Na segunda semana de outubro empreendi a primeira viagem sem fins estritamente práticos que faço em anos. O motivo: passar uma semana em Nova Iorque assistindo, pessoalmente, às óperas do Metropolitan. E relato, a partir daqui, a experiência.
Principio pelas generalidades, antes mergulhar em análises mais detidas das quatro produções que vi ali, Aida (Verdi), La Fanciulla del West (Puccini), Samson et Dalila (Saint-Saëns) e La Bohème (Puccini), as duas primeiras com dois elencos diferentes. Semana escolhida cirurgicamente, na qual o MET foi ocupado por uma porção de artistas de nomeada internacional, vários de meus favoritos, dentre eles Eva-Maria Westbroek, Elina Garanca, Anna Netrebko, Jonas Kaufmann, Zeljko Lucic e Roberto Alagna.
Renée Fleming e Elina Garanca em O Cavaleiro da Rosa (MET, 2017) |
O palco do MET desde o Family Circle |
A consolidação de eventos como o brasileiro Ópera na Tela (que traz aos cinemas daqui um feixe de produções europeias), ou o MET em HD (o braço cinematográfico do Metropolitan, exibido ao vivo em cerca de 2500 cinemas/80 países, depois disponibilizado no referido site sob demanda) denota uma simbiose entre o star system cinematográfico e o operístico (talvez, melhor dizendo, denota a migração da estrutura de criação de celebridades do cinema à ópera). Os closes cinematográficos engendram um novo tipo de cantor, atento tanto à voz quanto às feições da personagem representada.
Mais que isso: à medida que a câmera se achega, os espaços mais recônditos da personagem não são mais expressos pela voz, mas sim pela fisionomia. A mise-en-scène cinematográfica passa a nutrir a ópera, daí a escolha de artistas cujos físicos cada vez mais se aproximam das personagens representadas. A música e o canto, cernes do gênero operístico, passam a servir à intensificação dos rostos que preenchem a tela, dividindo com eles o protagonismo, a exemplo do que se dá com a música no cinema.
Piquenique ao sol durante os (longos) intervalos |
Eu no meio disso: num só tempo apaixonada e analista, procuro colocar-me de fora para observar o nascimento de seres no mais das vezes completamente formatados segundo velhas convenções, e, não obstante, acabo sempre sendo carregada de roldão para dentro desses mundos de ficção, submetida por Elina Garanca do mesmo modo como sou sempre submetida por Garbo – grandes, belas e angulosas andróginas às quais as convenções seguem atribuindo sobretudo papéis de vampiras (a exceção é o já mencionado deslumbrante Octavian de Garanca, que atravessa os escopos entre os gêneros feminino e masculino com a facilidade de quem troca uma peruca).
Dez câmeras registram, em duas ocasiões diferentes (na primeira, num teste às vésperas da exibição do espetáculo ao vivo) as performances operísticas que serão, depois, transmitidas ao vivo, ao redor do mundo, pelo MET em HD. Oito microfones estão distribuídos pelo procênio, direcionados aos artistas.
Ocupei, no dia em que vi a maquinaria em ação, um lugar na primeira fileira da plateia (aliás, aos estudantes que frequentarem o MET, sugiro que cheguem na manhã da récita na bilheteria do teatro, com a carteirinha na mão, pois praticamente sempre há possibilidade de trocar-se gratuitamente o ingresso por um estudantil, na plateia ou na Grand Tier, cujos preços são originalmente bem salgados). Pude dali conversar com o técnico responsável pelo manejo de uma das câmeras, a respeito dos equipamentos de filmagem de que a casa lança mão:
Vista do hall central |
Uma grua com braço de mais ou menos 4 metros de comprimento, instalada no foyer lateral imediatamente à esquerda do palco, dá à câmera aquela mobilidade bailarina sobre a qual me referi acima. Uma dependura-se no 3º foyer à direita. Outra, num trilho, percorre, num movimento de vai-e-vem, a metade direita do palco. Outra se posiciona entre o fosso da orquestra e o corredor, imediatamente ao lado do maestro. No dia em que vi a maquinaria funcionando (na véspera da exibição ao vivo de Samson et Dalila), uma câmera no canto lateral esquerdo da fileira M apresentava uma síntese de uma decupagem bastante tributária do cinema. Mais duas ficam ao fundo do palco, em alturas diferentes, e outras três cobrem os bastidores. Do lado de fora do teatro, o diretor de cena, num furgão, constrói a decupagem do espetáculo em tempo real. A gravação-teste é depois revista e ajustada para a gravação/exibição efetiva, em tempo real. A gravação requer uma força-tarefa que custa milhões (os patrocinadores são sempre lembrados nas Playbills dos espetáculos).
Nos seis pisos do Metropolitan – 3800 lugares, duas vezes o Teatro Municipal de São Paulo ou do Rio –, Elina Garanca recupera as suas dimensões originais. Quase invisível desde certas distâncias (do Family Circle, último andar atrás do Balcão, no 5º piso da sala, por exemplo), readquire a sua grandeza pela voz, antes de ser seccionada pelas dez câmeras espalhadas pelo teatro e oferecida aos espectadores cinematográficos como grandes e suculentos pedaços de pêssegos em conserva (na acepção de Alberto Cavalcanti ao analisar com sagacidade a diferença entre a encenação/fruição do teatro e do cinema).
A câmera na grua |
Continua...
Um comentário:
Que experiência incrível poder viajar para ver coisas tão fascinantes e inspiradoras. Quem dera um dia tenhamos aqui no Brasil uma maior valorização desse tipo de arte. Eu gostei do seu artigo porque me identifiquei muito com seu olhar para as coisas, minha esposa sempre estranha o motivo de eu ficar reparando onde estão posicionadas as câmeras, as luzes, como são distribuídos os lugares. Que bom ver que não sou o único que faz isso hehe.
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