terça-feira, 21 de março de 2023

A ensimesmada Hollywood: pitacos sobre o Oscar 2023


Assumo aqui a tarefa ousada de inaugurar, este ano, este blog que já se tornou bissexto, falando sobre algo que não seja cinema silencioso, coisa que há anos me assombra. Falando, mais especificamente, sobre os filmes indicados ao Oscar 2023, e sobre os vitoriosos; assunto que já gerou muito choro e ranger de dentes dentre meus amigos, colegas e conhecidos.
Revisitei en passant meus (vários) textos sobre o Oscar, escritos de forma passional desde que inaugurei o Filmes, filmes, filmes, em 2010. Textos longos e ponderados, o oposto do que me proponho a fazer aqui, nessas notas que não passarão de pitacos – como aponta o título – sobre a solenidade deste ano, e as obras e deidades que ela colocou em seu panteão. Concentro-me aqui nos filmes concorrentes ao prêmio de Melhor Filme.
Os Fabelmans
Vi-me em fevereiro assistindo, numa sanha louca, a praticamente todos os indicados do ano. Se não completei o álbum de figurinhas, estive muito perto: Nada de Novo no Front eu não vi anunciado nos cinemas; outras obras, como Elvis e Top Gun, já não estavam em cartaz; outras, como Avatar, preferi fingir que não estivessem – enquanto o primeiro filme da franquia surpreendeu pelo uso de tirar o fôlego da tecnologia em 3D (a trama, malgrado a sua visada socioambiental, era pífia), não consegui ver, no trailer ou no poster do segundo, elemento que transcendesse o primeiro do ponto de vista técnico ou narrativo. 
A relativa facilidade em passar pelas obras indicadas revela uma característica nefasta do Oscar – ou da Academia de Artes Cinematográficas, que o atribui: o fato de apenas uma dúzia de obras intercambiarem-se em nos quesitos de premiação. Fiz uma checagem rápida e encontrei, num artigo publicado pela Cláudia em 2019, a referência aos cerca de oito mil membros pertencentes aos quadros da Academia, que podem decidir quem devem indicar e, a partir daí, quem se sagrará vencedor (os meandros disso podem ser conferidos aqui). 
Tár
O fato de tantas cabeças ao redor do mundo poderem tomar esta decisão acenaria a uma teórica pluralidade, não fosse o ensimesmamento da indústria do cinema, centrada em Hollywood e nas obras dali saídas. O volume considerável de dinheiro gasto com marketing, por filmes que, às vezes, têm como principal qualidade isso mesmo, serem boas peças de marketing, cria essas unanimidades nocivas. 
Daí, por exemplo a raridade que é vermos a indicação a Melhor Filme de uma obra que não tenha o inglês como idioma principal. Uma das honrosas exceções, o leitor se lembrará, é o sul-coreano Parasita (2019), cujo feito inédito foi conquistar os prêmios de Melhor Filme e de Melhor Filme Estrangeiro em 2020 – mas, neste caso, a exceção vem marcada pelo exagero, já que, embora a obra tenha boa cinematografia, bloca de forma escolar os opostos, descambando, no âmbito do roteiro, para o artificioso/inverossímil. 
Este ano, aliás, discutiu-se sobre o sufocamento gerado pelo marketing de Hollywood, ao se colocar em pauta a indicação de Andrea Riseborough por To Leslie – alçada a este posto por um grupo independente e aguerrido. Nada mais digo a este respeito, já que não assisti à obra. 
Discutir o Oscar não é propriamente discutir cinema, mas sim os arranjos tramados na principal indústria de cinema do mundo, estabelecida numa das principais potências mundiais. A partir deste lugar, surpreende que alguns trabalhos dignos de nota sejam galardoados com a indicação ao prêmio. Vamos a eles – ou a alguns deles, a partir do lugar desta que vos fala. 
Comecemos pela obra mais premiada. Tudo em todos os lugares ao mesmo tempo, codirigida por Daniel Kwan e Daniel Scheinert, arrebatou, além dos prêmios de melhor atriz e de atriz e ator coadjuvantes, as láureas de roteiro original, montagem, diretor e filme. 
Sou, como cristã não praticante e comunista de coração, a favor de dividirem-se as benesses. Não sou do time cujos dentes rangeram com esta vitória – ao contrário, este, junto do Triângulo da Tristeza, foram os meus favoritos desta edição da premiação. Se roteiro e sobretudo montagem são os grandes trunfos desta obra, não seria de mau alvitre premiar-se o diretor Ruben Östlund, pela visada ácida – e tão verossímil – que lança às relações humanas em Triângulo da tristeza, ou mesmo Martin McDonagh, pelo pulso com que conduz esta obra quase que teatral que é Os Banshees de Inisherin
Os intérpretes vitoriosos foram muito bem escolhidos. Michelle Yeoh e Jamie Lee Curtis merecem os prêmios por cooperarem na sustentação da continuidade narrativa no ultra clipado Tudo em Todo Lugar ao Mesmo Tempo. Para além disso, ambas mergulham de cabeça na atmosfera de teatro do absurdo que emana da obra, que se centra na luta que Evelyn – imigrante chinesa de classe média-baixa – leva a cabo no multiverso para salvar o mundo; luta deflagrada, vejamos a identificação, no justo momento em que ela se digladia para concluir a sua declaração de imposto de renda... O mesmo trabalho impecável realiza Ke Huy Quan, que na obra desempenha o papel do marido da personagem de Michelle Yeoh, e de um sem-número de personagens afins, variados ad eternum, nas mais recônditas partes do multiverso. 
Criticou-se a pieguice de fundo da obra – já que, ao fim e ao cabo, a mãe viaja pelos universos paralelos para salvar a filha desgarrada transformada em arquivilã. Eu prefiro lê-la pelo viés do humor que tudo destrói: as tramas melodramáticas, a narrativa linear, as pretensiosas sagas que tematizam os meta/multiversos, etc. Os prêmios inéditos aos dois artistas orientais que participaram da produção é outro elemento que depõe a favor das escolhas – do rol de intérpretes vencedores, não saiu dos quadros de Tudo em Todo Lugar ao Mesmo Tempo apenas Brendan Fraser, deslumbrante em A Baleia


