Crítica publicada em Notas Musicais a 24 abr. 2024.
Il Barbiere di Siviglia (O Barbeiro de Sevilha), 1816
Ópera em dois atos
Música: Gioachino Rossini (1792-1868)
Libreto: Cesare Sterbini (1783-1831)
Base do libreto: Le Barbier de Séville ou La Précaution Inutile, comédia de Pierre-Augustin Caron de Beaumarchais (1732-1799)
Teatro Bradesco; 21 de abril de 2024
Direção musical: Luciano Camargo
Direção cênica: Rodolfo García Vázquez
Cenografia: Priscila Soares
Figurinos: Amanda Pilla B.
Iluminação: Guilherme Bonfanti
Elenco:
Figaro: Sebastião Teixeira
Rosina: Marcela Vidra
Conde de Almaviva: Rafael Ribeiro
Dr. Bartolo: Marcio Marangon
Don Basilio: Flavio Borges
Berta: Gabriela Bueno
Fiorello: Ronaldo Mariconi
Coral da Cidade de São Paulo
Orquestra Acadêmica de São Paulo
De 13 a 21 de abril de 2024, o Teatro Bradesco, situado no Shopping Bourbon (Pompeia, São Paulo), foi palco das peripécias do impagável barbeiro de Gioachino Rossini. A ópera-bufa em dois atos Il Barbiere di Siviglia (1816) veio a lume quando o seu compositor não tinha ainda 25 anos. Era jovem, no entanto, prolífico. O Barbeiro de Sevilha foi composto após mais de uma dezena de produções, entre elas Il Signor Bruschino e L’Italiana in Algeri (ambas de 1813).
Tratava-se, portanto, de obra de um artista já experimentado. O libreto de Cesare Sterbini toma como base a comédia Le Barbier de Séville, do dramaturgo francês Pierre Beaumarchais, oriunda de uma trilogia de textos impagáveis que, compostos nos estertores do regime absolutista francês, já pressentem a aragem da Revolução, daí o protagonismo atribuído ao faz-tudo Figaro, que no século XIX se transformaria em metonímia de barbeiro, tão indissoluvelmente ligados ficaram o personagem e a profissão.
Na ária em que se apresenta ao público, uma das mais célebres do repertório operístico de todos os tempos, Figaro afirma comandar lâminas e pentes, tesouras e lancetas, barbas e perucas. Ao longo da história, coube ainda aos indivíduos atuantes nesta profissão realizar afazeres variados, como a extração de dentes e a aplicação de sanguessugas, e Leonardo de Miranda Pereira – em A Cidade que Dança: Clubes e bailes negros no Rio de Janeiro (1881-1933), publicado pela Editora da Unicamp em 2021 – destaca a relação que os barbeiros estabeleceram historicamente com ofícios artísticos, como a execução de instrumentos musicais e o canto. Assim, nada mais cabível que o barbeiro de Beaumarchais se transformasse em personagem operístico, o que ocorre não apenas por meio da pena de Rossini, mas também da de Mozart, um par de décadas antes, com a ópera-bufa em quatro atos Le Nozze di Figaro (1786), com libreto de Lorenzo da Ponte.
Cena da ópera |
A ópera concentra-se nos ardis inventados por Figaro para que a jovem Rosina se case com o seu amado, o Conde Almaviva. O Conde apresenta-se à jovem como Lindoro, um pobre rapaz. Ela, no entanto, tem como tutor o Dr. Bartolo, um homem já vivido que pretende, com a ajuda do professor de música da menina, desposá-la por interesse. Para conseguir acessar a residência da mulher que ama, Almaviva (ou Lindoro) precisará da ajuda do barbeiro, que presta serviços à família. O primeiro ato gira em torno dos esforços do apaixonado para entrar na casa de Rosina. Nos moldes da comédia farsesca e da ópera-bufa, será usado o expediente do travestimento.
Fingindo-se de soldado bêbado, o já fingidor Lindoro (que não se declara um nobre enquanto não tem certeza dos sentimentos da sua amada) requesta com sucesso o amor da mocinha, apesar dos planos arquitetados pelo tutor e pelo professor de música visando atrapalhar o casal. Ao final do ato, Dr. Bartolo denuncia o falso soldado ao batalhão. O Conde Almaviva consegue, no entanto, revelar secretamente a sua identidade ao oficial e escapa. No decurso do segundo ato, observamos um novo esforço de aproximação do Conde, que desta vez se disfarça de professor de música. Novamente junto da amada, e depois de ter confessado a sua verdadeira identidade, ambos combinam de se casar – o que fazem às barbas do Dr. Bartolo, na mesma casa em que ele mantinha Rosina cativa.
