quarta-feira, 26 de outubro de 2016

“45 anos” (2015): a perpetuação do passado e a finitude da vida

Andrew Haigh rodou o filme mais melancólico, desesperançado – realista, portanto – a respeito daquilo que outrora chamávamos de “o inverno da vida”, e hoje recebe o rótulo eufemístico de “a melhor idade”. 
“45 anos” flagra a semana que antecede o advento das bodas do casal Kate e Geoff Mercer  os maravilhosos Charlotte Rampling e Tom Courtenay. Aos preparativos da festa, realizados pela mulher com uma praticidade britânica, soma-se um evento inusitado, cuja relevância acabará por se revelar aos poucos: a polícia alemã encontra, intacto, o corpo da antiga namorada de Geoff, enterrada havia décadas sob o gelo dos Alpes. 
À decodificação da carta, escrita num alemão já incompreensível ao velho que fora um desbravador na mocidade, segue-se o paulatino desvendamento de um passado há muito enterrado, porém, pujante como se sempre houvesse estado presente. A manutenção da integridade do corpo de Katia metaforiza a perpetuidade de sua presença na vida do homem, recordação que ganha corporeidade quando a jovem surge rediviva, devido ao súbito descongelamento da geleira que a abrigava. 
O filme é artificioso; obriga uma fruição mais cerebral que afetiva. Traça quase que palpavelmente, entre o casal, duas retas que apontam para direções diametralmente opostas: à medida que a festa das bodas – renovação simbólica dos laços matrimoniais – vai se aproximando, mais Geoff se afasta da história que construíra com Kate, mais se achega à sua história pregressa que o destino irônico novamente trazia à baila. 
O instinto guia-o até o sótão, à arqueologia do passado guardado entre os diários da vida aventureira do jovem casal e as fotografias de Katia, dispostas numa centena de slides. Katia pulsara entre aquelas linhas e fotografias, as quais adquiririam valor de incontornável presença uma vez que seu corpo ressurgira agora, passadas quase cinco décadas, intacto às vicissitudes do tempo. 
Haigh conduz a dupla de atores com um distanciamento prescrutador que faz toda a diferença à trama. É partidário dos silêncios, dos travellings às paisagens invernais – que se transformam em personagens, ao mesmo tempo em que revelam as psicologias do casal protagonista, dos fora de campo – as tomadas do vazio, as personagens mal-enquadradas –, que deixam o espectador à deriva. 
Não o fizesse, correria o risco de transformar sua obra num meloso drama familiar, repleto de discursos e, enfim, de lágrimas catárticas que têm a pretensão de solucionar o insolucionável. “45 anos” é um respiro em meio ao amontoado de tramas tolas a tematizarem o envelhecimento, que aparam as suas arestas, enquadrando os casais da terceira idade no rol dos pombinhos das comédias românticas, como sem nem corpo, nem espírito os separasse. 
Andrew Haigh dá ao tema o enquadramento trágico que ele merece. A finitude é o seu tema. A decrepitude do corpo e da mente surge como forma e fundo, no filme: o andar vacilante de Geoff, a falência sexual, os vazios, a introspecção, a meia-luz, e, enfim, a volta mental ao passado, e ao mundo de caminhos que ele abria. E o catalizador deste retorno ao passado é, sub-repticiamente, o cinema: o corpo congelado de Katia, infenso ao galgar dos anos, é metáfora da mumificação do passado, tornada possível pelo daguerreótipo, pela fotografia e, enfim, pelo cinema – onde o passado torna-se, segundo Bazin, “múmia em mutação”. O retorno empírico do corpo da mulher amada – e do filho nunca nascido de ambos, que ela esperava – supera, claro, o caráter indicial da imagem cinematográfica de que fala o teórico francês, mas acena para ele. 
A história da recepção das imagens oriundas de dispositivos tecnológicos está coalhada de registros ora deleitantes, ora assustadores, desse passado em conserva. Numa crônica ainda dos tempos do kinetoscópio, 1894, Olavo Bilac chamaria Edison sardonicamente de “Jack – o estripador – da fantasia”: “E imagina que horror: o gesto amoroso repetido ao infinito, durante uma, durante cem horas, cem semanas, cem anos!”. 
Duas décadas e meia mais tarde, Mário de Alencar seria mais doce, não sem deixar de registrar tudo o que de terror há nesta exegese. O conto é Coração de Velho, uma obra-prima que, escrita em 1920, recupera o pensamento cientificista do XIX: morta a esposa doente e casmurra, o velho Salles – a quem o passamento da consorte fora um alívio – tromba com um daguerreótipo da mulher quando ainda era uma jovem noiva. Tal e qual Geoff, vê o passado irromper em trambolhão: 
Em torno dele tinha-se desvanecido a atualidade. Não via os filhos, parecia não ter a consciência da sua própria condição presente. O espírito remontava um passado de quarenta anos, e recapitulava os meses, e os dias, e impressões, e imagens apagadas, desfeitas no decurso do tempo. As que tinham prevalecido, nos anos recentes, apagavam-se agora; moléstias, vexames, incompatibilidade de gostos, irritações, a mesma figura da enferma, nada lhe ficava mais na retina e na lembrança, preocupadas totalmente por aquele daguerreótipo em que os seus olhos pareciam espelhar-se e configurar a vida. Achou assim e recompôs a sua verdadeira realidade, da qual os últimos anos, como um parêntesis importuno, eram de súbito riscados. 
O desfecho de Salles prenuncia o de Geoff – deixado em aberto pelo filme, porém anunciado, naquela soberba sequência final do salão de festas que, embora repleto e festivo, nem por isso deixa de patentear vaziez e solidão: termina imerso em passado, escrevendo poesias à jovem do daguerreótipo – vivíssima em espírito, embora desaparecida em corpo. Uma vida puramente imaginativa. 
Como Geoff, cujos últimos 45 anos foram erigidos obedecendo a uma linha de continuidade com a história que lhe fora usurpada, a esposa presente ocupando o lugar de substituta da falecida. No plano final da Kate de Charlotte Rampling, que ao som de Smoke gets in your eyes percebe que fora obnubilada durante toda a vida, emerge uma aridez que, apesar de pertencer à personagem, igualmente aponta para uma questão universal: o envelhecimento – e todas as escolhas referentes ao nosso passado com as quais temos de arcar – e, enfim, a finitude, ponto de chegada incontornável da vida, malgrado tentemos voltar-lhe as costas.
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Os interessados no conto de Mário de Alencar podem lê-lo por aqui.

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