Lendo as sinopses de filmes pregadas no mural de um cinema paulistano, deparo-me com este título, o – segundo o ranking de uma determinada revista – melhor em cartaz em São Paulo. Um longa-metragem passa, então, em fast motion pela minha cabeça.
Eu sou Ingrid Bergman.
Eu sou Ingrid Bergman.
Certas coisas estão impregnadas de memória afetiva. Dez, doze anos atrás, esbarrei em Ingrid Bergman num filme de Hitchcock, e ela definiu o meu destino. Dali por diante eu precisava conhecer toda a sua obra: e de roldão conheci Hitchcock, Rossellini, George Cukor, Anna Magnani e uma porção não desprezível do céu estrelado onde a divindade da Sétima Arte repousa.
O filme em questão nem é o que de melhor fez Hitchcock. Trata-se de “Quando fala o coração” (1944), um melodrama com laivos de psicanálise e muito mel – violinos insistentes torturando o tema amoroso enquanto os olhares da Dra. Constance Petersen se cruzam com os de John Ballantyne, seu suposto colega de trabalho acusado, não muito tempo mais tarde, do assassinato do psicanalista-chefe da casa. “Vou te curar e, se isso acontecer, permanecer contigo” – diz a psicanalista apaixonada.
Meloso, mas Miss Bergman já está toda aí, com os óculos de grau que deformam a aparência estelar que a Hollywood clássica lhe buscava imprimir, com a assertividade da mulher profissional que não se deixaria tanger pelos homens ou pelas circunstâncias. Foi isso, talvez, que fez os nossos caminhos se cruzarem.
O enredo do documentário tece-se a partir da primeira pessoa – dos diários que Ingrid manteve durante toda a vida, quiçá desde que começou a escrever. É lido no original sueco por Alicia Vikander – ótima jovem atriz que o Oscar acabou de notar – e corroborado pelas vozes de Pia, Isabella, Ingrid Rossellini e Roberto Rossellini, os quatro filhos da atriz. É curioso ver um Roberto Rossellini belo e bonachão, mistura de Ingrid e Roberto, homem que construiu a vida distante das câmeras: nem a genética, nem o nome de batismo já de saída célebre, parecem tê-lo feito se envolver mais do que esparsamente com o cinema.
Com os filhos Roberto e Isabella |
A mais conhecida do quarteto é Isabella Rossellini, que herdou o rosto da mãe – a semelhança é mesmo assustadora – e os cabelos do pai. E o talento de ambos, que, notado unanimemente na ocasião do lançamento de “Veludo Azul” (David Lynch, 1986), continua a ser exercido, nos campos da atuação cinematográfica e teatral, e da produção. Tem a sede da mãe, ao que parece, já que envereda agora pelas searas do experimentalismo.
O quarteto invoca a mãe de modo muito semelhante ao que fizera no DVD de The Hollywood Collection dedicado a ela. A Ingrid ausente, envolvida invariavelmente com o trabalho, a ver os filhos apenas nas férias, recupera-se na Ingrid fantasmática, a se desdobrar na tela num sem-fim de filmes de família, rodados desde que a jovem atriz era uma promessa ainda não concretizada, na pequena Suécia natal.
Em "Anastácia" (1956) |
O filme é doce, aparando as arestas de uma vida turbulenta de modo como nem mesmo a própria Ingrid Bergman procurou fazer em sua autobiografia, onde ela narra sem pecha sua necessidade de sistematicamente deixar os filhos para ir atrás do trabalho e dos amores. É como se, passado tanto tempo desde a sua morte, após o que Cannes lhe erigiu um portentoso memorial comemorativo aos seus 100 anos, Ingrid tenha sido transmutada, mesmo na memória dos filhos, de mulher a mito. Não acredito que ela o quisesse – sempre disposta que estava a descer do pedestal e se desgrenhar, sujar-se das cinzas do vulcão e viver plenamente a carreira e a vida, sem que os liames comezinhos da sociedade a prendessem.
O documentário sustenta-se como o esforço das quatro crianças de emendarem os pedaços de vida da mãe aos seus. A Ingrid Bergman divertida e carinhosa emerge dos depoimentos e das imagens: a abraçar os filhos, a brincar com eles. A vida é transformada em espetáculo por meio das imagens silenciosas que mostram uma Ingrid desempenhando a contento um papel para o qual ela era talhada apenas ocasionalmente – como se fora contratada para um saltitante musical-família da MGM, após o qual ela precisava de trabalho sério. Felizmente.
Em "À Meia Luz", 1944 |
Nenhuma atriz, como ela, passeou com tanta segurança pela Hollywood Clássica e pelas novas ondas italiana e francesa. Negando os rótulos, foi mulher de vida airada quando sua imagem de mocinha já estava consolidada (em “O Médico e o Monstro”, Victor Fleming, 1941); meteu-se com o Neorealismo Italiano e com Rossellini (em “Stromboli”, 1950) quando era a atriz mais celebrada nos Estados Unidos; no exílio obrigatório de quase dez anos, pela “imoralidade que cometera”, trabalhou com Jean Renoir e acabou por ganhar um Oscar, capitulação cabal de Hollywood... Gostava de um desafio – sua filmografia é um belo passaporte para um apaixonado por cinema adentrar pela cinematografia dos anos de 1930-1980.
O documentário passeia por estas veredas todas, mas concentra-se na imagem da mãe. A Ingrid Bergman que eu amo é mais ardida que essa: como a Alicia Huberman de “Interlúdio” (Hitchcock, 1946), é meio a ébria, meio a prostituta, meio a santa, meio a apaixonada. A esta Ingrid eu devo a minha fascinação pela sétima arte.