quinta-feira, 13 de outubro de 2022

Giornate del Cinema Muto de Pordenone 2022 - Dia 8, parte 2


Dia 8: sábado, 8 de outubro de 2021 

Último programa da Giornate. Como anunciado na resenha anterior, vimos a comédia norte-americana Up in Mabel’s Room (1926, Mason Hopper, 79 min.), preservada pela UCLA Film & Television Archive, de Los Angeles. Um grande fecho, que coroou escolhas no geral bem feitas – sei que prego no deserto sempre que ressalto a necessidade de filmes latino-americanos na Mostra, quase de todo ausentes nos eventos presenciais, em que o programa é mais extenso, e completamente ausentes na secção virtual da mostra. Mas vamos aos apontamentos sobre a obra de Hopper. 
Up in Mabel’s Room é uma ótima comédia da Companhia de Al Christie cujos laivos farsescos são ressaltados pelo excelente trabalho realizado em colaboração entre o pianista e violinista/violista Günter A. Buchwald e a Zerorchestra – orquestra de pegada jazzística nascida em Pordenone no centenário do cinema, em 1895, e que presta a ele um tributo inquestionável, já que suas colaborações anuais na Giornate são sempre pontos altos do evento. Esse trabalho conjunto explicita o papel fundamental da música na “cena muda” – é claro que a condição ótima encontrada na Giornate não se observava usualmente, na época, nos cinemas do redor do mundo. Sobretudo neste caso, em que o éthos da Zerorchestra se casa tão bem com Up in Mabel’s Room, sublinhando o tom chistoso do filme. 
A obra se trata de uma comédia de boudoir protagonizada por Mabel Ainsworth (Marie Prevost). Apanhamo-la a princípio a bordo do navio que a leva da França aos Estados Unidos, perseguida por um grupo de marmanjos que disputa a sua atenção. O intertítulo bem-humorado dá o tom do filme: “No passado, um navio era abalado por um rabo de baleia. Hoje, basta a presença de uma bela mulher para que isso aconteça”. 
Mais que bela, Marie Prevost é uma luz; uma ótima e carismática atriz cômica que, de saída, faz todos os olhos convergirem para si. Convence-nos plenamente quando coloca no bolso o galã Harrison Ford, que na obra desempenha o papel de Garry Ainsworth, um reservado arquiteto norte-americano o qual se casa com essa fresca mocinha num rompante em Paris – casamento e divórcio ocorrem de forma tão rápida e tumultuosa que o marido decide obliterá-los de sua vida, apresentando-se a todos como solteiro. 
Mabel, todavia, decide se reapresentar na vida do ex-marido – “Garry, eu te achava tão danadinho, mas descobri que você é tão bom”, ela confidencia para a foto do ex-marido depois da perseguição que sofre a bordo. O mote do divórcio, e também a mola propulsora dos quiproquós da comédia, é a sensualíssima (até para os nossos dias) lingerie com que Garry presenteia a esposa; presente que ela decide abrir apenas depois de concluído o processo de divórcio, só aí descobrindo o motivo pelo qual ele guardara tanto sigilo quando ela o encontrou adquirindo um apetrecho suspeito numa loja feminina. 
Ao gosto do gênero cômico, orbita este casal uma série de personagens tipificados que vão se encontrar na casa da matrona Henriqueta (Maud Truax), onde se situa o tal quarto de Mabel em que todos os reveses têm lugar: além de Garry, a jovem Sylvia (Phyllis Haver), mulher que o ama e da qual ele se torna noivo apenas para se ver livre de Mabel; o abnegado apaixonado Paul Nicholson, que malgrado ame Sylvia empresta a Garry o anel de noivado que daria à moça, pois sabe que ela ama o amigo e não ele; o jovem casal Jimmy Larchmont (Harry Myers) e Alicia (Sylvia Breamer), que deseja comemorar um mesversário de casamento por saber que muitos casais não duravam um ano (e que vê o seu casamento perigar devido à vamp farsesca Mabel); Hawkins (William Orlamond), o criado de Garry – que procura sem sucesso manter o porte de mordomo londrino frente às mais absurdas situações (os esconderijos debaixo da cama e dentro do baú, o entra e sai pela janela, o banho inopinado depois que um cano de água estoura, etc.). 
Escrito por F. McGrew Willis a partir da peça cômica de Wilson Collison & Otto Harbach (de 1919), Up in Mabel’s Room parece ter sido engendrado por Nöel Coward, tão ágeis são seus cortes e sofisticado é o seu jogo de cena. O filme é ainda uma brisa de ar fresco no que diz respeito ao modo como encara as imposições sociais. O gênero cômico historicamente usa como arma a sátira para reformar os costumes. O sexo, visto nos dramas como vício, e que serve de mote para o descaminho dos indivíduos, é aqui lido com humor. O arquétipo da vamp, em voga ainda nas portas dos anos 30, é aqui lido de soslaio – a assertividade de Mabel para reconquistar o marido é vista com bom-humor pela câmera, visada repercutida pela música, uma vez que a Zerorchestra faz uso com precisão dos sopros para criar não apenas os sons incidentais, mas o comentário irônico da ação. Também os gêneros sociais são botados à bulha no filme – o personagem “frágil” aqui é indubitavelmente Garry, que chega mesmo a vestir um sexy peignoir em cena, satirizando, a partir da inversão, a sensualidade imposta então pelo cinema ao sexo feminino. 
Momento luminoso dos estertores do cinema dito “silencioso”, com o consórcio de Günter A. Buchwald e da Zerorchestra Up in Mabel’s Room ressurge-nos, hoje, em todo o seu esplendor, mostrando que este cinema que prescindia da palavra não é um item de museu, mas sim é substância viva, que pode dialogar com força com a nossa sociedade contemporânea – que, malgrado tenha tido 100 anos de tempo para evoluir, conserva-se tão assustadoramente carola.

Um comentário:

disse...

Publico hoje meu resumo da Giornate, mas não poderia fazê-lo sem antes ler suas considerações. Embora sinta falta de algumas palavras sobre meu favorito, o curta adoravelmente bizarro com marionetes "Die große Liebe einer kleinen Tänzerin", concordo com muito do que você escreveu, e ao mesmo tempo tive insights que não haviam passado pela minha mente antes de lê-la. Que bom é distanciar-se por alguns dias para refletir sobre o que vimos, para depois darmos nossa opinião!
Concordo com a falta de filmes latino-americanos nos últimos anos da Giornate, embora ano passado tivemos Maciste no Inferno, cuja parte da cópia apresentada foi encontrada na nossa tão maltratada Cinemateca. Sobra, então, nosso amigo (seu amigo pessoal, meu "amigo de Twitter") José María Serralde Ruiz para representar nosso subcontinente em Pordenone.
Muito boas as reflexões sobre a manutenção do status quo em tantas obras, como "Yes or No", e o frescor de outras, como este "Up in Mabel's Room". O cinema mudo é muito mais próximo de nós - e somos muito mais parecidos com os espectadores de outrora - do que se costuma imaginar.
Beijos!