Asghar Farhadi, artífice de duas obras premiadas com Oscars de Melhor Filme Estrangeiro entre em 2012 e 2017 – A Separação (Jodaeiye Nader az Simin, 2011) e O Apartamento (Forushande, 2016) –, redireciona a objetiva do Irã a um vilarejo enfronhado na Espanha, reino cuja luz dourada inesperadamente escamoteia arraigados preconceitos.
Farhadi nunca consegue ser tão eficiente distante de sua terra natal quanto o é entre os seus. Seus filmes oscarizados – o primeiro, uma obra-prima – são bastante mais bem resolvidos que O Passado, filme realizado entre ambas, com o qual ele migra do Irã à França, debruçando-se longa e arrastadamente sobre um casal multiétnico composto por uma francesa (Bérénice Bejo) e um iraniano (Tahar Rahim), que a abandona e aos filhos para retornar à sua terra.
A trama de O Passado equilibra-se de modo pouco estável entre o drama familiar e a trama policialesca – mistura equilibrada de forma modelar no extraordinário A Separação, e igualmente bem dosada em O Apartamento¸quiçá porque, nessas duas obras, os dramas individuais embebem-se na seara coletiva, já que o meio social é o responsável por forjar os silêncios e os cerceamentos.
Todos lo saben, sem ser uma obra-prima, vai por este caminho mais sólido. Mergulha fundo numa família tradicional espanhola, lançando luzes sobre as suas fissuras. Eu ouso pensar que, nesta obra, o objeto central é o gênero melodramático: que ao mesmo tempo serve de molde à intriga narrada pela obra e é revirado e ironizado, já que é visto de fora, pela câmera migrante do diretor.
Dificilmente poderíamos dizer que a cinematografia ocidental é uma estrangeira para Farhadi. A Separação é, pelo equilíbrio no trabalho entre o suspense e a surpresa que realiza, pelo timing preciso de thriller que tem, bastante tributário da obra de Hitchcock. Igualmente, a presença, em suas obras, da nata dos artistas estrangeiros, denota que o diretor tem trânsito fluído pela cinematografia mainstream.
Em Todos lo saben, dividem a cena três grandes: Penélope Cruz, Javier Bardem e Ricardo Darín: um triângulo amoroso, percebido logo de saída pelo espectador – o melodrama é feito de maceradas convenções, que eliminam da narrativa quaisquer porosidades.
A trama divide-se em três atos, a exemplo do que se dá nos clássicos do gênero melodramático:
1- Laura, personagem de Penélope Cruz, chega ao vilarejo espanhol, vinda da Argentina, com os dois filhos, para o casamento da irmã. O marido argentino queda-se doente em casa, a filha constrói a ponte entre a família e as duas nacionalidades, por meio de uma chamada de vídeo ao pai. Para além da apresentação do núcleo familiar que se consegue daí, observa-se que a presença da câmera, o myse-en-abyme, é uma constante neste melodrama, o qual, sem negar as convenções do gênero, coloca-as diante de um espelho. Já no vilarejo, a terceira ponta do triângulo ingressa na obra: Bardem/Paco, namorado de juventude de Laura.
2- Constroem-se as tensões: a saída de motocicleta da luminosa filha de Laura, com o seu namoradinho espanhol (repetição da história de Laura e Paco); o drama da irmã mais jovem, deixada com a filha pelo marido que vai tentar a sorte noutro país; a química inquestionável entre Laura e Paco. Casa-se a irmã, enquanto, na torre da igreja cujo sino fora anos antes consertado graças à doação de Laura e do marido, pombas desarvoradas chocam-se contra o vidro, e o namoradinho da menina lhe dá detalhes do affair pregresso entre Laura e Paco. A multidão ruidosa, observada numa subjetiva pelos olhos do pequeno filho de Laura e Alejandro (Darín), ganha contornos de turba descontrolada. Tempestade, queda de energia. O nó dramático chega ao ponto culminante. Farhadi, que é bom manejador do suspense, multiplica as veredas com inquestionável ironia, para que o público se perca por elas no intuito de desvendar um crime que ainda não se deu, todavia, é prenunciado desde antes da abertura da obra, já em seu cartaz.
