terça-feira, 27 de maio de 2025

Quando o musical de Hollywood encontra a ópera: os filmes de Jeanette MacDonald & Nelson Eddy (1935-1942)


O musical cinematográfico norte-americano emergiu praticamente com a ascensão do cinema falado em versão industrial. Nos anos da depressão econômica que se seguiu à quebra da bolsa de NY, em 1929, eles – e a magia que forneciam – serviram de alento a uma população extensivamente empobrecida. “A Rosa Púrpura do Cairo” (Woody Allen, 1985) ficcionaliza a este respeito de forma deslumbrante. A obra aborda a história de Cecília, a jovem pobre de uma cidadezinha interiorana que, casada com um brutamontes que a tiraniza, tem o seu imaginário preenchido pelas histórias de amor saídas da “capital do cinema” – sobretudo aquelas protagonizadas por Freddy Astaire e Ginger Rogers, o mais célebre entre os pares românticos produzidos nos anos 30. Sobre eles eu escrevi um texto cheio de afeto nos primórdios deste blog, 15 anos, uma vida atrás
Outro desses casais célebres é o assunto que hoje ressuscita o blog, parado há seis meses: Jeanette MacDonald & Nelson Eddy, menos lembrados que Astaire e Rogers, mas celebérrimos nas décadas de 30 e 40, quando protagonizaram oito musicais da MGM. Como os colegas da RKO Radio Pictures, MacDonald e Eddy ajudaram a dar forma ao musical de Hollywood – no caso deles, misturando a música popular e a clássica, já que ambos eram cantores líricos. É simbólico retomar o blog com esse tema, pois costuro, aqui, os meus amores da juventude e os contemporâneos. 
Quando o casal contracenou pela primeira vez, em “Naughty Marietta” (“Oh, Marietta!” (1935, dir. Robert Z. Leonard e W. S. Van Dyke), a soprano e atriz Jeanette MacDonald (1903-1965) já era uma estrela. Após 10 anos atuando na Broadway, nos coros, em jump-ins e em esporádicos papéis de destaque, a artista finalmente ascendeu a protagonista em 1929, momento em que chamou a atenção de Ernst Lubitsch, que preparava o seu primeiro filme falado. “The Love Parade” (Alvorada do Amor, 1929), em que ela contracena com o galã francês Maurice Chevalier, se transforma num exemplo bem sucedido de filme cantante, concorrendo mesmo ao Oscar. 
A parceria de MacDonald e Lubitsch seria repetida ainda em “An hour with you” (“Uma hora contigo”, 1932) e em “The Merry Widow” (“A viúva alegre”, 1934), nos quais ela também contracenou com Maurice Chevalier (com quem ainda faria “Love me tonight/Ama-me esta noite”, de Rouben Mamoulian, 1932). Para além das bilheterias, essas obras fomentaram as gravações de singles de um punhado de músicas de sucesso, a exemplo de “Dream Lover” (de Victor Schertzinger e Clifford Grey, de “The Love Parade”), “Love me Tonight” (Richard Rodgers e Lorenz Hart, de “Love me tonight”) e “Vilia” (Franz Lehár, Lorenz Hart, de “The Merry Widow”, 1934). 
Em Maytime

Já Nelson Eddy (1901-1967) atravessou a primeira metade dos anos de 1920 atuando concomitantemente como barítono (a inclinação ao canto lírico nasceu ainda na infância, em coros de igreja) e jornalista. Acabou abandonando a segunda carreira em prol da primeira, quando, depois de vencer um concurso, ingressou numa companhia operística da Filadélfia, o que lhe permitiu construir um amplo repertório, em que estavam inclusas óperas de Mozart, Verdi e Puccini. No início dos anos de 1930, cantou mesmo no Carnegie Hall, regido por Ottorino Respighi. Contudo, a guinada em sua carreira se daria em 1933, quando às pressas substituiu exitosamente a soprano alemã Lotte Lehmann num concerto em Los Angeles. Após inúmeras pontas em filmes da MGM, estúdio com quem assinou contrato em 1933, foi alçado a co-protagonista de Jeanette MacDonald no supramencionado “Naughty Marieta”. 
