Resenha originalmente escrita a convite do Cine Suffragette, e publicada aqui.
“Zama”, o filme mais recente de Lucrecia Martel, é a história da América Latina que faltava – e precisava – ser contada.
Uma série de países viabiliza o esforço (os créditos da produção, a contar pelo IMDB, são impressionantes, figurando países como, além da Argentina, o Brasil, a Espanha, o México, a França e Portugal – entre outros –, e nomes como Gael Garcia Bernal, Pedro Almodóvar e Danny Glover), e o resultado é formalmente impecável: a direção de fotografia de Rui Poças, a direção de arte de Renata Pinheiro e o design de som de Guido Berenblum fazendo emergir com perícia inequívoca os fantasmas individuais da cineasta, magnificados, agora, contra o pano de fundo da delirante colonização da América pelo Velho Mundo.
Zama |
O filme toma como objeto a colonização da América Espanhola, mas podemos sem esforço estendê-la, nos seus contornos e intenções, a essas nossas plagas. A obra adapta o romance homônimo de Antonio Di Benedetto, escrito em 1956, o qual se centra no oficial espanhol que lhe dá título: Don Diego de Zama, nobre que se vê obrigado a se alongar num rincão do Paraguai, aguardando uma transferência a Buenos Aires (à “civilização”) que nunca se realiza. Na obra original, a estada se dá em Assunção. Porém, Assunção já era cidade importante no século XVIII – ela que fora um dos principais núcleos de colonização da América Espanhola. A obra de Lucrecia Martel recua o protagonista a um interior em que o exótico se aproxima do inóspito, e o real da loucura.
Zama |
Uma figuração mais onírica (ou alucinatória) que realista da cidade, projetada pelo febril Zama, já àquela altura chafurdado até o pescoço na burocracia Estatal, a aguardar uma transferência que nunca haveria de chegar. Martel sublinha com força o caráter de mascarada da colonização espanhola na América Latina (e, por extensão, no contexto brasileiro). Zama ostenta com enfado seus trajes rotos de cortesão espanhol, a exemplo da entourage daquela corte transplantada aos trópicos, a oficiar “à europeia”, em meio a uma natureza indomável e a uma sociedade implantada a fórceps, feita de um punhado de dominadores e de um rol de dominados a nutrirem ódios viscerais e inconfessados, como numa fábula primordial.
Frans Post (séc. XVII) |
Parcela da crítica anda sentindo falta de realismo histórico em “Zama”, como se a história fosse objeto estanque a ser tomado e repercutido, como se não fosse, ela própria, criação, construída a partir das perguntas que o analista contemporâneo lança ao tempo pregresso. Gosto de pensar em “Zama”, pelos deslocamentos que ele promove, como uma versão argentina do “Leopardo” de Luchino Visconti (de 1963), filme baseado na obra-literária igualmente escrita num longo distanciamento temporal do evento narrado (de Giuseppe Tomasi di Lampedusa, 1959), a qual toma o seu tema – neste caso, a unificação italiana, ocorrida em meados do século XIX – sob a ótica do seu momento de produção.
Zama |
Martel, como Visconti, são dois potentes criadores, para os quais a história adentra a ficção num só tempo como objeto e como metalinguagem. Daí a presença forte, nessas duas obras, da arte da pintura. Ao aproximarem o quadro cinematográfico do pictórico, ambos colocam em questionamento o caráter mimético da pintura realizada entre os séculos XVII e XIX, a qual, embora se ofereça ao espectador enquanto encapsulamento de um tempo, trata-se, na verdade, de realidade filtrada pelos olhos do artista.
A unificação italiana de Visconti se constrói sobre o temário da pintura romântica dos Oitocentos: os grandes ideais, as grandes revoluções, os grandes dramas de amor, os retratos de família da tradicional nobreza europeia. Don Fabrizio Salina, seu narrador, tem consciência de que vive os estertores de uma era e a registra à maneira de um zeloso pintor romântico, eternizando-a com o pincel da idealização.
Debret (1823) |
Já Lucrecia Martel recua no tempo e toma a aquarela dos viajantes europeus que se demoraram na América Latina; em missões artísticas financiadas por nações variadas, para as quais a pintura exercia um caráter de registro e de controle sobre os territórios conquistados. Zama à beira do rio que banha a cidade, tendo atrás de si a topografia angulosa e preponderante; as choças de barro e teto de palha, a oferecerem precário conforto naqueles rincões; as investidas dos conquistadores pelos sertões, em busca de ouro – ou, neste caso, da destruição de um vilão ubíquo, terrível, embora tão frágil de corpo; a tirania perpetrada aos negros e nativos; os quadros familiares, cujas encantadoras cores saturadas caminham par a par com temáticas nas quais se ressalta com força o abismo social que fundou a América:
Esses conhecidos registros pictóricos são abordados com rigor poético e crítico por Martel, ora por meio do deslocamento do quadro, no indígena tiranizado que comete um ato capital contra si, fora do enquadramento da objetiva; ora na aproximação da objetiva, que focaliza as vestes rotas e as perucas desalinhadas – potencializando-se o ridículo de se transplantar a sociedade europeia aos trópicos. Ora na inserção de tangos sestrosos de meados do século XX, a ironizarem aquele projeto de sociedade que procurava se arrimar à custa da exploração do outro.
Zama |
O percurso interpretativo é, no entanto, fruto da reflexão desta analista. Porque a força deste filme está no fato de ele haver casado a forma ao tema, abdicando da busca ao realismo e à linearidade que são próprios das narrativas históricas, submergindo-se, no ato de sua construção, nas mesmas águas turvas que enredam Zama em sua viagem – em nossa viagem? – sem volta à barbárie que ele ajudou a fundar.