Crítica publicada em Notas Musicais a 16 fev. 2024.
Os concertos da pré-temporada da OSESP ocorreram de 8 a 10 de fevereiro de 2024.
A Sala São Paulo começou os seus trabalhos de 2024 em grande estilo, com um concerto de pré-temporada em que figurou a célebre Carmina Burana, do compositor alemão Carl Orff, apresentada para plateias transbordantes, beneficiadas pelos preços populares da entrada (iniciativa fundamental para a democratização do acesso).
A obra é invariavelmente precedida pelo ressaibo crítico, em grande medida justificável, já que foi escrita em pleno Terceiro Reich (1936), que arrastaria a Alemanha à 2ª Grande Guerra e protagonizaria o holocausto judaico, um dos maiores genocídios da história da humanidade.
Na análise que fez da apresentação da obra ocorrida no Theatro Municipal de São Paulo em dezembro passado, Fabiana Crepaldi apontou o esforço da obra de caminhar a contrapelo daquilo que os nazistas consideravam arte “degenerada”, motivo pelo qual ela teria ganhado a aprovação do governo. Já no programa da Sala São Paulo, Márcio Seligmann-Silva, professor de literatura da Unicamp e crítico literário especialista em estudos do trauma – sobretudo concernente a este momento histórico –, sublinha a monotonia musical e temática presente na obra (repetição de poucas notas e frases, presença destacada da percussão, ausência de contraponto, presença de figuras míticas medievais) como denotativa de um programa estético voltado à distração. Ao transmitir símbolos de heroicidade numa linguagem musical acessível às massas, a obra de Orff acabaria por dialogar com o ideário político encabeçado por Adolph Hitler.
Nas décadas seguintes à guerra, Carmina Burana imprime-se indelevelmente no imaginário ocidental, apresentada – especialmente O Fortuna, Imperatrix Mundi, canção que abre e fecha a cantata – num sem número de produções, de filmes a comerciais de televisão. Passados quase 100 anos e alterado o contexto histórico, o maravilhamento que a peça ainda causa – e causou extensivamente no público presente na Sala São Paulo – comprova que os sentidos da obra artística ultrapassam o seu contexto histórico. Polissêmica, a arte verdadeira incorpora sentidos à medida que percorre tempos, espaços, e perscruta os indivíduos.
Carmina Burana traduz-se por “Canções de Beuern”, e faz alusão a um conjunto de cerca de 250 textos e poemas encontrados num convento situado no município de Benediktbeuern, na Baviera, escritos entre os séculos XI e XIII. São textos escritos, sobretudo, em latim medieval, no entanto também em francês antigo, provençal e em latim macarrônico (que misturava o latim ao alemão e ao francês), acenando para a formação e o desenvolvimento das línguas nacionais, que neste período estavam se elevando a idiomas de cultura.
No plano temático, há na obra a retomada de figuras míticas do medievo como, por exemplo, a “Branca Flor”, que a tradição – e Richard Wagner neste roldão – depois associaria à personagem de Isolda. A obra de Orff, portanto, faz uma recuperação histórica importante, e o fato de acenar às massas tanto quanto à alta cultura não é motivo de demérito, senão da sagacidade do compositor de perceber a ascensão da cultura de massas naquele momento histórico.
Embora a arrepiante O Fortuna, Imperatrix Mundi explicite de forma trágica o papel do destino de elevar e destruir reputações ao seu bel prazer, tornando inconstantes a sorte e a felicidade, a obra Carmina Burana é composta por canções de amor e por poemas em grande medida cômicos e eróticos, que procuram flagrar a dimensão cíclica da vida e a primavera (e os seus apelos sensuais) vencendo os rigores do inverno.
A peça demanda coros numerosos, cujos papéis são preponderantes. Na Sala São Paulo, a obra foi desempenhada pelo Coro da OSESP e pelos Coros Acadêmico e Infantil da instituição, em ótima forma, preparados, respectivamente, por William Coelho, Marcos Thadeu e Erika Muniz. Há, além disso, três vozes protagonistas, interpretadas pela soprano Gabriella Pace, pelo tenor Jabez Lima e pelo baixo-barítono Licio Bruno. A batuta foi empunhada com excelência pelo regente Hilo Carriel, que extraiu da OSESP e dos demais intervenientes um grande equilíbrio musical e dramático.
Dentre os solistas, há na obra uma presença preponderante do baixo-barítono, associado invariavelmente a um desses monges retratados nesses poemas: monges vagabundos voltados mais aos prazeres da carne que à elevação espiritual. Artista de grande e sólida experiência, Licio Bruno desincumbiu-se com segurança do papel, ressaltando o seu caráter satírico, dramático e passional – mais que uma soma aleatória de canções, há uma curva dramática na obra que Bruno conseguiu ressaltar.
Ao tenor Jabez Lima cabe uma das árias mais difíceis do repertório concertante de todos os tempos. Lima faz emergir o caráter profundamente imagético da canção denominada Olim lacus colueram (“Outrora morei num lago”, segundo a tradução presente no programa), que apresenta os lamentos de um outrora belo cisne que se vê sendo assado e prestes a ser devorado por dentes assassinos.
Passados os descalabros e périplos dos monges errantes e os rigores do inverno, a soprano traz um sopro de brisa primaveril. Cantora com mais de duas décadas de experiência, Gabriella Pace se entrega à jovenzinha que acaba de descobrir o amor – e o faz de forma magnética, seja do ponto de vista da técnica vocal, fazendo emergir os agudos e os pianíssimos da partitura, seja cenicamente, sozinha ou interagindo com os colegas (destaque-se sobretudo a sua generosidade quando ela interage com o coro infantil). Sem as amarras da partitura, Pace mostra que os liames entre as apresentações concertantes e operísticas são menores do que imaginamos.
Carmina Burana transborda os seus tempo e espaço históricos. A grande qualidade do conjunto que a apresentou na Sala São Paulo explicitam que ela é arte maior, para além do nefasto contexto sócio-político em que emergiu.
Fotos: redes sociais da OSESP.
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