sexta-feira, 8 de maio de 2015

A atualidade de "O Rei do Gado"

Ainda compilo notas que me ajudem a dar conta da tarefa a que me propus no artigo passado: tentar explicar o papel da telenovela “O Rei do Gado” (de Benedito Rui Barbosa, dirigida por Luiz Fernando Carvalho, 1996-97) em nossa memória coletiva. 
Não é das tarefas mais fáceis. Eu poderia dar ao tema um enquadramento puramente técnico: levantar os altos números do IBOPE desta enésima reprise, quando comparados aos produtos saídos fresquinhos da mesma casa. Ou poderia colocar este folhetim lado a lado com os contemporâneos, e estabelecer uma óbvia – e, portanto, pouco desafiadora –, comparação que elevaria um em detrimento dos outros. Ou então, mergulhar em minhas recordações pessoais – já que, no final das contas, eu sou um dos sujeitos que enformam a tal memória coletiva a quem esta novela deve o seu sucesso. 
E então, puxo os fios da memória. Lembro-me do sertanejo de raiz ouvido pelo meu avô; do italiano macarrônico da “Nona”, minha centenária bisa; das canções napolitanas que eu cresci escutando; do “r” comprido que alongava as palavras (e os palavrões) ditos pela minha avó paterna, herança dos encontros e desencontros dela com gente daqui e d’além-mar. E as macarronadas, as polentas com frango. Os cáspitas, empiastros, maledetos e quejandas italianices que o convívio familiar incorporou ao meu dicionário, para o desespero de algumas professoras do colégio. Rever “O Rei do Gado” liga-me à moleca que eu era aos 14 anos, da qual os (des)caminhos da vida aos poucos me fizeram esquecer; daí aos nós na garganta e as lágrimas nos olhos serem meus companheiros constantes, enquanto estou diante da TV, vendo-a. 
A nostalgia é um bicho traiçoeiro. “Isso daria uma moda de viola.” – me replicaria o poeta-violeiro Pirilampo. Mas, não, refiro-me ao perigo que representam esses itens a que a pátina da afetividade nos impede de ver de todo. E firmo os olhos n’“O Rei do Gado”, tentando dissociar a novela empírica das recordações minhas que ela evoca. 
E ela sobrevive com louvor à prova. 
Há, ali, humanidade de sobra. Humanidade na sua acepção primeira. Não a bondade fajuta desses heróis contemporâneos, mas sim a natureza humana em toda a sua densidade: nas qualidades e nos defeitos – porque, como bem perceberam os Românticos, mestres do gênero folhetinesco, a qualidade do homem se mede pela extensão de sua luta para debelar seus pecados. 
Pureza demasiada incita o sentimento pouco cativante da soberba – a afirmação da inexistência do pecado é, para o cristianismo, já um pecado em si. E maldade demasiada, daquelas que não dão a ver mesmo uma nesga de luz, é algo simplesmente inverossímil – ao menos, para alguém que já passou da infância, que é o espaço por excelência para a catarse dos sentimentos primitivos. As extremidades de pureza ou maldade não favorecem a identificação do público com o espectador. 
Aí, volto para “O Rei do Gado” e me deparo com a Luana; a mocinha que guarda em si um mundo: roceira desmemoriada criada tal e qual bicho do mato, cujo palmear vagabundo por esse mundo de meu Deus leva-a a um assentamento de sem-terras, ao coração de um senhor de muitas terras, à recuperação de seus liames com o passado, e, enfim, à descoberta de sua rica ascendência. Destino, amor, disputa e luta de classes se misturam, nesse caldeirão cultural responsável por gerar o que de mais popular a literatura ocidental produziu nos últimos 200 anos. 
“O Rei do Gado” remete aos grandes romances dos Oitocentos, adicionando às balizas formais do gênero clássico uma temática puramente nacional. Os sem-terras dos tempos de Victor Hugo eram os operários arranjados em comunas, aos quais igualmente se juntava a miséria e a dignidade. Luana descende das moças campesinas de Balzac, definidas pela exiguidade de suas posses e pela grandeza de seus sonhos. Bruno, o “rei do gado”, tem entre seus ascendentes um Jean Valjean, um Edmond Dantès, homens falíveis, no entanto, cheios de grandeza psicológica – que se permitem perdoar as faltas alheias, por poderem espelhar, nelas, as suas almas conflituosas. 
