De todos os filmes recentes que buscam apreender a selva de pedras atual, eu penso que “Eu, Daniel Blake” (“I, Daniel Blake”, de Ken Loach, vencedor da Palma de Ouro em Cannes em 2016) seja o mais potente. Loach forja uma câmera documental para acompanhar o périplo do recém-infartado Sr. Blake no intuito de seguir as ordens médicas e conseguir do Estado uma licença remunerada.
A história passa-se na desenvolvida Inglaterra, mas constrói uma imagem transnacional da burocracia pública. Países desenvolvidos, subdesenvolvidos e emergentes são vítimas dos meandros incompreensíveis do sistema, cujo retrato irônico foi pintado por Kafka em O Processo, de 1925. No romance do escritor tcheco, a personagem de Josef K. é enredada num processo judiciário inexplicável – e inescapável, pela natureza desconhecida do crime de que era acusado. Quase cem anos depois, Daniel Blake é vítima de uma sociedade burocrata em potência. O horror kafkiano desce do absurdo ao realismo. Para tanto, Loach procura construir uma narrativa rigorosa, que não faz concessões aos gêneros cinematográficos de apelo popular. A realidade invade o público com verossimilhança sufocante.
Acompanhamos um Blake ainda em fase de recuperação, no subúrbio inglês onde mora à instância que lida com a previdência social naquele país. Filas imensas, impossibilidade de conversar com os funcionários sem agendamento prévio, fichas de inscrição a serem impressas virtualmente (principal terror do Sr. Blake que, habilíssimo carpinteiro, é um iletrado digital). O périplo do homem se somará aí ao de Katie, jovem mãe de dois filhos a quem ele procura ajudar. A história se desenhará entre as casas de ambos, e os desafios que enfrentam para conseguir, ele, a licença remunerada; ela, o auxílio alimentação e moradia que a permitiriam cuidar dos filhos.
A delirante burocracia Estatal ganha no filme um indiscutível primeiro plano. O processo caminha vagaroso, enquanto a casa de Blake é paulatinamente despossuída dos móveis e utensílios que o faziam lembrar-se da esposa falecida, e Katie desmaia de desespero e fome (uma das cenas mais pungentes do filme é aquela que tem lugar no centro de distribuição de alimentos). A animalização a que a sociedade contemporânea reduz os homens está bem marcada nessas passagens: na obrigatoriedade do Sr. Blake de abdicar de suas recordações para suprir sua necessidade elementar de alimentação, e no ímpeto com que Katie ataca, já inane, uma lata de conserva, como se bicho fora. O Estado justifica-se alegando imparcialidade e impessoalidade, características fundamentais para a prestação de um bom serviço. O slogan da eficiência escamoteia, como se vê, um descaso histórico (e global) com o cidadão, que só a muito custo recebe a contrapartida de sua contribuição à máquina pública. Blake acabará por sucumbir à doença, e Katie apenas conseguirá botar nos eixos sua economia quando se rende à prostituição.
“Eu, Daniel Blake”, embora construa uma leitura verossímil da sociedade contemporânea, não é realidade, é cinema. Forja uma narrativa que tangencia gêneros e temáticas já muito tratados pela cinematografia – a prostituição para o sustento da prole, por exemplo, é tema velho como Os miseráveis, de Hugo (de 1862). A força do filme está nele não ceder a gêneros que possibilitam a catarse, como o melodrama ou a tragédia. De não utilizar uma trilha sonora adocicada ou um grand finale que levem o público a um pranto regenerador. Loach forja os seus personagens com o respeito de quem sabe que olha uma sociedade à beira do abismo, e que precisa se posicionar sobre isso. No desfecho, resta em cada espectador a sensação de que caminha sobre o fio da navalha, e que a qualquer momento pode se ver reduzido à condição de Katie ou Blake.
Um comentário:
Pra mim o grande filme do ano....
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