3- No terceiro ato se esquadrinha o sofrimento de Laura e do marido – que àquela altura já se juntava à família espanhola – frente ao sequestro da menina. Cobra-se um resgate que os pais falidos não podem pagar. Paco, antigo funcionário dos pais de Laura, pobre e vilipendiado, que ascende socialmente depois de ter comprado as terras da antiga namorada, ouve dela a incontornável confissão da paternidade da menina sequestrada. Moralmente imbricado na ação, caberá a si o desenlace do conflito, que o obriga a abrir mão dos bens que conquistara.
Contado assim, Todos lo saben soa um thriller previsível, já que subsumido na estrutura convencional do melodrama. A paternidade da menina é fato notório de todos, já diz o título; mesmo o público logo se dá conta do fato.
A força do filme está, a meu ver, no olhar a contrapelo que ele lança ao gênero, minando-o a partir de sua base.
Por exemplo, no âmbito da casa. Gênero burguês, o melodrama elege a propriedade (privada) e a família nuclear como o espaço da segurança, cercando-o por muros que explicitamente dividem o interno do externo. O vilão vem de fora, e ora insinua-se dentro do núcleo familiar, contaminando-o, ora carrega dali o herói.
Todos lo saben adota a ambivalência, que é, no entanto, invertida. À medida que se esquadrinha a casa, a câmera faz emergir ódios vicerais. Paco é a todo o momento considerado “o estrangeiro” por aquela família tradicional; presença incômoda por sua ascensão social ocorrida após a aquisição da porção da propriedade familiar que cabia a Laura. E o mal brota, ali, não de fora, mas de dentro, cria do preconceito virulento nutrido pelo patriarca.
Outra característica fundamental do gênero melodramático olhada com visada irônica por Farhadi é o cristianismo. Darín é Alejandro, o cristão carola que doa o dinheiro para a reforma do sino da igreja – personagem inglória, que ele desempenha com a sua costumeira agudeza. Na casa dos sogros, é ele quem puxa um anacrônico louvor à mesa, antes do café da manhã. A Paco, afirma que Deus o salvou ao ter adotado para si a filha do outro. E ao fim e ao cabo, prefere o silêncio a ter de revelar a verdade à filha.
No plano fílmico, o silêncio ensurdecedor emerge no filme do casamento, que a família vê ad nauseam no intuito de encontrar algum indício do criminoso. Blow Up (1966), a obra-prima de Antonioni, é o mais cabal modelo de filme em que a câmera exerce o papel delator – thriller surpreendente, em que a câmera fotográfica ganha foros de câmera cinematográfica, em que os closes, manipulados pela revelação perspicaz, fazem emergir a verdade. Já em Todos lo saben, o notório conhecimento coletivo que dá título à obra surge aos olhos do mundo como escamoteamento. Nada se depreende daquelas imagens do casamento, que se desenrolam aos olhos do público enquanto a ficção feliz de uma família proba.
Já a mencionada hipocrisia encoberta pelo manto da religião encontra outra bela imagem quando a matriarca da família narra ao pai a verdade sobre o sequestro, sob os jatos d’água do caminhão da prefeitura, que de uma mesma feita lava a ambos e ao cruzeiro, à guisa de perdão. Como se vê, embora a menina retorne, o final feliz típico do melodrama é, aqui, colocado entre aspas. O manto translúcido de água, que silencia e obnubila os velhos, ao final da obra, serve de metáfora ao barro putrefato dos preconceitos que corre subterrâneo no seio dessas famílias tradicionais pretensamente solares, emergindo a qualquer possibilidade de surgimento do novo, a qualquer ameaça de abalo do status quo, e engolindo tudo por onde passa, com a sua viscosidade inescapável.
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