A química inequívoca da dupla (o longevo blog https://maceddy.com/ dedica rios de tinta ao romance on e offscreen do casal, então, convido os curiosos a acessarem-no, pois vou me abster das fofocas de bastidores), par a par com a sua beleza clássica e o seu talento como cantores-atores, transformam a obra num sucesso não apenas cinematográfico, mas também discográfico. A obra foi alçada a melhor filme do ano de 1935 pela revista Photoplay, concorreu ao Oscar de melhor filme no ano subsequente, e a canção “Ah! Sweet mystery of life” (Victor Herbert, Rida Johnson Young), entoada pela dupla, alcançou vendas expressivas. MacDonald e Eddy tornam-se, então, The American Sweethearts
“Naughty Marietta” lança as balizas que seriam geralmente seguidas nos filmes da dupla. A obra baseia-se no musical homônimo de Victor Herbert, com letra de Rida Johnson Young, estreado na Broadway em 1910. Repercute, portanto, músicas que já eram notórias do público, senão pela assistência in loco do espetáculo, por sua escuta nas rádios. A transformação do musical nova-iorquino em filme, bem como a disseminação dessas canções em discos e no rádio retroalimentam a nascente cultura de massas. Ademais, os filmes protagonizando o casal adotam fielmente a fórmula da Hollywood clássica (especialmente em suas décadas iniciais), de associar pessoa e personagem, fazendo com que os artistas apresentassem ad nauseam tipos previamente definidos, que já haviam motivado o engajamento do público. 
Para isso colabora a repetição dos corpos artísticos dessas produções. W. S. Van Dyke, por exemplo, diretor bastante experimentado no campo tanto da comédia quanto do drama histórico (dirigiu a série cômica do Tin Man, protagonizada por William Powell e Myrna Loy, e os dramas “Maria Antonieta/Marie Antoinette”, com Norma Shearer e Tyrone Power, 1938, e “San Francisco”, de 1937, com Jeanette MacDonald e Clark Gable), também dirigiu Macdonald e Eddy em “Rose Marie” (1936), “Sweethearts (Canção de Amor, 1938), New Moon (Lua Nova, 1940) e, finalmente, em I Married an Angel (Casei-me com um anjo, 1942). Já Robert Z. Leonard, co-diretor de “Naughty Marieta” e de “New Moon”, dirige também “Maytime” (Primavera, 1937) e “The girl of the Golden West” (A princesa do Eldorado, 1938). 
Ao contrário dos musicais de Rogers e Astaire, que se passam na contemporaneidade – ainda que claramente falseada –, aqueles protagonizados por MacDonald e Eddy recuam até períodos anteriores ao século XX, aproveitando-se das habilidades dos diretores no melodrama histórico – gênero então amado pelo público no âmbito folhetinesco, teatral e cinematográfico. 
Assim, essas obras tematizam a França pré-revolucionária (como, além de “Naughty Marieta”, “New Moon”), o período do império de Louis Napoléon (como “Maytime”), a Londres elisabetana (“Divino Tormento/Bitter Sweet”, 1940) ou a época da penetração no meio oeste americano (“The girl of the Golden West”). Em todas, o desnível social entre a dupla é objeto de tensão – ela é uma princesa, aristocrata ou prima-dona, enquanto ele é pobre, seja policial, mercenário, aspirante a cantor ou bandoleiro. Consequentemente, a democrática ultrapassagem do status quo torna-se o mote dessas obras. 
Se há algum espaço para crítica social nos filmes de MacDonald e Eddy, ela recua no tempo. Criticam-se, no caso de “Naughty Marietta”, os desmandos da monarquia absolutista francesa, que obrigam a princesa prometida a um velho nobre à fuga aos Estados Unidos, terra da promissão, e o seu encontro com o oficial mercenário por quem ela se apaixonará. Os musicais da dupla seguem a tradição do gênero. Não apontam o dedo às mazelas sociais contemporâneas. Apostam, antes, na defesa do self-made man. Isso se dá mesmo no caso de “New Moon”, já que, embora a personagem de Eddy seja originalmente um duque francês (libertário, perseguido pela monarquia), ele precisa se travestir de escravo e serviçal para merecer sua ascensão numa nova ordem social democrática – fundada numa ilha remota ao mesmo tempo em que a França vivia a Revolução. Todavia, vários desses filmes não deixam de se aliar a um patriotismo rasteiro, já que os EUA estavam mergulhados na 2ª Guerra Mundial, e Hollywood se alinhou às hostes belicistas. 
