quinta-feira, 24 de dezembro de 2015

“Chatô, o rei do Brasil” (2015): os benefícios da maturação

Estou vivendo dias nostálgicos desde o começo da semana passada. Uma amiga de longa data defendeu uma tese de Doutorado escrita paulatinamente ao longo de dez anos – caso sui generis; quem conhece o âmbito universitário sabe que as exigências amontam e os prazos escasseiam. Enquanto eu a via diante da banca, cheia da maturidade e da segurança que a gente só conquista com o tempo, pus-me a lembrar dos anos da graduação, dos professores mortos e aposentados, das aulas densas de literatura, do bom e velho IEL que não volta mais. 
A decalagem temporal nos obriga a colocar as coisas em perspectiva. Caso análogo acontece quando hoje vemos o recém-lançado “Chatô, o rei do Brasil”, de Guilherme Fontes, filme vítima de tantas pauladas ao longo de vinte anos. 
A trivia a seu respeito é notória demais para nos estendermos longamente sobre ela. O diretor e produtor do longa-metragem levantou financiamento para rodá-lo nos idos de 1995, época da retomada do cinema nacional. Estouro de verba e dubiedade na prestação de contas culminaram no engavetamento do projeto e no envolvimento de Fontes nas malhas da Justiça. 
Hoje, passada tanta água por debaixo da ponte, descobre-se que o filme existe enquanto obra completa. Tendo sido rodado de cabo a rabo, ao que tudo indica, foi agora montado (os detalhes do processo me escapam, já que não encontrei dados suficientemente explicativos a esse respeito) e está aí, mostrando com que euforia os artistas cinematográficos de meados dos 90 se recolocavam na cena de onde haviam sido bruscamente retirados graças à treva na qual o país mergulhou durante a Era Collor. 
Além da nostalgia de ver uma Leandra Leal adolescente atuando como gente grande (ela é Lola, a espanholita recém-saída dos cueiros com quem o protagonista se casa); além das então balzaquianas Andréa Beltrão e Letícia Sabatella e do juveníssimo Gabriel Braga Nunes, está a qualidade empírica do filme. Grande qualidade. “Chatô” é uma obra de pulso e, agora saído a lume, mostra que não causou barulho em vão. 
Prova de que o filme é bom são os haters virtuais – com os quais o “Chatô” dos anos 90 nem sonharia em conviver – que o filme conquistou. Acusaram-no de falsear a biografia de Assis Chateaubriand, magnata da comunicação que passou os últimos anos entrevado devido a um acidente vascular. Acusaram-no de romper com a cronologia na narrativa da vida do homem, como se uma obra cinematográfica de sopro biográfico fosse obrigada à linearidade e à apreensão estritamente factual da vida do biografado. Acusaram-no da pretensão de querer o respaldo artístico do poderoso Francis Ford Coppola, desdenhando da obra porque ela não o conquistou. 
No jornalismo, como na Academia, há cada vez mais a dificuldade de o analista se debruçar sobre a obra artística, preferindo tratar de seu contexto em detrimento de tomá-la a peito. Já que não sou nem colunista de fofocas, nem burocrata, nem técnica da Receita Federal, não pretendo fazer isso aqui. 
