Acompanhei de modo algo aleatório a mostra anual do cinema comercial francês, entre as entradas e saídas de arquivos, aqui e no Rio, e a redação de artigos e de relatório de pesquisa. Teço a seguir alguns comentários sobre as produções que vi, bastante motivada pelo artigo de Carlos Mattos "Franceses perdidos no tempo e no espaço", que fez eco ao resultado de meu balanço mental sobre as quatro produções que vi: Tal mãe, tal filha; O Reencontro; Tour de France e Frantz.
Como só vi quatro filmes dentre a dúzia e meia apresentada, esse meu texto obviamente não tem a pretensão de fechar uma interpretação da Mostra ou do cinema francês contemporâneo. De todo modo, o que essa pequena amostragem anuncia é corroborado pelas conclusões que tirei do visionamento algo extenso da produção cinematográfica francesa, que empreendi enquanto eu vivi alguns meses por ali, entre fins de 2012 e princípios de 2013. A decantada “excelência” do cinema francês ficou pra história – no realismo poético dos anos 30 ou na Nouvelle vague, como bem lembra Mattos. Hoje o que se vê é a reprodução à la francesa da standartização oriunda dos Estados Unidos (a qual penetra com a mesma eficácia no Brasil).
Essa impressão me foi muito forte vendo especialmente Tal mãe, tal filha (Telle mère, telle fille, 2017). As duas peças principais da comédia romântica de Noémi Saglio são Juliette Binoche e Camille Cottin, a mãe riponga e filha certinha que engravidam concomitantemente. A estrutura da comédia romântica norte-americana alinhava o enredo que caminha perigosamente no fio da navalha, mas acaba, ao fim e ao cabo, aderindo ao status quo, como soe ao gênero. O filme traz à baila uma questão razoavelmente bem resolvida na França, a legalidade universal do aborto às gestações de até três meses. Mãe e filha decidem a questão com pragmatismo diante do obstetra – “Eu vou continuar com a gravidez, ela vai interrompê-la.”, diz a menina ao médico.
Binoche e Cottin são duas perfeitas contrapartes, ambas muito à vontade nos papéis. Todavia, no cinema apenas rimos eu e dois outros gatos pingados: a moral cristã é ainda fortíssima em nosso seio, e agora novamente amonta no seio francês. A personagem de Binoche desistirá do aborto e terminará a história nos braços do marido, o lindo Lambert Wilson, por sinal, o pai da personagem de Camille Cottin. O filme é gracioso, mas fecha numa mensagem edulcorada que deixa algumas lições amargas: que os panfletos contrários ao casamento homossexual, à adoção de crianças por pais do mesmo sexo e ao aborto, usualmente entregues pelas ruas de Paris por grupos de extrema direita, vêm finalmente germinando (que o diga a quase vitória de Le Pen nas últimas eleições presidenciais). Cinematograficamente, o filme prova o descompasso entre o tema e a forma. O aborto é um tema outsider à comédia romântica, lugar da encenação de consensos sociais. O único filme do tipo que conseguiu se safar bem da tarefa espinhosa foi, ao que eu me lembre, Juno (Jason Reitman, 2007). No mais, adere-se à moralidade a mais convencional, como faz esse filme, ainda que com alguma originalidade e graça.
O Festival Varilux apresenta no Brasil uma mostra do cinema comercial francês e, neste âmbito, não vende gato por lebre. Transparece-se, pelas produções apresentadas, que a viabilização comercial do cinema depende de sua aderência à estéticas/gêneros já consolidados, ou seja, à reprodução do já visto em detrimento das surpresas. O Reencontro (Sage Femme, de Martin Provost, 2017) se sai melhor nesta empreitada. Embora não deixe de lado chavões do gênero – a parteira amarga, porque mal-amada, que vê seu mundo ruir quando a clínica na qual trabalha fecha as portas e a ex-mulher do pai retorna à sua vida às beiras da morte; o perdão; o desaparecimento final da ex-madrasta como catarse ascéptica –, sustenta-se melhor pela química entre Catherine Frot (a parteira) e Catherine Deneuve (a mulher que inconscientemente leva o pai da, então, menina, ao suicídio).