O público ama “O Rei do Gado” por reconhecer, mais intuitivamente ou menos, os lastros que esta novela estabelece com o seu arcabouço cultural: com a literatura que o formou, nos bancos da escola ou na vida; com as histórias contadas pela família, profundamente romanescas; com os filmes antigos – que beberam em grande medida desta mesma fonte. Falo obviamente das gerações passadas. Antes que os efeitos especiais passassem a dar as cartas na factura das tramas, antes que a violência obscena se tornasse um must nos enredos, respondendo à sede de sangue do público, só esperávamos o desenrolar vagaroso de fios sabiamente enovelados, a tessitura de tramas encorpadas – coloridas, brilhantes, quentes como os belos cachecóis que nossas avós nos costuravam. 
“O Rei do Gado” parte da tradicional premissa do amor entre dois jovens, membros de famílias que se odeiam. A Julieta e o Romeu de Rui Barbosa são Berdinazzi e Mezenga, multiplicados, ao longo da trama, em Giuliana, Luana, Rafaela, Enrico, Bruno, Marcos – gerações com as quais o autor percorre um lastro temporal de 50 anos. 
Lastro altamente significativo, que engloba dos últimos suspiros da monocultura do café aos latifúndios do gado de corte, da Segunda Guerra Mundial aos conflitos agrários, além do paulatino aculturamento dos italianos. As disputas entre as duas famílias por conta de uns poucos metros de chão multiplicam-se, em 50 anos, pela dimensão da fortuna – real e simbólica – que ambas amealham. Jeremias Berdinazzi, o único remanescente da tradicional família, é agora um grande produtor de leite; Bruno Mezenga, um grande criador de gado. À disputa pela posse das terras e pela permanência do nome soma-se, agora, o conflito geracional. 
O tema nasce shakespeareano para ganhar pouco a pouco contornos nacionais. A longínqua Guerra, que acaba por definir o destino da família Berdinazzi, encontra, na segunda parte da trama, uma rima visual com o Movimento dos Sem-Terras, graças ao qual os primos perdidos se reencontram e se apaixonam. Para além do colorido pitoresco que se dá ao MST, cumpre assinalar a delicadeza com que o grupo é apreendido, tomada implícita de posicionamento do autor frente ao então recente episódio de Eldorado dos Carajás, que terminara com o assassinato de dezenas de militantes pela polícia truculenta do baixo Pará. 
Bandeiras auriverdes tremulam no assentamento do incansável Regino, enquanto o senador Caxias peleja pela causa do grupo, diante de um plenário vazio. Zé Ramalho serve de trilha à luta inglória de ambos: “Vocês que fazem parte dessa massa./ Que passa nos projetos do futuro/ É duro tanto ter que caminhar/ E dar muito mais do que receber.” Só eu acho que essas imagens e dizeres adquirem, nesses nossos atuais dias em que atitudes reacionárias ameaçam manchar as conquistas arduamente alcançadas pelo nosso Estado de Direito, um inusitado poder disruptivo? Ainda mais quando exibidos com tanto sucesso, pela principal emissora do país? 
Para além do tema e da forma, “O Rei do Gado” ainda concentra um dos elencos mais inspirados de todos os tempos. Antonio Fagundes como o velho Antonio Mezenga e o neto Bruno Berdinazzi Mezenga, Tarcísio Meira como Giuseppe Berdinazzi, Raul Cortez como Geremias Berdinazzi, Letícia Spiller, uma menina, como Giovanna Berdinazzi, Stênio Garcia como Zé do Araguaia, Jackson Antunes e Ana Beatriz Nogueira como Regino e a esposa Jacira. Sem, de modo algum, ser exaustiva. 
Como esquecer os olhos de Eva Wilma (Marieta Berdinazzi) diante dos sofrimentos dos filhos? Ou de Raul Cortez, diante da tão repetida canção italiana, sobre os pracinhas mortos em combate? Ou da ombridade que Carlos Vereza imprime em seu senador Caxias? Ou do tour de force de Patrícia Pillar para criar a sua Luana – a maior distância entre pessoa e personagem que já se viu na TV brasileira: mulher a que os reveses da vida fez retraída, ressabiada, mas que ocasionalmente se expande em discursos que primam pela singeleza da linguagem e pelo lancinante do conteúdo (sua narrativa da colheita das "cerejas do café", por exemplo)?
Exibida por ocasião do aniversário de 50 anos da Rede Globo, "O Rei do Gado" sustenta-se como o que de melhor a emissora exibiu este ano. Que a novela esteja prestes a completar seu vigésimo aniversário é, no mínimo, irônico. Esperemos que o seu sucesso sirva de injeção de criatividade aos criadores da emissora.