No que toca à questão financeira, cumpre a ressaltar, aqui, o bom emprego da verba dirigida ao projeto. A história do folclórico milionário Assis Chateaubriand ganha contornos de festa do rei do camarote. Há ali uma estética do exagero com alto potencial crítico, que prenuncia as culminâncias do funk ostentação e do novo-riquismo: há de se ter de tudo, e muito, e já, e se publicizar largamente a respeito. 
Tento puxar pela memória de que descende a estética de “Chatô”. Talvez de “All that jazz” (Bob Fosse, 1979), ótima biografia disfarçada do diretor e coreógrafo de Bob Fosse na qual se implode não só a linearidade como os limites entre a Terra e o Céu (ou o inferno). O homem que dá a vida pelo show biss acabará dando-se a si próprio em espetáculo: as cenas de sua derradeira comédia musical misturando-se aos delírios vivíssimos que ele protagonizava na cama de hospital. 
Há disso no “Chatô” de Guilherme Fontes, já que Chateaubriand não era apenas fruto do show biss, como era um de seus articuladores brasileiros – ele é, lembremo-nos, o responsável pela chegada da TV no Brasil, e o dono da TV Tupi (1950), primeira emissora nacional. 
O filme (não li o livro do qual a obra de originou, de Fernando Morais) costura-se subjetivamente: um Chatô (Marco Ricca, ótimo) preso a uma cama de hospital tece os liames entre o presente e o passado que narra (a infância pobre, a formação, o casamento, a fome louca que tinha de sucesso/riqueza/mulheres/amor...). Seu passado costura-se à história do Brasil: seu casa-e-separa com Getúlio, suas intervenções nos programas de sua emissora de TV. 
Para além da “verdade histórica” daquilo que ele narra – já de saída minada, uma vez que quem conta o caso é um homem cuja saúde se deteriora –, está o gesto crítico do diretor. “Chatô” é a alegorização da política e da cultura nacionais. O Assis Chateaubriand cinematográfico é uma espécie de Chacrinha – só agora, do distanciamento temporal, conseguimos abarcar completamente a dimensão crítica daquele carnavalesco animador, por décadas a figura de maior destaque da TV brasileira. O nosso ridículo, a nossa macaqueação deleitosa do estrangeiro são postas em cena com escárnio, com Chacrinha como com “Chatô”
Ademais, a distância de 20 anos entre a rodagem da trama e a sua aparição pública lhe dá sentidos novos, um pouco pela nova conjuntura histórica, um pouco pelo poder mágico da máquina cinema de congelar o tempo. 
Ao mesmo tempo em que o filme espelha magistralmente a pornografia política nacional – que hoje atingiu os píncaros –, abre-se como um baú de tesouros e liberta caras e vozes com as quais a nossa memória afetiva já nos acostumou. 
Prometi uma análise de pulso do filme e só toquei a sua superfície – em casa de ferreiro o espeto é de pau... Mas a noite de Natal se aproxima e a resenha, de tão comprida, provavelmente será lida poucas vezes até o fim. Fica aqui um registro mais nostálgico que crítico. No frigir dos ovos, festejo o fato de o filme ter demorado tanto a sair. Li as primeiras notas sobre ele nalguma revista Querida, quando era uma moleca mal saída da infância. Eu precisava dessas duas décadas para digeri-lo como ele merece.