Se “New Moon” aborda a questão de forma implícita (nele fazem-se ouvir os acordes de La Marseillase”, hino da Revolução), “Sweethearts” o faz mais explicitamente. Trata-se de uma das três obras do casal que se passam na contemporaneidade – as outras são “Rose Marie”, história da prima-dona canadense que se embrenha pelas matas do país em busca do irmão – um já ótimo James Stewart anterior ao estrelato – em fuga da polícia, e se apaixona pelo sargento da guarda montada que é escalado para procurar o rapaz; e “I married an angel”, conto (com interessantes laivos surrealistas e psicanalíticos) da secretária apaixonada que reforma o conde estroina, herdeiro do banco onde ela trabalha. 
Filmada em Technicolor, o que dá a dimensão da relevância da dupla na Hollywood clássica, “Sweethearts” pespega no público um conjunto de canções patrióticas entoadas pelo par romântico nas rádios nova-iorquinas. Filmes como este motivavam a venda de bônus de guerra. No entanto, o discurso patriótico não abandona a visada ao lucro. Fiel à fórmula adotada com sucesso por Hollywood, a trama faz referência ao epíteto e à relação amorosa tumultuosa vivida pelo casal protagonista, seja no título, seja no enredo (narra-se a história fictícia de um casal notório da Broadway que é seduzido por Hollywood no momento em que comemora seis anos de seu casamento e da estreia seu bem-sucedido musical). 
Outra questão importante nesses filmes é a autorreflexão da indústria do cinema sobre o seu lugar na cultura mundial. Daí ao diálogo que eles estabelecem entre o musical da Broadway e a ópera. Nos primórdios deste blog, abordei os musicais de Judy Garland e Mickey Rooney, que então me interessavam pelo esforço de defesa do musical norte-americano que eles encenavam – esforço simbólico do (desejado) deslocamento do eixo da produção artística da Europa para os Estados Unidos. 
Já os filmes de Jeanette MacDonald e Nelson Eddy aproveitam o treinamento prévio da dupla no canto lírico – Eddy era, como vimos, cantor de ópera, enquanto MacDonald se dedicaria posteriormente a essas produções –, fazendo-os cantar tanto os números musicais conhecidos pelo público mainstream quanto os operísticos apreciados pelo público mais cultivado, o que procurava elevar a estatura dessas obras. Assim, filtros do tempo que são, esses filmes permitem-nos conhecer os cânones da ópera de 90 anos atrás. 
O repertório abordado pela dupla é extenso e não tenho a intenção, aqui, de ser exaustiva. The girl of the golden West aborda o gênero de forma enviesada, já que adapta cinematograficamente a peça teatral utilizada por Giacomo Puccini para a criação de sua La Fanciulla del West” (a peça, de autoria de David Belasco, estreou em 1905, enquanto a obra do compositor italiano data de 1910). Se numa obra como “New Moon” essa presença é episódica – nela, MacDonald canta “Ombra Mai Fú” (da ópera “Xerxes”, de Georg Friedrich Händel, 1738) –, nos filmes centrados no mundo da ópera ela é contundente. 
Em “Rose Marie”, duas sequências operísticas são determinantes para a construção da curva dramática da personagem da mocinha. Na (longa) inicial, aborda-se a ópera “Romeu e Julieta”, de Charles Gounod (1867), desde a notória ária “Je veux vivre” até a morte do par romântico. Já nos estertores do filme, a personagem feminina, após se ver obrigada a deixar o homem que ama, é uma errática Tosca (da obra homônima de Giacomo Puccini, 1900) na sequência que tematiza a morte de Cavaradossi e o suicídio da protagonista. E, finalmente, o âmbito operístico é fundamental na obra-prima “Maytime” – chegando o seu diretor mesmo a compor uma longa sequência final de uma ópera romântica protagonizada por soprano e barítono, um unicórnio na grafia operística, para que o casal pudesse cantá-la. 
Vistos em conjunto, os filmes protagonizados por MacDonald e Eddy nos apresentam um microcosmo da Hollywood dos anos dourados. Assisti-los é, portanto, pedagógico para que apreendamos o que a indústria do cinema então defendia. Se valores arrevesados e preconceitos os mais variados obviamente emergem do conjunto - dado que tais filmes estão ao menos 80 anos distantes de nós -, eles se sustentam pelo talento do casal protagonista e pela artesania cinematográfica, questões que pretendo discutir oportunamente ao abordar “Maytime”, obra que merece um artigo à parte.