terça-feira, 21 de abril de 2015

Notas sobre a telenovela contemporânea (destaque para a relação entre a telenovela e o merchandising)

Adriana Esteves em "Avenida Brasil" (2012)
De vez em quando, a tevê nos proporciona um encontro desconcertante com o nosso passado – encontro cuja força nos coloca a pensar sobre o presente e a projetar o futuro. Falei disso no início de 2011, quando da nova exibição da íntegra de “Vale Tudo” (1988), pelo então recém-fundado Canal Viva. A trama de surpreendente atualidade, a coesa carpintaria dramática (não obstante as dificuldades técnicas da época) e a qualidade das atuações destacavam um tempo áureo do suporte televisivo, em que se colocava em primeiro plano o desejo de comunicar visando-se a emoção e o fomento da reflexão crítica. 
Não repisarei aquele artigo, que pode ser facilmente acessado pelo leitor. 
A reflexão aqui não sairá, todavia, daquele eixo. Em 2011, aventei sobre a possibilidade de a nova dramaturgia, bafejada pelo bom exemplo da reprise, evoluir intelectualmente tanto quanto já evoluíra tecnicamente. “Avenida Brasil”, estreada no ano seguinte, atestou a veracidade do que eu dizia. Ou parte dela, já que o trabalho saíra da mesma cepa donde já brotara o sucesso de audiência e crítica “A Favorita” (2008). João Emanuel Carneiro, o autor de ambas as telenovelas, demonstra talento superior para transigir com o atual status quo da televisão, sem que, com isso, precise transformar sua obra em rebotalho. Porque, verdade seja dita: hoje, apenas um talento acima da média conseguirá levar a cabo por meses uma obra de valor artístico, dadas as exigências comezinhas do mercado. 
Alexandre Nero em "Império" (2014)
A telenovela atual é produto do desenvolvimento galopante das traquitanas tecnológicas, competidoras potenciais da televisão. Acostumados à velocidade com que circulam as informações pela web, os olhos do público buscam antes o brilho fugidio das fotos e vídeos que os feeds atualizam, antes a informação oca das frases breve usualmente isentas de teor crítico, do que o deslindar pausado de almas e corpos. Daí à produção televisiva contemporânea estar coalhada de personagens de um convencionalismo mofado – gente ora boa, ora péssima; ora heroica até a raiz dos cabelos, ora incontornavelmente pusilânime; e às tramas serem de uma aterradora vaziez. De nada adianta: excetuando-se alguns sucessos de público – como “Império” (de valor artístico discutível, aliás), o público continua a preferir o smartphone e a Netflix, deixando a TV aberta à deriva. 
Nextel em "Em Família" (2014)
Seria inócuo atribuirmos culpas univocamente. A televisão aberta de hoje obedece, como outrora, a economia de mercado. Ainda precisa, por exemplo, de patrocínio para manter a programação – e precisa, consequentemente, oferecer aos anunciantes a contrapartida dos investimentos feitos por eles. O rareamento do público empírico, ou da atenção do público, obriga à diversificação e acirramento das estratégias de convencimento utilizadas pelos anunciantes. No último ano, observei, com alguma curiosidade malsã (devo confessar...), os subterfúgios inventados pelos autores das obras dramáticas no intuito de inserirem nas tramas o famigerado merchandising: 
Manoel Carlos deve ter sofrido ao ver sua alta roda do Leblon (em “Em Família”) obrigada a frequentar uma popular rede de supermercados – sofrimento vertido para a forma mal-ajambrada como as inserções publicitárias de tal loja foram costuradas na trama. 
Leandra Leal em "Império"
Já Aguinaldo Silva, mais popularesco e safo, não raro emoldurou os anúncios com piscares de olhos irônicos: o cartão crédito do banco X corria como navalha nas mãos da blogueira de fofocas, mulher fina e elegante que não se furtava, entretanto, a querer conhecer em detalhes como funcionava o cartão de fidelidade do posto de gasolina Y. Isto quando o autor não explicitou a sua dificuldade de lidar com uma obrigação tão “antidramática”, transformando essa ou aquela personagem em portas-vozes dele. Théo Pereira foi seu melhor alter-ego: “Gente” – diz o fofoqueiro-mor, olhando para a câmera como se fora Woody Allen – “não tentem entender o que o autor está dizendo, senão vocês perceberão que estão sendo feitos de idiotas. Coloquem no piloto-automático e toquem adiante”. 
Totia Meireles em "Salve Jorge" (2012)
Cito de memória, procurando, porém, manter o espírito do dito. Este trecho ainda se salva pela graça da metalinguagem. No entanto, nele, como noutros de “Império”, vê-se claramente emergir a tensão entre o dramático e o extra-dramático: entre as necessidades incontornáveis da trama e as bugiarias que esgarçam a sua tessitura. O que era acessório torna-se fundamental. Incontornável é a necessidade de se manter o anunciante, ao redor do qual passa a girar o enredo. É impossível, portanto, comparar “Vale Tudo” e “Império” – já que a última é um híbrido de obra de ficção e peça publicitária. 
O mal disso é imenso. Estruturalmente, observa-se o esfacelamento das tramas, cujos caminhos dependerão do rol de anunciantes patrocinadores da obra dramática – doravante reduzida ao papel de veículo visando à comercialização de um produto. Deturpação que se espraia para o âmbito ideológico. De um lado, para o possível choque entre a ideologia do ator e aquela atrelada ao produto anunciado (considerando-se a analogia historicamente estabelecida entre pessoa pública e a pessoa privada do ator). De outro, para a redução do microcosmo da tal obra dramática aos labels dos produtos que a patrocinam – calando-se a polifonia social que a telenovela supostamente se propõe a representar, em prol de uma uniformidade mistificadora. 
Débora Falabella em "Avenida Brasil"
A telenovela contemporânea vê-se, assim, esvaziada de sua histórica função social. Vinte anos atrás, os destinos das personagens das tramas pareciam indissoluvelmente imbricados aos destinos da sociedade. Daí àqueles seres de papel serem sentidos como gente de carne e osso; seus passos e descompassos religiosamente acompanhados por um público entusiasta. 
Hoje, quem assiste com esta paixão às novelas? Quem verdadeiramente se interessa pela trajetória do ricaço-equilibrista, a rodar histrionicamente entre os dedos a amante, a esposa e a megera vilã? Quem deseja, em 2015, ver a anacrônica femme-fatale reduzindo à míngua toda a população masculina da trama, enquanto que a sua antagonista baba sobre ela o seu ódio e inveja? Ninguém, além daqueles que dirigem à TV olhares furtivos, entre a escritura do último tweet e a atualização do feed de notícias do Facebook. 
A telenovela contemporânea respeita a lógica da inserção comercial. Oferece uma hora de descanso à atenção do público. Esta ausência de intencionalidade abre-lhe o campo para que ele passeie por outras fontes enquanto espia o programa, ou então desligue a TV em prol de uma dramaturgia mais afiada - como os públicos entusiastas de Game of Thrones e outros hits de qualidade da TV fechada não me deixam mentir. 