Algumas palavras, agora, sobre as demais obras indicadas – saliento, que eu vi: 

O irlandês Os Banshees de Inisherin (Martin McDonagh) passa-se numa ilha na costa oeste da Irlanda. Centra-se na história dos amigos Padraic (Colin Farrell) e Colm (Brendan Gleeson), mais especificamente na ruptura ocorrida entre ambos depois que o segundo se recusa a continuar amigo do primeiro. Para além da visada metafórica do filme – que, conforme acenou a crítica, metaforiza a ruptura traumática entre as duas Irlandas –, ele seduz pela construção matizada das personagens de Padraic e de sua irmã. Farrell, excelente, faz emergir com contenção e profundidade o espantoso da ruptura. A beleza do cenário recôndito e da trilha sonora emolduram a trama teatral, em que a dialética é colocada em primeiro plano. 
Os Fabelmans (Steven Spielberg) é uma exegese bela, mas algo longa e arrastada, das memórias de seu diretor, desde que pela primeira vez ele coloca as mãos numa câmera cinematográfica, nos Estados Unidos dos anos de 1960. Michelle Williams, indicada ao Oscar de melhor atriz, é a mãe do menino – mulher típica da época, presa aos liames da maternidade e do casamento. Os amantes de cinema se identificarão com o menino que sonha em ser cineasta: sua primeira fascinação pela sala de exibição, sua formação como cinéfilo e realizador, a primeira vez que vê o seu ídolo diretor. No entanto, atravessa a obra um tom grandiloquente que me incomodou. 
Em Triângulo da Tristeza, Ruben Östlund centra-se nos personagens de um casal de top models internacionais. A narrativa principia esmiuçando com assertividade ímpar os meandros da indústria da moda: a coisificação dos corpos, a indústria da propaganda, a mercantilização das relações sociais. Tal e qual cobaias de laboratório, o jovem casal que principia a história travando uma disputa para decidir quem pagará a conta do restaurante de grife acaba solto num luxuoso cruzeiro e, enfim, numa ilha deserta, depois que o navio afunda. Östlund estabelece e redefine com maestria os lugares sociais do grupo com quem os jovens cruzam, nesta que é a mais disruptiva obra do Oscar. 
Por fim, dois filmes centrados em personagens femininas: Entre mulheres (Sarah Polley) e Tár (Tod Field). O primeiro, premiado com o Oscar de melhor roteiro adaptado, ficcionaliza em cima da história real de certa comunidade carola cujos homens isolavam as mulheres, impedindo-as de estudar e as intoxicando para submetê-las a violações sexuais que eles atribuíam ao sobrenatural. A premissa é dolorosa e precisa, as atuações densas, e a intenção – de se dar a voz exclusivamente aos dramas e lutas femininas, de forma dialética, num jogo teatral – é das melhores. No entanto, há falta candente de verossimilhança neste quadro: a densidade dos argumentos relativos à submissão feminina lançados à roda por essas mulheres não condiz com o seu lugar social. 
Tár toma como objeto uma sorte oposta de personagem feminina, ficcionalizando sobre os esforços da regente da reputadíssima Filarmônica de Berlim (escolha irônica, dado o notório preconceito de gênero daquele grupo) para se alçar e se manter neste posto. Alguma tinta foi gasta, especialmente por mulheres do ramo, criticando a vilania da personagem. No entanto, a câmera oscila entre objetivas diretas e subjetivas indiretas, mergulhando um bocado nos fantasmas interiores da mulher, daí à impossibilidade de cravarmos a sua vilania. A derrocada de Tár é tão altissonante quanto a sua ascensão: ela termina comandando uma orquestra de fundo de quintal asiática durante a projeção de um filme de super-herói. A inverossimilhança se sobrepõe à vilania, e a curva dramática forçada serve sobretudo à Cate Blanchett, maravilhosa como sempre.
Amado e odiado, o Oscar segue há quase 100 anos o prêmio mais relevante da indústria do cinema. Apesar das controvérsias que gera, que ele siga fomentando a frequentação das salas de exibição – que decai a olhos vistos frente ao streaming –, e retirando do ostracismo gente que o merece, a exemplo de Brendan Fraser.

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