A artesania com que os inúmeros quiproquós são tecidos e, enfim, costurados numa sequência de árias inesquecíveis fazem desta uma obra-prima de ópera-bufa. Célebre desde que foi composta – apenas no Brasil há menções a apresentações de suas árias desde ao menos a década de 1830 (no carioca Jornal do Comércio de 1838 encontrei menção a uma apresentação da ária Cessa di più resistere, ocorrida no Circo Olympico da cidade em 16 de fevereiro de 1838, o que significa que a obra já era conhecida do público) –, O Barbeiro de Sevilha segue vivo no imaginário do público há mais de dois séculos. Justifica-se, portanto, que ela tenha sido escolhida pela Cia. Uniopera para ser encenada.
Cena da ópera
O grupo em questão é comandado pela batuta de Luciano Camargo, responsável pela direção musical e regência do espetáculo. Sob os auspícios da Uniopera, estão também o Coral da Cidade de São Paulo e a Orquestra Acadêmica de São Paulo. Este grupo está conseguindo viabilizar os seus espetáculos sem auxílio público, com renda oriunda das bilheterias (segundo Camargo, 100% desta montagem foi financiada deste modo).
Num momento em que espetáculos operísticos estão sendo cancelados Brasil afora, muitos sob a justificativa de falta de apoio público, tal esforço precisa ser destacado. Sem obviamente demonizar o investimento público em cultura (que é fundamental por inúmeras razões, dentre as quais para permitir que obras mais disruptivas, que não necessariamente podem contar com o retorno financeiro das plateias, venham a lume), o atual contexto sociopolítico, que ao redor do mundo se encontra cada vez mais reacionário (e, portanto, inimigo da cultura), obriga-nos a pensar em estratégias que permitam que a arte brote em detrimento da aridez do solo.
Do ponto de vista artístico, o Barbeiro que a Uniopera trouxe ao encontro do público teve destacáveis qualidades. A direção cênica de Rodolfo García Vázquez remete a animações infantis, a exemplo de Tainá e os Guardiões da Amazônia, um e outro repletos de tons pastéis rosas, azuis e verdes. No centro da cena, a casinha esboçada em cuja janela apareceu Rosina abre-se ao meio diante das vistas do público, no momento em que Lindoro conhecerá o seu interior. Com graça análoga, à medida da necessidade, descem do teto ou adentram o palco a cadeira do barbeiro ou a fachada da barbearia, bem como as portas que serão batidas pelos personagens, em seu constante entra e sai.
Cena da ópera |
O caráter lúdico da encenação resvala para os figurinos de Amanda Pilla B. e para os cenários de Ana Paula Costa. Os personagens desta montagem são brinquedos nos quais meninas de vestidinhos brancos dão cordas. O jogo de cena do espetáculo procura também remeter a este imaginário, dando ênfase a uma agilidade farsesca que condiz bem com o gênero do espetáculo. Se falta alguma agilidade no jogo de cena das meninas, na abertura do espetáculo, que parece um pouco pálido, na contracorrente da música de Rossini, ela sobra entre os solistas, que demonstraram sinergia, segurando o público ao longo das três horas de espetáculo.
No dia 21, o papel-título coube a Sebastião Teixeira, e ele mostrou-se bastante à vontade na pele do barbeiro Figaro, sobretudo em suas trocas com Rafael Ribeiro, mais constantes. Este, por sua vez, foi um Conde Almaviva/Lindoro que equilibrou bom humor e doçura. Destaque-se a sua interpretação do dueto do falso professor de música (Pace e gioia sia con voi), que dividiu com Marcio Marangon, um hilário Dr. Bartolo. O viés farsesco resvalou ainda para Flávio Borges, o professor de música Don Basilio. Por fim, Marcela Vidra soube matizar em sua Rosina a paixão e o deboche, demonstrando quão contemporâneas podem ser as heroínas cômicas de Rossini. Destacou-se por sua musicalidade desde o momento em que a sua voz fez-se ouvir pela primeira vez, em Una voce poco fa, quando ela ainda está fora de cena.
Para além da aplaudível iniciativa de montar um espetáculo operístico nadando na contracorrente da falta de incentivo público, a Uniopera ainda merece aplausos por num só tempo dar espaço para jovens cantores como Marcela e Rafael, e permitir o encontro com a ópera de um público de shopping, não acostumado a este gênero de produção. Que esses esforços sigam recebendo o seu fomento!
Fotos: Andrea Camargo.
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