Esses comentários servem de preâmbulo ao próximo artigo, sobre “O Rei do Gado”, que a Rede Globo agora reprisa. Eu sonho com uma telenovela como esta em horário nobre – como essa ou como “Avenida Brasil”: menos suave, mais pragmática, igualmente ótima. Mas sonho porque sou uma balzaquiana nostálgica, cuja trajetória foi marcada pelos heróis dos folhetins. É por obrigação moral a eles, apenas, que ainda insisto diante da telenovela.
Patrícia Pillar em "O Rei do Gado" (1996)

quarta-feira, 1 de abril de 2015

O futuro do cinema está na TV. Parte 2: “Hannibal”

Comecei, na resenha passada, uma série de dois textos que se propunham a discutir as qualidades “cinematográficas” das séries televisivas. Supus, ali, que o cinema mainstream perdia o interesse em prol da TV, para onde estavam migrando os roteiristas de talento e os stars. Aproveitando-se do recente desenvolvimento técnico, que parece ter tornado o público desdenhoso da tela grande em prol da comodidade oferecida pela aparelhagem individual (telas com extensão e definição cada vez maiores, programação sob demanda etc.), incrementaram-se os investimentos na dramaturgia televisiva. 
Pululam as séries de qualidade: “Breaking Bad” (2008-2013), “Game os Thrones” (2011-...), “Homeland” (2011-...), “House of Cards” (2013-...). A lista não exaustiva atesta o viço do gênero, que aqui receberá um recorte puramente pessoal. No post anterior, propus-me a deixar minhas impressões sobre as produções televisivas de dois atores saídos da Sétima Arte. Ali, falei sobre o “Sherlock” de Benedict Cumberbatch. Aqui, falo sobre o “Hannibal” (NBC-USA, 2013-...) de Mads Mikkelsen. Dois grandes atores, dois grandes personagens, duas produções que não fazem feio quando aproximadas das anteriores extrações cinematográficas das histórias. 
“Hannibal” tem atrás de si obras cinematográficas mais auspiciosas que “Sherlock”. Uma, pelo menos: “O Silêncio dos Inocentes” (“The Silence of the Lambs”, Jonathan Demme, 1991) é uma obra-prima de thriller, com inspiradores Anthony Hopkins no papel do canibal assassino Dr. Hannibal Lecter e Jodie Foster como Clarice Starling, a jovem agente do FBI que precisa da ajuda dele para agarrar um serial killer. Quando lançado, em 1991, o filme provocou um daqueles clarões que raras vezes se vê no cinema. Não à toa, arrebanhou todos os Oscars principais, como antes – se não me engano – somente fizera “Aconteceu naquela noite” (“It happened one night”, 1934). Distendeu o limite de seu gênero, como Frank Capra havia feito com os limites da comédia na longínqua década de 1930. Temos ali um assassino frio, sádico, vilânico e, no entanto, elegante, charmoso e irresistível. O mais refinado dos anfitriões, não fosse um pequeno detalhe: ele servia aos convivas as carnes dos entes que matava. 
“Silence of the lambs”, como era de se esperar, teve várias sequências: “Hannibal” (de Ridley Scott, 2001), com o próprio Hopkins no papel-título e Julianne Moore como a agente Starling; “Dragão Vermelho” (“Red Dragon”, Brett Ratner, 2002), no qual Hannibal/Hopkins contracena com gente do calibre de Edward Norton, Ralph Fiennes, Harvey Keitel e Emily Watson; e “Hannibal – a origem do mal” (“Hannibal Rising”, Peter Weber, 2007), com o papel-título desempenhado por Gaspard Ulliel. Nenhuma dessas produções, todavia, atingiu a sutileza e a dubiedade da obra original. 
Nenhuma, até o “Hannibal” protagonizado pelo ótimo Mads Mikkelsen – ator dinamarquês que, malgrado a notoriedade adquirida em seu país desde meados dos anos 90, foi notado pela América apenas recentemente, quando Cannes deu-lhe o prêmio de Melhor Ator (por “A Caça”, em 2012). Mikkelsen tem o physique du role perfeito para desempenhar o Dr. Hannibal Lecter. Lábios e nariz finos, rosto anguloso, olhos perscrustadores. Um corpo vigoroso, ainda que delicado. Um todo sedutor, porém, uma beleza bem pouco ortodoxa. O conjunto proporciona ao personagem a ambiguidade do original. Ambiguidade expressa logo no primeiro plano em que Mikkelsen aparece: um plano americano em que ele, deleitando-se com o sabor da iguaria que viera de deglutir, imerso na sombra, parece um daqueles espécimes gloriosos de homens desempenhados por Emil Jannings sob a batuta de F. W. Murnau. 
O garbo do ator atinge uma importante dimensão de Hannibal Lecter, que é a de bon vivant. Antes de ser criminoso, o médico é um esteta: que abandonou o exercício cotidiano da medicina para realizar um exercício antropofágico com os corpos de seus antigos pacientes – como se pedisse a eles a retribuição de seu trabalho. A alimentação para si não é um exercício comezinho: é ato refletido, esculpido à perfeição, desde a primordial escolha da carne – por meio de uma insólita agenda de endereços que ele usa à guisa de livro de receitas –, passando-se pelo ato criminoso – encenado tal e qual uma peça de teatro –, e enfim, a preparação suntuosa da iguaria, para convivas escolhidos a dedo. 
Observá-lo causa no espectador um misto de ojeriza e deleite. A surrealidade dos atos do hábil profissional é sublinhada por uma cinematografia que os pinta com uma artesania clássica, construindo um distanciamento irônico dos objetos que toma por tema – vejam-se as fotografias de divulgação da série (espalhadas pela resenha) a contrapelo desta abaixo, de autoria do Renascentista Giuseppe Arcimboldo (séc. XVI). Hannibal destroça as suas vítimas como um perfeito lord, ao som dos acordes de Haendel – ora dedilhados no cravo que ele possui em casa, ora reverberados por uma orquestra completa, enquanto ele amacia pulmões ou produz salsichas a partir de intestinos. “É preciso que eu lhes avise: nenhum desses pratos é vegetariano”, diz aquele homem adepto dos descalabros dos festins da realeza clássica aos indivíduos de nossa sociedade contemporânea, politicamente correta, “sustentável”. 
Retrato do patrono de Arcimboldo, imperador vienense Rudolf II (1590),
feito a partir de frutas e legumes.

