quarta-feira, 30 de agosto de 2017

O feminino nas telas: “Lady Macbeth” (2016) e “O estranho que nós amamos” (2017)

O blog hoje trata de um tema candente desde que notórias figuras de Hollywood (a exemplo de Meryl Streep) clamaram pela igualdade entre os sexos, no que toca ao protagonismo das fitas. Um levantamento por alto demonstra o papel no mais das vezes de coadjuvante desempenhado pelas mulheres nas telas, a figurarem como musas de protagonistas machões (daí à busca, para compor os castings, de fêmeas com as caras e os corpos requeridos pelos editais de moda, logo, jovens e magras). As perguntas acéfalas que jornalistas tecem às atrizes nos tapetes vermelhos apenas vêm a corroborar o papel de figura decorativa atribuído ao “belo sexo” – epíteto tão mofado quanto duradouro. A indústria do cinema apenas repercute o estereótipo – como microcosmo social, reproduz nos filmes os jogos de poder em voga na sociedade.
Daí à relevância de “Lady Macbeth” (William Oldroyd) e “O estranho que nós amamos” ("The Beguiled", Sofia Coppola), filmes de altissonante presença feminina. De protagonismo inequívoco feminino, questionamo-nos? O segundo mais que o primeiro, talvez.
Caminhemos a passo. “Lady Macbeth” é uma produção inglesa que adapta Lady Macbeth de Mtsensk, escrito Nikolai Leskov em 1865 (romance que é, por sua vez, vazado ao gênero operístico por Dmitri Shostakovich, denominada a ópera Lady Macbeth do distrito de Mtsensk, em 1934). O enredo é trasladado da Rússia natal aos prados ingleses – panorama de amplitudes largas, ventos fortes e tons terrosos que servem de expressão à alma resoluta e turbada da protagonista. Esta contemporânea Lady Macbeth traz em si, como a protagonista de Leskov e Shostakovich, o signo da desmesura que se transforma em tirania de que é dotado a personagem primordial, saída da pena de Shakespeare.
O encaminhamento dado à ação merece uma reflexão mais ponderada. Porque o enxerto da história, da Rússia czarista a uma Inglaterra possivelmente vitoriana (poucos dados contextuais nos são oferecidos) acontece de modo algo questionável. No romance está em jogo o cerceamento feminino imposto por uma sociedade patriarcal inserida num regime extremamente excludente, de abismo social profundo. Não tive contato com o texto de Leskov, mas a montagem operística – exibida em première noutro contexto tenso, o regime stalinista – traz com força os meandros sociais para o cerne do drama. Exibida numa época ainda áurea do Teatro Municipal de São Paulo, em meados do ano passado, por uma companhia e um regente russos, ficou clara a conotação política da obra: Shostakovich faz a crítica social impregnar-se na técnica, transformando a sua ópera num pastiche da grande ópera ocidental (pagou caro por seguir a trilha da música de vaudeville e da dissonância anárquica, porque foi logo rotulado por Stalin de inimigo da nação, apenas se redimindo anos mais tarde, ao escrever sua 5ª Sinfonia, de rasgado patriotismo).
O filme de William Oldroyd perde força ao diluir o contexto histórico. Cria-se de saída uma atmosfera agoniante, de aprisionamento e silêncio. Acompanhamos o percurso de Katherine desde o matrimônio, num templo opressivo que serve de metáfora ao lugar social ocupado pelo marido nobre. Impedida de sair de casa, vigiada pelo marido, sogro e empregada e sem ver o seu casamento consumado, a jovem transforma-se numa neurótica que nada deve às pacientes de Freud, a corar frente aos trabalhadores braçais que labutam para o esposo, invejando em silêncio a liberalidade carnal com que eles tratam a sua empregada. Minha narrativa é muito oriunda da inferência, já que o roteiro (de Alice Birch) pouco explicita – e mesmo excelente, a atriz protagonista (a recém saída da adolescência Florence Pugh é, como arvorou a crítica, mesmo um deslumbramento) não dá conta de preencher os seus furos.
Tique incontornável da cinematografia contemporânea, a vagueza planta aqui má semente, já que acaba por esfarelar o sentido crítico da obra original – plenamente aproveitado por sua versão operística. Katherine finalmente encontra a realização sexual nos braços de um daqueles reles (no sentido moral, bem entendido) operários, rolando a ladeira do desvario desde a plenitude. A leitura matizada que dela a princípio faz a câmera (afinal, a mulher é fruto da exploração não só de sua classe social – já que nascera pobre e fora “comprada” pelo marido, tal e qual estrita mercadoria como de seu gênero, historicamente vilipendiado) descamba, a partir de meados do filme, numa denuncia de viés consideravelmente moralista dos crimes que ela passa a cometer, como se eles tivessem caráter unicamente passional.
O desdém ao contexto histórico resvala para a incompreensão das relações de poder em jogo então. Mortos o sogro e o marido, chega à trama, como um deus ex machina, um garotinho negro trazido pela mão da avó – filho bastardo que o marido assumira em surdina, provavelmente oriundo da relação que ele tivera com uma escrava. O conhecimento da execrável dominação do elemento negro pelo elemento branco torna incompreensível a relação que se estabelece entre a patroinha, a criança e a avó; em que a mulher negra exerce sobre a branca uma manipulação inexplicável historicamente, a menos que recuperemos leituras enviesadas da história, a exemplo daquela feita por Griffith em “Nascimento de uma nação” (1915) – que de modo pusilânime inverte a chave do preconceito, transformando negros em dominadores e brancos em dominados.
Este conhecimento contextual é elemento que comparece com força em “O estranho que nós amamos”, versão de Sofia Coppola à obra rodada por Clint Eastwood em 1971 (que não vi, portanto deixo de lado, aqui). Como o mencionado “Nascimento de uma nação”, o filme se desenrola durante a Guerra de Secessão. A conflagração é trazida para o cerne do filme, embora se passe para além dos portões do internato administrado por Miss Martha (Nicole Kidman), no Sul dos Estados Unidos. Coppola lê com sensibilidade (o roteiro é seu, baseado naquele rodado por Eastwood) a introdução do elemento masculino – viril e belicoso – entre sete mulheres que o advento da guerra abandonara ao Deus dará.
O filme abre-se entre os bosques verdejantes e o pórtico imponente da casa na qual em breve adentrará o soldado ianque Mc Burney, que, ferido, abandonara o batalhão junto do qual lutava, inimigo dos sulistas. O filme não se furta a construir desde o início a tensão, pela trilha sonora que lê a contrapelo aquele ambiente idílico. A violência inerente às old plantations do Sul emerge desse choque entre música e imagem. O soldado inimigo que passa a privar da companhia das mulheres é o primeiro homem em muito tempo em meio a mulheres carentes de companhia, o Norte progressista no Sul reacionário, o desertor entre os patriotas, o invasor. 
Esta multiplicidade de sentidos é explorada com perspicácia pelo filme, que se fecha numa imagem de sororidade feminina que nem por isso procura dar respostas únicas às tensões. Se há aqui igualmente a vagueza, ela é abraçada de modo muito mais consequente que em “Lady Macbeth”. Se a penumbra persiste na cena final transformada em tableau – a exemplo do que se dá no primeiro filme – ao menos persiste, aqui, um olhar ao gênero feminino que foge à perpetuação de preconceitos arraigados.

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