segunda-feira, 7 de dezembro de 2015

Coelho Netto e Euclides da Cunha vão ao cinema: notas sobre certa sessão de 1909

Da esquerda para a direita: Goulart de Andrade,
Coelho Netto e Euclides da Cunha. "A Tribuna", 14 ago. 1909.
cf: https://euclidesite.wordpress.com/imagens/fotografias-de-euclides/

Meses atrás, escreveu-me um pesquisador baiano a respeito de alguns exemplares da correspondência ativa e passiva de Coelho Netto que eu havia doado à UNICAMP. A tal doação aconteceu há mais de dez anos, época em que eu, ainda na graduação, desenvolvia uma pesquisa de iniciação científica sobre a passagem de Coelho Netto por Campinas (ganhei as cartas de presente do irmão da bibliotecária do campineiro Centro de Ciências, Letras e Artes e doei-a ao CEDAE). 
Nos idos de 1902, o já notório literato, então lente no afamado colégio Culto à Ciência, recebeu em sua casa o escritor novato, e ouviu em primeira mão, dele, trechos dos Sertões. Euclides retorna ao Rio, publica a obra e enceta com Coelho Netto uma amizade cuja intimidade explicita-se pela carta que eu, durante um tempo, tive em mãos – escrita pela pena de Euclides, na qual ele refere-se em termos pouco lisongeiros a certo “homem” que aparentemente teria desfeiteado seu amigo. 
O anedotário em torno desses escritores ganharia projeção não apenas devido à envergadura intelectual de Euclides da Cunha, mas ao desdobramento folhetinesco de sua vida (literalmente folhetinesco: os entornos do turbulento consórcio de Euclides e Ana Emília Ribeiro foram devassados pela minissérie da Rede Globo Desejo, exibida em 1990). 
Guilherme Fontes/ Dilermano, Vera Fischer/ Ana Emília e 
Tarcísio Meira/ Euclides da Cunha, Desejo
De volta ao Rio de Janeiro, em 1904, Coelho Netto encontra um prestigiado Euclides da Cunha, agora membro da Academia Brasileira de Letras, e cujo conhecimento do Norte torna-o chefe de certa missão Estatal que visava à demarcação de terras fronteiriças brasileiras em litígio. 
Na Capital Federal, os encontros dos dois literatos eram marcados por registros fotográficos veiculados pela imprensa. E um deles foi, quiçá, o último feito de Euclides em vida. Publicado pelo jornal carioca A Tribuna, em 14 de agosto de 1909, flagrava um Euclides da Cunha recém-saído do Cinema Ouvidor, acompanhado por Coelho Netto e pelo também escritor Goulart de Andrade. Um dia depois da publicação, Euclides seria morto pelo amante de sua esposa, após um embate iniciado por ele, do qual o outro levaria a melhor. 
Que relação teria aquela sessão cinematográfica de agosto de 1909 com o malfadado desfecho do escritor? 
Foto e dedicatória de Euclides da Cunha a Coelho Netto
Divulgada por ocasião da morte do escritor. "Gazeta de Notícias", 17 ago. 1909, p. 1
Fonte: BN Digital
Devo ao Sr. Felipe Rissato – o pesquisador ao qual me referi acima, interessado na correspondência de Euclides da Cunha – porção considerável dos desdobramentos apresentados a seguir; os quais juntam doses iguais de ficção e realidade, como o leitor observará. 
A relevância de Euclides da Cunha faz com que se minore o barulho sobre as circunstâncias de sua morte. Os jornais de então se deliciavam com casos escabrosos de traições e assassinatos – protagonizados, todavia, por classes sociais menos favorecidas. Crimes do tipo alimentavam o fait divers então, dando pasto para notícias de forte tom melodramático; desdobradas, por vezes, em filmes situados no limite entre a ficção e o documento. 
Euclides foi poupado dos detalhes sórdidos, até que, em 1918, não outro que Coelho Netto decide jogar novas luzes sobre o assunto. O fato dá-se durante a conferência “Feições do homem”, proferida por ele em 18 de agosto daquele ano, no Grêmio Euclides da Cunha – texto depois publicado, em resumo, no volume Por protesto e adoração: in memoriam de Euclydes da Cunha, organizado por Alberto Rangel. No entanto, nenhuma dessas narrativas é mais saborosa do que esta abaixo, publicada também por Coelho Netto, desta vez no Livro de Prata (1928). Cito o trecho correspondente (p. 259), a partir da transcrição de Rissato: 

[...] convidei-o a ver um pantafaçudo filme americano, que, então, se exibia na estufilha do Cinema Ouvidor. Goulart de Andrade, com quem nos encontramos, acompanhou-nos. Eram cenas de brutalidade selvagem entre vaqueiros do faroeste - correrias a cavalo, rixas tiroteadas, incêndios, rausos de mulheres com peripécias equestres, da mais desabusada ousadia. Por último, o indefectível adultério. Quando o marido ultrajado, arrombando a porta do rancho, caiu sobre os adúlteros a tiros, Euclydes pôs-se de pé d’um salto, bradando na escuridão da sala: “É assim que eu compreendo!” Surpreendidos com a rebentina, que fizera escândalo, procuramos contê-lo, ele, porém, continuou exagitado, louvando o procedimento do cowboy barbaçudo e já na rua, gesticulando nervoso, ainda rusgava: “Fizessem todos assim e não haveria tanta miséria como há por aí. Essa é a verdadeira justiça. Para a adúltera não basta a pedra israelita, o que vale é a bala”. 