Fonte: http://www.smithsonianmag.com/arts-culture/arcimboldos-feast-for-the-eyes-74732989/ 
O sadismo de Hannibal é tão over, tão insólitos são seus desdobramentos, que acabamos por saboreá-lo com prazer. A faceta realista – e, portanto, pungente – da trama fica por conta da personagem de Will Graham (que aparecera no “Hannibal” de 2002, na pele de Edward Norton). Na série, Graham/ Hugh Dancy é um homem sensível, transformado em consultor do FBI por ser dotado de uma habilidade extrema de empatia – consegue colocar-se à perfeição na pele dos algozes e das vítimas, para, assim, poder refletir sobre suas motivações e atitudes. A série abre exacerbando a sua cenografia e o modus operandi de Graham: um flash-back mostra ao espectador, em riqueza de detalhes, como o consultor teria executado uma família. Só mais tarde o espectador perceberá que, a despeito do que as imagens mostram, Graham não é o criminoso. 
Mas a ambiguidade já está colocada: ao longo do drama, o envolvimento emocional com os crimes levará o rapaz a desenvolver um problema neurológico (que o Dr. Hannibal Lecter – também psicoterapeuta de Graham – acompanha num só tempo com curiosidade científica e com preocupação pelo amigo que a fatalidade colocara em seu caminho) que bastante provavelmente o fará trespassar a linha que separa a sanidade da insanidade, a lei do crime (eu ainda não cheguei nesta parte). É dilacerante vê-lo esforçar-se para calcar chão na realidade, enquanto que a figura mefistotélica de Hannibal empurra-o na via íngreme que o levará à exploração vertical dos meandros de seu “eu” atormentado.

domingo, 22 de março de 2015

O futuro do cinema está na TV. Parte 1: “Sherlock”

