Luzes da Ribalta (1952) – a mais bela e obscena profissão de fé ao teatro, autobiografia na qual o já envelhecido cineasta exibe seus vincos todos, exorcizando seu temor (e o temor de cada artista) de ser abandonado pelo público. Charlie Chaplin obriga-se, nesses dois últimos filmes, ao realismo pungente. E, ao fazê-lo, determina a eternidade de seu mito.
Em Luzes da Ribalta (1952) |
Nas críticas de André Bazin escritas entre fins de 1940 e primeiros anos de 1950, contemporâneas aos lançamentos de Monsieur Verdoux e Luzes da Ribalta, fica patente o misto de devoção e temor do ensaísta frente ao percurso de seu objeto de análise. Motivo importante das loas que o crítico tece ao cineasta deve-se à organicidade de sua obra – seu desenvolvimento pautado pela artesania poética, a contrapelo do que ocorria no grosso do cinema, que desde muito cedo se dobrara à lógica de produção em série do mercado.
A transmutação de Carlitos em Verdoux ou em Calvero correspondia à regeneração e à purificação do mito. Culpado do assassinato das matronas com as quais se casara, Verdoux ruma para o cadafalso com o mesmo caminhar sincopado com o qual o eterno vagabundo despedia-se usualmente de seu público – despedida relativa, já que ele não demorava a voltar, serelepe, noutra aventura.
O final elíptico – vê-se apenas a sombra da incontornável guilhotina –, elide o desfecho de Verdoux, exacerbando o éthos redivivo do herói. Carlitos jamais morrerá.
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Para os interessados, o livrinho que reúne as críticas de André Bazin sobre a obra de Chaplin é o seguinte: André Bazin. Charlie Chaplin. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 2006.
Escrevi este texto baseada, também, na ótima edição sobre a vida e a obra do artista, escrita por Jérôme Larcher para o Cahiers du Cinéma: Masters of Cinema: Charlie Chaplin. Col. Cahiers du Cinéma. Phaidon Press, 2011.