Ademais, Deneuve tem um significado simbólico nesta mostra que homenageia o cinquentenário de Duas Garotas Românticas (Les Demoiselles de Rochefort, de Jacques Demy, 1967) – esta sim, uma sublime releitura dos musicais hollywoodianos, tão crítica quanto mágica. Sua Béatriz é avó de sua Delphine – a garota romântica que deixa Rochefort para encontrar o amor e a fama em Paris. O trajeto aqui é diametralmente oposto: Béatriz volta a Paris depois de um interminável séjour europeu para encontrar um passado em ruínas e para ela própria ruir, ao cabo da história. Vista a partir deste contraponto simbólico, a situação do atual cinema francês é lúgubre.
Tour de France (de Rachid Djaidani, 2016) e Frantz (de François Ozon, 2016) abraçam cada qual um gênero consolidado: o road movie, o primeiro, e a ficção histórica, o segundo. São ambos bem acabados, esteticamente honestos. Duas pregações sobre a humanidade que se sobrepõe às diferenças religiosas e geográficas, reflexos deste contexto de fechamento de fronteiras e pregação de ódios. O primeiro coloca em disputa simbólica pela voz e pelo espaço cinematográfico duas gerações, dois gêneros musicais: Gerard Depardieu e Sadek, a história viva do cinema francês (amante, no filme, do clássico cancioneiro francês) e o hip hop (e com ele, as novas mídias sociais, os novos públicos massivos).
Desnecessário dizer quem leva a melhor – a crista da onda sobrepondo-se à tradição, pintadas uma e outra de modo dicotômico (a personagem de Depardieu como o reacionário nojento que abomina os árabes e a cultura das ruas; a de Sadek – mimese do próprio cantor, que decola na França – como a voz dos jovens, das ruas, das mídias). A representação da vitória final do jovem serve ao gosto contemporâneo – no palco de um megashow em que ele recebe a benção dos seus ídolos. É bem verdade que é política a pintura idealizada da personagem de Sadek – belíssima é a cena em que ele declama O Albatroz, de Charles Baudelaire, ao seu inopinado colega de viagem –, servindo como imposição ao público comum de um estilo musical ainda estigmatizado. Estigmatizado, mas consumido com avidez pelas parcelas jovens do público. Levá-lo ao cinema me parece, antes, um esforço de impô-lo ao público cinematográfico – aquele público que ainda prefere a sala escura aos dispositivos móveis ou à Netflix. Povo à beira do desaparecimento, como o reacionário desempenhado por Depardieu, espelho de Marine Le Pen. Ou, hélas, como o próprio Depardieu, já decrépito - embora divino.
Frantz, por fim, é um filme interessante, mas estranho. Baseado frouxamente numa obra de Lubitsch (Broken Lullaby, de 1932) que eu não vi, mas, rodada no entre-guerras, provavelmente seguia a pegada antibelicista de O Grande Desfile (1925) e Adeus às armas (também de 1932), fabula sobre o encontro entre um soldado francês e a família do soldado alemão que ele matara no front. Quando comparado à obra original, altera-se aqui o foco: Lubitsch, alemão, ficciona sobre a morte de um conterrâneo, Ozon, de um oponente. Frantz gira em torno da necessidade de perdão do assassino imprevisto, igualmente vítima do conflito absurdo. O filme realiza uma leitura distanciada do passado à maneira como Ozon empreendeu anos antes, em Potiche (de 2010), no que tocava aos musicais de Demy. Mas a densidade do tema parece impedir, aqui, a fluidez do jogo.
A mim, ao menos, soou incompreensível o tipo de leitura do passado, a oscilar o preto & branco e o colorido (a cor às vezes funciona como metáfora do falseamento da realidade, enquanto que às vezes pinta de modo algo tacanho a felicidade em meio ao infortúnio).
O resultado é algo pretensioso, embora carregue, em boa medida, a acidez típica de Ozon no enfrentamento da realidade contemporânea (e dentro dela, do atual estado do cinema contemporâneo). Em carta ao povo de casa, a menina finge que tudo está bem, e persiste na cidade cosmopolita, longe do provincianismo de onde viera, até encontrar alguém que sirva de substituto verossímil ao seu amor perdido. Aí está o cinema francês, estendendo-se frágil a tocar um passado glorioso - cada vez mais distante -, dobrando-se a substitutos plausíveis, na falta da grandiosidade perdida.
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