Acredito que, se porventura a indústria do cinema se perder de vez na imbecilidade que cada vez mais a acomete, ela será heroicamente salva pela televisão. 
Quem diria, a televisão; o fantasma das companhias cinematográficas dos anos de 1950-1960: em 1957, o clássico Meias de seda (Silk stockings) já cantava, irônico, a necessidade de se produzir filmes “Cinemascópicos” e “Estereofônicos” para enfrentarem a caixinha de madeira que ganhava os lares em progressão ascendente. 
Hoje o quadro inverteu-se. O cinema standard assimilou toda a eloquência tecnológica cantada por Fred Astaire – e mais alguma. Hoje é 3, 4, 5D. Imax, X-D, e, paradoxalmente, cada vez mais reduz o espectador à assistência passiva de clipagens inócuas, fábulas prenhes de efeitos especiais mas vazias de reflexividade e poesia, dubladas para mimar cada vez mais a preguiça mental do público. 
Nessa era de tecnologia digital, que para o bem e para o mal nos influencia a todos, o cinema encontrou na televisão um inusitado competidor, não apenas de público, como no que toca à qualidade artística. 
Os canais a cabo, que desobrigam o público a ver inserções comerciais que chegam a 25% da programação, e o Netflix, que reintroduz nos seriados o efeito de continuidade que os tece, tornou a experiência da TV tão rica quanto à do cinema. Ou mais, a depender do objeto que a telinha reverbera. 
Escrevo essas notas como observadora estreante no assunto. Sou cinéfila, raramente vejo televisão e não assino TV a cabo (e companhia). Decidi apenas recentemente experimentar este caminho pelo qual já enveredou uma parte considerável de artistas da Sétima Arte, já que uns aos quais eu muito admiro decidiram me deixar ao deus dará nas salas de cinema... 
Acertada decisão, a minha. 
Adquiri, pelos meios mais escusos, Sherlock (BBC-UK, 2010-...) e Hannibal (NBC-USA, 2013-...). 
Sherlock é a série britânica que lançou ao estrelato global Benedict Cumberbatch, que até 2010 tinha uma carreira não desprezível, mas sobretudo local. O modo passional como a obra foi recebida – são impressionantes 4,5 milhões os seus seguidores no Facebook – explica-se não só pelo fascínio que o brilhante detetive gerou desde que foi criado, em fins do século XIX (o museu-casa que os londrinos construíram em sua homenagem, na 221B Baker Street, tem até hoje uma frequentação expressiva), como pela qualidade intrínseca da série. 
Sherlock supera os filmes de Guy Ritchie (de 2009 e 2011, com Robert Downey Jr. e Jude Law nos papéis de Holmes e Dr. Watson) pela inteligência colocada a serviço da elaboração das narrativas  textos que se apropriam com risonha ironia dos textos-fontes; delicioso humor inglês, a rir com finesse de si próprio. As peripécias de Sherlock Holmes e seu fiel escudeiro são amoldadas ao contexto contemporâneo, decisão acertada, já que o Holmes original também era produto de seu tempo (de galopante desenvolvimento nos campos da tecnologia e da medicina, que dotaram de cientificismo o olhar ao campo criminal). 
A migração da Era Vitoriana à Londres contemporânea não se dá sem tropeços – todos bem aproveitados para a factura do drama. Os fãs de Conan Doyle se lembrarão, por exemplo, que seu herói fazia uso de substâncias pouco ortodoxas para manter o nível elevado de funcionamento que o seu cérebro superior pedia. Hoje, em que a assepsia social dominante nos colocou a léguas do liberalismo pregresso – quando drogas como a cocaína eram livremente comercializadas em farmácias – Holmes vê-se obrigado a recorrer aos adesivos de nicotina para manter o vício até mesmo do cigarro (e a sua integridade mental). 
A personagem equilibra-se, portanto, entre o politicamente correto requerido pela sociedade e os descalabros que o seu organismo demanda. Conan Doyle insere Holmes em meio a fumadores de ópio, a deleitar-se no vício da droga e no vício da ação. Mark Gatiss e Steven Moffat, os roteiristas da série televisiva, fazem o Dr. Watson casualmente trombar com o amigo, ao buscar um vizinho junky num inferninho londrino. Levado para o laboratório, onde tem a sua urina testada (e não aprovada), Holmes vira objeto dos moralismos do amigo e da técnica do laboratório com quem ele ocasionalmente trabalha. Responde com o meio-riso de alguém que sabe estar num entre-lugar: na sociedade atual, o paradoxo da liberdade resume-se no fato de, na verdade, não termos liberdade nenhuma. 
Sherlock opera a dessacralização da obra de Conan Doyle, como Doyle o fez com a obra de Edgar Allan Poe, quando introduziu o dedutismo flamboyant de sopro folhetinesco como resposta à alta literatura que Poe erigiu em contos como “Os crimes da rua Morgue”. “Deixe de ser exibido”, é o que o amigo – e porto-seguro – Watson lhe diz, na série, ao vê-lo vestir um daqueles chapéus bobos que custam uma fortuna na lojinha da 221B Baker Street; ao vê-lo endireitar a gola de seu sobretudo; ou ao percebê-lo esgrimir ad nauseam suas habilidades dedutivas. E tal exibicionismo a trama mimetiza em sua estrutura, ao materializar à audiência os processos mentais de Sherlock Holmes, por meio de uma narrativa de qualidade raras vezes atingidas: de asfixiante agilidade, eivada de elipses e de estratégias artificiosas, como os ainda hoje ousados falsos flashbacks
A dessacralização do original é, ao mesmo tempo, uma homenagem. Essa migração de suporte e de linguagem promove uma reinserção social da obra original: mostra seu potencial comunicativo, sua atualidade. O clássico “Um estudo em vermelho”, o caso em que os dois amigos se conheceram, torna-se, na série, “Um estudo em pink” - e será divulgado por Watson não por meio de um livro, mas de um blog que logo vira hit; enquanto que “Os cães de Baskerville” originais tornam-se, na leitura televisiva, os remanescentes de um projeto secreto cujo objetivo era uma pesquisa médica totalmente destituída de ética - rescaldo das Guerras do século XX. 
A leitura contemporânea obriga as atualizações. Na nossa sociedade cada vez mais medicalizada, a síndrome que atribuía mistério ao Holmes original ganhou nome e endereço: ele é um “high functioning sociopath”. Seu pendor à cocaína é, aqui, tratado como vício grave – que obriga Watson e a sua senhoria, Mrs. Hudson, a constantes devassas em seus aposentos. 
No entanto, ao contrário do que se pode supor, Mr. Holmes não perdeu o seu éthos romanesco. 
Que coisa mágica é o cinema: mesmo este, reduzido às dimensões das telas – cada vez maiores, é verdade – das nossas casas. A série dá ao detetive uma densidade emocional de que as histórias de Conan Doyle carecem – já que os cânones do romance policial pediam que se concentrasse no crime e em sua elucidação, limando-se da narrativa as digressões filosóficas. A escolha de um ator superior como protagonista garante profundidade à história. Benedict Cumberbatch, ótimo ator cômico e dramático, impregna seu Holmes de exibicionismo e de graça. Muito graças a ele e a seu comparsa Martin Freeman, Sherlock verte inteligência e bom-humor, levando o espectador na palma da mão, como apenas os clássicos sabem fazer. 

