Antes de Rusalka, mesmo uma dupla de artistas brasileiros tomaria o arquétipo em suas mãos. Coelho Netto (libretista) e Delgado de Carvalho (compositor) criam, em 1898, a “balada em 1 ato em prosa rítmica” Hóstia, na qual é um ondino que se apaixona por uma mortal, ameaçando destruir o vilarejo onde ela mora caso não seja correspondido. Da mitologia nórdica, Coelho Netto depreende a figura fluida da ondina/ninfa, entidade aquática que atrai os viajantes e os faz morrer afogados. Imagina uma cerimônia propiciatória na qual Selma, pastora loura de olhos claros, é conduzida por sacerdotisas de seu povoado até o ondino que deseja desposá-la. Embora ela seja salva pelo namorado logo após submergir, a criatura cumpre o prometido e destrói o povoado onde o casal vivia.
Rusalka é antes apaixonada que cruel, embora os seus desejos também se revelem mortíferos. Encantada por um príncipe que sempre se banha no lago onde ela habita, a ninfa pede à bruxa Jezibaba que a transforme em mulher para gozar das carícias dele. Jezibaba atende o seu desejo, porém, o fascínio que marca o encontro do casal dura pouco – o príncipe desencanta-se de Rusalka tão logo ela chega em seu reinado tão terreno, tão pragmático.
Ele precisa de uma princesa que seja também uma mulher do mundo, para entreter os seus convidados em seus domínios que nada devem a um Estado moderno – porém, ela, embora seja linda, é demasiado etérea e, além de tudo, muda, pois a bruxa, como contrapartida para a realização do feitiço, retira-lhe a voz. Trocada por outra, Rusalka volta ao encontro dos seus. No entanto, este retorno é a perdição dela e do seu amado. Embora ele a siga arrependido, acabará por perecer nos braços dela, prova de que qualquer felicidade eterna inexiste.
Influenciados por arquétipos imemoriais já ressignificados ao longo do século XIX, Dvořák e Kvapil inventam um mundo mágico atravessado por questões concernentes à aurora do século XX, às quais o diretor cênico André Heller-Lopes adiciona questões próprias do nosso tempo. Com a colaboração do cenógrafo Renato Theobaldo, do iluminador Gonzalo Córdoba e do figurinista Marcelo Marques, cria uma dicotomia entre o reino da fantasia e a realidade crua.
No primeiro e no terceiro atos da obra, o palco repercute a sua função empírica de palco, o que dá ao espetáculo um potente teor metalinguístico. Ao fundo dele instalou-se um telão em formato de “V”. Um conjunto de cadeiras e estantes de partituras, ao centro e ao fundo, e um pódio, diante deles, denotam que naquele espaço se apresentará uma orquestra. Em toda a extensão do fundo há um tablado para o desfile das personagens. No proscênio à esquerda há um piano. Enquanto Rusalka (Ludmilla Bauerfeldt) desliza suave entre o tablado e as cadeiras, Jezibaba (Denise de Freitas) entra severa em cena, com a batuta nas mãos e a partitura debaixo do braço. Ao longo desta leitura de Rusalka, veremos que ela é a regente da vida da protagonista, autora do seu principal desejo, o de ser humana, e também de sua queda - tanto que, nos estertores do terceiro ato, é ela que regerá, irônica, os acordes finais da ópera e da vida da ninfa, que perece junto daquele que ama.
A Rusalka carioca foi um espetáculo de altíssimo nível, que demonstra a qualidade tanto das equipes artísticas quanto dos cantores líricos nacionais. O coro e a Orquestra Sinfônica do Theatro
Municipal do Rio de Janeiro estiveram sob a ótima batuta de Luiz Fernando
Malheiro. Encenação, iluminação e figurinos operaram em simbiose. O trabalho de Theobaldo somou imagens veristas de ambientes externos, como o fundo do mar, paisagens marítimas e picos rochosos, e itens cênicos próprios de espaços fechados, como teatro ou nightclubs, fazendo conviver a natureza e o artifício; o espaço da imaginação e o da realidade. A iluminação de Gonzalo Córdoba, eivada de brancos, vermelhos e roxos, transforma esse espaço dicotômico num espaço onírico, que a realidade insiste em atravessar e macular.
