terça-feira, 28 de maio de 2024

“Dido e Eneas” no Theatro São Pedro


Crítica publicada em
Notas Musicais a 15 mar. 2023. 

Dido and Aeneas (1689) 
Música: Henry Purcell 
Libreto: Nahum Tate 
Ópera com um prólogo e três atos. 
Theatro São Pedro, 10 de março de 2023 
Direção musical: Luís Otávio Santos 
Direção cênica: William Pereira 
Dido: María Cristina Kiehr, soprano 
Belinda: Marília Vargas, soprano 
Eneas: Johnny França, barítono 
Feiticeira: Homero Velho, barítono 
Primeira bruxa: Daiane Scales, soprano 
Segunda bruxa/segunda mulher: Ludmilla Thompson, soprano 
Marinheiro/spirit: Jabez Lima, tenor 
Orquestra do Theatro São Pedro 

Henry Purcell surgiu num flash no paulistano Theatro São Pedro ao longo da semana passada. Uma semana é tempo demasiado curto para a exibição da única ópera do compositor inglês – uma das obras-primas do estilo barroco, o amor maior desta que vos escreve. 
A historiografia da área situa a produção de Dido e Eneas em fins do século XVII, mais especificamente entre 1684 e 1689. Escrita em colaboração com o libretista Nahum Tate, o qual se baseia em sua peça teatral Brutus of Alba, or The Enchanted Lovers (datada de alguns anos antes), Dido e Eneas é provavelmente encenada pela primeira vez ou na corte inglesa, ou numa escola para meninas fidalgas daquele país. Os eruditos inclinam-se a essa segunda hipótese, corroborada por Ligiana Costa (autora do ótimo ensaio que integra o programa de sala do espetáculo disponível no site do teatro), considerando-se a realidade “essencialmente feminina” encenada na obra; a exclusão, do libreto, de cenas que demandariam um elenco profissional; e a presença exígua, nele, de personagens masculinos. 
A ausência de certezas no que diz respeito a essa ópera não é incomum à produção barroca, já que, ainda segundo Ligiana Costa, porção substancial das partituras deste período se perderam, restando felizmente os libretos, graças à sua impressão e comercialização (costume de muitos séculos que, lamentavelmente, vem sendo deixado de lado, dado que libretos impressos são invariavelmente substituídos, hoje em dia, pelos digitais, que sabe-se lá por quanto tempo ainda estarão disponíveis em repositórios virtuais). Por esse motivo, não resta partitura saída das mãos de Purcell – a mais antiga partitura de que se tem notícia de Dido e Eneas foi produzida, segundo consta, décadas depois da encenação primeva da ópera. 
A obra de Purcell aborda um episódio capital da Eneida, epopeia de Virgílio datada do século I a.C. Após a destruição de Troia, cuja guerra é narrada na epopeia grega de Homero (século VIII a.C.), Eneias consegue fugir para fundar uma nova civilização. Antes, no entanto, de chegar àquilo que se tornaria a Itália, ele aporta em Cartago. Por obra de Vênus (a deusa do amor) e de um dos seus arqueiros cegos, Eneas e Dido (a rainha de Cartago) são flechados. Eneas, no entanto, não finca chão em Cartago: acaba por abandonar Dido, que morre. A cena do apaixonamento é relatada de forma colorida no prólogo da ópera de Purcell, no qual Febo, o deus da música e da poesia, também conhecido como o deus-sol – tanto que cabe a ele cavalgar a carruagem solar –, é responsável por iluminar aquelas personagens às quais caberiam o amor e a ruína, colocando-as diante do público. À esquerda, Maria Cristina Kiehr (Dido). 
A descrição musical da chegada de Eneas a Cartago e do apaixonamento entre ele e Dido torna-se cena muda na montagem paulistana da ópera: no palco escuro e nu em cujas extremidades encontram-se Dido e a dançarina que, ao longo do espetáculo, encena o seu duplo, uma flecha de néon atinge a intérprete da rainha. 
A substituição proposta dialoga com encenações do repertório barroco. As dificuldades para se acessar os materiais concernentes à encenação primeira das obras daquele período abrem espaço, nos dias de hoje, à desconstrução, à reconstrução, à (re)invenção. Dez anos atrás, o parisiense Théâtrè des Bouffes du Nord encenou uma obra-prima de espetáculo, Le Crocodile trompeur/Didon et Énée, baseado na ópera de Purcell e noutros materiais – espetáculo disruptivo e passional, totalmente em consonância com essa história de amor desatinada, já que nascida por obra de um acólito cego da deusa do amor. Na montagem paulistana, os intérpretes de Dido e Eneas são pautados pela contenção (eu diria que por um quase que distanciamento), cabendo a paixão ao brilhante duo de bailarinos coreografado por Luiz Fernando Bongiovanni, os quais representaram os duplos do casal. 
A segura direção cênica de William Pereira, em consonância com o talento da cenógrafa Giorgia Massetani, inventam uma Cartago que oscila entre o realismo dos panoramas em moda no Brasil ao longo do século XIX (época em que o estilo barroco é redescoberto) e a arte contemporânea. Ligiana Costa situa a artista plástica Regina Silveira como influência importante da montagem. Efetivamente, os painéis de tecido representando secções de edifícios de influências greco-romanas, que são retirados à força, pelo corpo de baile, das molduras que os enquadram, quando Eneas abandona Dido e Cartago está prestes a ser destruída, remetem à desconstrução da tradição levada a efeito por Silveira (vide uma de suas mais recentes obras, Cascata, que em 2020 reproduziu, nas paredes do paulistano Paço das Artes, dezenas de cópias das janelas daquele edifício, desmontando-as e as distorcendo, de modo a colocar em debate o papel que desempenham na sociedade as janelas reais ou virtuais). 

Marília Vargas, Johnny França e María Cristina Kiehr 

O flerte entre a recuperação realista da tradição e a desconstrução que é a tônica da contemporaneidade ocorre, na encenação paulistana de Dido e Eneas, também no âmbito dos figurinos de Olintho Malaquias, que faz convergir túnicas de influências greco-romanas, as quais calcam a ópera nos arredores do momento histórico em que escreveu Virgílio, com estampas camufladas associadas contemporaneamente ao exército. As moças em flor do séquito de Dido (membros do belíssimo coro que foi um dos principais êxitos desta montagem, dirigido com qualidade por Marília Vargas, a quem também cabe na encenação o papel de Belinda, irmã de Dido) trajam fluidas túnicas brancas. Enquanto isso, Eneas e seu exército usam vestes militares. Encenam-se igualmente aqui, como se antevê, os papéis sociais desempenhados historicamente por homens e mulheres. Entre uns e outros estão a Bruxa e o seu séquito (cujas fantasmagorias determinarão o descaminho de Eneas, a morte de Dido e a destruição de Cartago), que vestem negro e são contornados por uma iluminação calcada nas sombras. 
Figurino, cenografia e encenação remetem à tradição barroca, feita da ambivalência de luzes e sombras. Isto se dá igualmente no que concerne à prodigiosa iluminação de Caetano Vilela, que, se tinge de rubro a bruxa e a sua coorte, torna Dido etérea ao coá-la por uma luz translúcida, dando transcendência à sua morte. 
Por meio da regência do admirável Luís Otávio Santos (que também se divide entre a execução do cravo e do violino), um dos mais importantes artistas voltados à interpretação historicamente informada do estilo barroco no Brasil, o Theatro São Pedro faz emergir os resultados das pesquisas dessa tradição levadas à cabo nas últimas décadas, sem abrir mão da reinvenção.

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