Em breve, a 2ª e última parte de “O futuro do cinema está na TV”: Hannibal.

quinta-feira, 5 de março de 2015

"Birdman (ou a inesperada virtude da ignorância)": Hollywood novamente desnudada

O cinema gosta imensamente de falar sobre si. Os filmes que se voltam ao aparato produtor das imagens cinematográficas nasceram praticamente com o advento da arte. Antes de uma consolidada obra-prima como “O homem da câmera” (1928, Dziga Vertov), proliferaram-se as fitas de maior ou menor duração e qualidade atentas ao dispositivo fílmico, a esmiuçarem ora os perigos se se ser flagrado pela câmera (cinematográfica ou fotográfica); ora o fascínio gerado pelas imagens (ou a máquina que as produzia). 
Antes de trajar as vestes de seu notório vagabundo, Charlie Chaplin deixa-se filmar passando e repassando defronte da câmera que registrava certo evento automobilístico, a atrapalhar o trabalho do operador e a corrida. O filme, Kid auto races at Venice, data de um século. Depois dele, outros tantos – vários protagonizados por Chaplin – se debruçariam sobre a questão, procurando num só tempo romper com a ilusão de realidade criada pela câmera e sublinhar o papel da indústria criadora de ilusões, a transformar gente comum, sarrafos e papelão em vidas e mundos tão deleitantes. 
O potente imaginário criado pela sétima arte deu pasto a algumas reflexões críticas – também transformadas em películas – de grande agudeza. Uma das mais eloquentes é “Crepúsculo dos deuses” (Sunset Boulevard, Billy Wilder, 1950) - muito amado e já resenhado por esta que vos fala – retrato ácido do mundo das estrelas cinematográficas decaídas. 
A metalinguagem atinge ali o mais alto grau, porque a estrela em questão - Norma Desmond – é desempenhada por uma das principais atrizes do cinema silencioso, por vinte anos legada ao ostracismo: Gloria Swanson. Além disso, dividem com ela a cena figuras celebérrimas dos anos 20, igualmente esquecidas nos 50, como o cômico Buster Keaton e o diretor Eric Von Stroheim (este, o ex-marido e o mordomo que mima a megalomania da personagem da atriz, no filme). Sunset Boulevard revela o que jazia para além do mundo luzidio que o cinema norte-americano criava: o esquecimento, a loucura e a morte. 
O recuo temporal é pródigo para operar essas investigações críticas. Foi assim com o filme de Billy Wilder - que, nos anos 50, volta olhos aos atros do cinema silencioso, destronado no fim dos anos 20. E é assim com Alejandro Iñarritu, cujo Birdman (ou a inesperada virtude da ignorância) investiga o cotidiano de um decadente ex-super-herói de blockbuster norte-americano. 
Também vinte anos separam a ascensão da queda. Mais que o tempo do desenrolar de uma geração, o período em questão marca uma ruptura no modus operandi da indústria cinematográfica. Birdman é o Crepúsculo dos Deuses da nossa Era. 
Na obra de Iñarritu, a transição pontua-se pelo advento da tecnologia digital: a imagem fidelíssima da realidade – embora paradoxalmente composta de combinações numéricas destituídas de qualquer humanidade – a obrigar o artista às intervenções cirúrgicas que, ao rejuvenescerem-no, transformam-no num arremedo de si mesmo; as redes sociais, a criarem e destruírem reputações no espaço de dias (a lógica “viral” da nossa sociedade contemporânea, para a qual o “sucesso” torna-se um fim em si mesmo, pouco importando o motivo); a excelência técnica que permite a criação dos universos outrora apenas sonhados pelos quadrinhos, cooptando grandes intérpretes dramáticos à realização de fantasias adolescentes. 
Birdman não é um ser, é uma máscara: contemporâneo aos super-heróis cujas existências e estripolias foram tornadas possíveis pela tecnologia, como Superman ou Batman – este último, aliás, outrora protagonizado pelo intérprete que dá vida à Birdman, Michael Keaton, escolha simbólica que aproxima esta obra da de Wilder. 
Birdman, como Norma Desmond, são alter-egos não apenas de Keaton e Swanson, mas de um amplo corpus humano produzido pela indústria cinematográfica, rapidamente rotulado e descartado tão logo pare de corresponder às expectativas de lucro dela. 
A perspectiva de se transformarem artistas em simples mercadorias para o rápido consumo e descarte das massas é dilacerante. Porém, a equação é complexa, e Iñarritu ilumina com maestria as várias facetas da questão. Na superfície, Keaton-Riggan-Birdman é um objeto de sucesso midiático: narcisista ao extremo, incapaz, por exemplo, de aceitar repreendas a certo medíocre trabalho que realizara. Perde a esposa que lhe critica a obra por confundir, segundo ela, amor com admiração. É, pois, o retrato verossímil de um sem número de artistas mimados, mais talentosos ou menos, porém infantilizados e carentes, aos quais os amigos devem se comportar como séquito para serem admitidos no seu entorno. 