A vida teria imitado a arte? Euclides da Cunha teria agido sugestionado pelo filme que acabara de ver – filme que o teria feito reagir violentamente, à moda dos espectadores primordiais do cinematógrafo –, ou tais peripécias devem-se à pena já notoriamente fantasiosa de Coelho Netto? De todo modo, vale à pena espiarmos naquela fatídica sessão cinematográfica de 1909. 
Gazeta de Notícias, 13 ago. 1909, p. 6.
Fonte: BN Digital
Em 13 de agosto de 1909, data da sessão assistida pelos amigos, o Cine Ouvidor apresentou um conjunto de quatro fitas que nada deviam às sessões cotidianas da casa, compostas por fitas naturais, comédias e dramas. A primeira parte do programa consistia de uma fita natural, Um domingo em Douvenez, descrita como “belíssima fita panorâmica, que pelas suas ricas paisagens deixará os espectadores na mais agradável impressão”. A ela se seguiria A noiva do mexicano, “fina comédia de alto valor artístico”. A terceira e a quarta parte seriam ocupadas por Tristes resultados de uma explosão (ou O Caminho do Homem), “emocionante fita dramática; verdadeira maravilha em assunto e fotografia. Última novidade da importante casa Biograph”, e Fregoli por amor, “hilariante fita cômica, garantindo franco sucesso de risos”. Para fechar a programação, seria apresentada, na matinê, a fita O Ingrato, “sensacional drama, que tem arrancado palmas dos dignos espectadores.” 
Mary Pickford, a protagonista de
A noiva do mexicano
A fita deflagradora da reação exaltada de Euclides da Cunha seria, aparentemente, “A noiva do mexicano” – a suposta comédia seria também exibida no Cinema Brasil em 20 de agosto, sendo então considerada, conforme constatou Rissato, uma “importantíssima fita dramática de extraordinário assunto”. As incertezas quanto ao gênero e as parcas descrições das fitas são próprias desse período de estabilização da indústria, quando ainda se engendrava a maquinaria para criar e emplacar as fitas no mercado. Daí a dificuldade de se saber qual o título original da fita vista pelos três escritores. 
Rissato arrola uma lista de possíveis filmes, entre eles, dois de D. W. Griffith – o artista à época trabalhava para a Biograph; uma vez que “Tristes resultados de uma explosão” foi rodado por daquela casa, não é impossível que “A noiva do mexicano” houvesse saído do mesmo lugar. 
O filme que mais se encaixa na descrição de Coelho Netto (considerando-se as datas de lançamento das fitas e a rapidez com que chegavam ao Brasil) é “The Mexican Sweethearts”, lançado nos EUA em 29 de junho de 1909, de acordo com o IMDB (24 de junho, segundo a Mary Pickford Foundation). 
Mary Pickford – canadense que a revista Moving Picture World classifica como “uma espanhola nativa” – desempenha o papel da “señorita” mexicana que finge estar enamorada do soldado norte-americano para provocar seu namorado. O rapaz enceta uma vingança, sustada no último momento graças a um “engenhoso truque” da jovem. O soldado acaba escapando ileso. No desfecho, os namorados fumam cigarros, algo condizente com a “impetuosa natureza do tipo latino” – conforme o definia a revista supracitada, autora da sinopse do filme. 
Mary Pickford (ao centro) noutro papel de "espanhola",
em Ramona (Griffith, 1910).
Trata-se de uma espécie de “Carmen” com final feliz, o que caminha a contrapelo da descrição de Coelho Netto. No entanto, as cenas de batalha, sobre as quais Coelho Netto se debruça com vagar, foram, parece, um dos pontos altos da fita, tendo, segundo a trivia de Hollywood, servido de inspiração a Cecil D. DeMille. 
Não é impossível que o escritor brasileiro tenha emprestado à história daquela fatídica sessão de 1909 um sopro ficcional, passados já 20 anos de ocorrido o fato; como não é impossível que o enredo deste filme tenha se misturado ao de tantos vistos pelo escritor – um assíduo frequentador do cinematógrafo, malgrado as críticas que voltava às mirabolâncias exibidas sobre o pano branco –, ou que um superexcitado Euclides da Cunha tenha superinterpretado a fita. O título exato da película resta a ser conferido por um pesquisador mais pertinaz – ou mais sortudo. O certo é que, na antevéspera de procurar a sua morte, Euclides da Cunha foi a uma comuníssima sessão de cinema.
*
Como grande parte dos filmes dos primórdios da cinematografia, The Mexican Sweethearts não sobreviveu ao tempo. Não restam nem mesmo fotografias da obra de 3 minutos, cujas informações mais detalhadas podem ser acessadas por aqui.