O figurino de Marcelo Marques cria uma Rusalka entre humana e sobre-humana – metáfora que tão bem define a artista que a representou. O vestido azul do primeiro ato – fluido, porém comezinho, recuperando a dimensão cotidiana da cantora que ensaia o espetáculo que vai apresentar, é substituído, no segundo ato, por um vestido branco de princesa da Disney, quando ela imagina que realizará o seu sonho dourado ao lado do príncipe encantado; e, enfim, por um vestido acinzentado feito de retalhos, fechado, na parte traseira, por uma espinha de peixe que se sobrepõe à coluna vertebral da artista, recuperando o lugar de criatura metamórfica da personagem, num só tempo terrena e divina.
A qualidade do trabalho de Marques se estende a outras personagens do espetáculo, como o príncipe – entre a armadura medieval que recupera o seu lugar de personagem de fábula e o terno que lhe dá uma dimensão de político moderno. E também de Jezibaba, que, se no primeiro ato, surge envergando um fraque de maestra – sublinhando a dimensão de orquestradora da vida da ninfa –, no terceiro usa um exuberante vestido negro cujos braços são cobertos por andrajos, e, na cabeça, cabelos de Medusa e uma coroa de pedras; figurino que lhe dá um éthos, num só tempo, de criatura das trevas e de rainha.
Ótimo encenador, Heller Lopes dirige à excelência o seu elenco de ótimos cantores. Sua tríade de ninfas, composta por Carolina Morel, Mariana Gomes e Lara Cavalcanti, timbrou bastante bem e exacerbou, em cena, a fluidez das personagens. Geilson Santos e Hebert Campos realizaram bem-sucedidas (e humoradas) intervenções como Vaňku e Jářku.
O barítono Licio Bruno, num grande momento de sua carreira, foi um Vodnik – o senhor das águas e pai/protetor de Rusalka – ao mesmo tempo temerário e terno, em seu esforço de dissuadir a ninfa de seu sonho de se tornar humana e de protegê-la quando ela retorna ao lago e vê-se diante do castigo de Jezibaba.
O tenor Giovanni Tristacci deu corpo a um príncipe cuja assertividade foi permeada pela timidez, algo esperado, não apenas do ponto de vista cênico, já que era um humano apaixonado por uma deidade, mas também porque contracenou com a soprano Eliane Coelho (deliciosa em cena), no papel da Princesa Estrangeira, artista que é uma entidade dos palcos mundiais há cinco décadas.
A mezzo-soprano Denise de Freitas exacerbou o sadismo da personagem de Jezibaba – que, nas mãos de artista menos experimentada, poderia se transformar numa bruxa caricata. A personagem é nada menos que a artífice da queda de Rusalka - mesmo depois de espoliá-la de todos os seus bens materiais, rouba-lhe a voz, algo ainda mais cruel se entendermos que, sob a ótica da encenação, Rusalka não é apenas uma ninfa, mas literalmente uma cantora de ópera. O sadismo de Jezibaba é atravessado por um bem-vindo deboche, quando ela prepara a poção que engendrará o infortúnio da pobre ninfa, o que lhe tira do lugar de personagem plana. Além de impregnar dramaticamente a sua personagem de psicologismo, a artista é uma cantora de tirar o fôlego, dominando com maestria os trânsitos loucos da partitura entre os graves e os agudos.
Uma contraparte à sua altura foi Ludmilla Bauerfeldt - que apenas ao caminhar pela cena já me tira lágrimas dos olhos. Ludmilla realizou um trabalho cênico de qualidade superlativa. Seja o seu longo e dificultoso contorcimento enquanto, no terceiro ato do espetáculo, cantava o seu infortúnio, observada por Jezibaba, seja o seu empalidecer – sim, porque ela literalmente empalideceu – ao tentar separar o amado príncipe de sua rival, no segundo ato. E vocalmente, Ludmilla construiu uma Russalka brilhante, repleta de agudos cristalinos.
Ludmilla e Denise, ademais, realizaram trocas cênicas excelentes. O gênero operístico requer tanto domínio técnico do canto quanto conhecimento de teatro, como bem sabemos. Nessa Rusalka, as duas artistas estiveram todo o tempo “em situação”, como se diz no jargão teatral, brindando-nos com teatro de grande qualidade – destaque-se o momento em que Jezibaba pede à ninfa a morte do príncipe, e ambas encetam uma luta física e vocal em que alternam o protagonismo. Que prazer vê-las contracenando. Quiçá isso possa acontecer outras vezes!
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