No entanto, debaixo dessa superfície putrefata – que bem ou mal é produto da indústria – jaz um caudaloso rio de insuspeitada profundidade, onde o lodo e os belos exemplares marinhos disputam espaço ombro a ombro. Donde a “inesperada virtude da ignorância” do título. Ao longo do filme, Riggan revelará sua alma complexa. Por detrás da megalomania explícita deste has-been que deseja ascender culturalmente da Hollywood à Broadway, atuando para isso como ator principal, diretor e adaptador da obra literária que deseja levar à cena, há um homem movido pela intuição, cheio de um entusiasmo juvenil, a recusar terminantemente o rótulo que lhe dera (e ainda poderia lhe dar) fama e fortuna para viver em plenitude seu ofício de ator. 
Desejo que mal encobre um viés de insânia. O homem que aporta na Broadway sem conhecer seus códigos, afundando-se em dívidas para levar adiante seu sonho, precisa ter em si uma dimensão de loucura. Dimensão explicitada pela exacerbação de seu dominador duplo, não outro que o Birdman que o levara às culminâncias da glória e do desespero. 
A persona impregna-se da personagem. Iñarritu, também coautor do roteiro, depreende bem a complexidade das relações psicológicas fomentadas pelas telas. Norma Desmond, recém-vinda de assassinar o amante, desde as escadas de “Crepúsculo dos Deuses” rumo à punição como se fora Salomé vinda de encomendar o assassínio João Batista, a se entregar deleitada aos seus algozes. Embaralham-se as dimensões da realidade e da ficção; a estrela decaída julga-se dentro de uma película de Cecil B. DeMille. Já Riggan coabita empiricamente com Birdman. A projeção cinematografia de si representa tudo o que ele não é - a intrepidez, o vigor, o heroísmo – e lhe pede, como paga da proteção que lhe dá, que ele ceda à frutífera indústria do blockbuster
A premissa de Birdman é sedutora por si só, mas a obra tem seus sentidos potencializados pelas opções estéticas que faz. Há nela uma mistura imprevista de ironia e poesia que, se observa o ridículo daqueles super-heróis de borracha (e da indústria que os cria em série), igualmente procura compreender por que eles são tão amados pelo grande público. Assim, faz emergir em primeiro plano o papel do cinema como a fábrica de mitos do século XX. 
Ambivalência que é construída pela música. Dividem espaço em Birdman uma quase que onipresente percussão jazzística (representada pela bateria que pontua o palmilhar do protagonista, como se representasse as batidas de seu coração) e uns vestígios de música clássica (os violinos a tecerem as heroicas aventuras do personagem-título). E tudo se embaralha: o lirismo de Mahler embalando as cenas de ação, a agressiva percussão conduzindo as cenas as mais românticas. 
Iñarritu, como Billy Wilder, puxa o véu do imaginário e desnuda a realidade crua que ele esconde. Mas, num como noutro, o olhar crítico à arte está em razão direta do amor que ambos nutrem por ela. Birdman é fascinado pelo mundo bizarro que busca narrar e destruir. Tanto que sua factura cênica reencena a mise-en-scène do gênero que critica. 
Ao optar pela subjetiva direta, lendo o mundo pelos olhos do perturbado protagonista Riggan, recuperando assim a onipresença de Birdman, o filme se entrega a pirotecnias cinematográficas (excelentemente realizadas pela direção de fotografia de Emmanuel Lubezki, já responsável pela qualidade técnica de “Gravidade”) das quais os blockbusters estão coalhados. Como o super-herói, Riggan flutua, voa, destrói os objetos com a força da mente. O clímax da história é menos o seu final em aberto, com Michael Keaton saindo pela janela rumo a um destino ignorado, do que a cena da cidade sendo destruída por seres alienígenas, e salva por Birdman e pela força policial – glosa de uma infinidade de filmes-catástrofes rodados por Hollywood. 
O que difere ali é a música. A cena de ação é pontuada pelo leitmotiv da personagem de Birdman, um lírico trecho da 9. sinfonia de Mahler, repleto dos violinos que a história do cinema nos mostrou talhados às cenas de amor. Tudo comporta em si o seu avesso. Afinal, se o brilhante Michael Fassbender já está usando uma capa de X-Men, se Robert Downey Jr. enverga com orgulho sua carapaça de lata, o cinema-pipoca não pode ser tão ruim assim. 
Esta crítica à indústria cinematográfica mal esconde o fascínio que seu criador tem por ela. Aliás, que todos nós, como eternas crianças que querem ser entretidas, temos por ela. Perdoamos as falhas de nossos objetos de afeto, ingenuamente desejamos reformá-los, mas o que acabamos mesmo é sendo irremediavelmente enredados por eles.