quinta-feira, 29 de janeiro de 2015

Os melhores e piores de 2014 (III)

Enfim, a última parte da nossa lista de destaques cinematográficos do ano passado. Agora, os europeus. 
A começar pelo já aqui lembrado “Mil Vezes Boa Noite” (“Tusen ganger god natt”, 2013), de Erik Poppe, coprodução da Noruega, Irlanda e Suécia protagonizada pela sempre excelente Juliette Binoche, secundada por Nikolaj Coster-Waldau. Binoche consegue, como Marion Cotillard, a despersonalização completa. Ela é a personagem que desempenha. Sempre. Já o disse aqui anos atrás, na resenha de “Cópia Fiel”. Vejam-na aqui, perdida entre os vários idiomas que não são dela (o inglês, o norueguês), metáforas do apatriamento vivido pela fotógrafa de guerra – mais estranha ao seu lar que às longuras ásperas que ela registra. 
Outro grande filme, também coprodução (Dinamarca, Alemanha, Bélgica, Reino Unido e França) é “Ninfomaníaca” (“Nymphomaniac”, 2013), obra de fôlego de Lars von Trier, dividida em dois volumes, com os ótimos Charlotte Gainsbourg, Stellan Skarsgård, Stacy Martin e Uma Thurman. Como “A praia do futuro”, a reputação da obra a antecedeu. Ela, todavia, também vale muito mais que os buchichos que gerou devido ao tema e à obscenidade de várias sequências. 
A Itália nos presenteou com uma obra-prima, “A grande beleza” (“La grande bellezza”, 2013),magnífico filme de Paolo Sorrentino, com um Toni Servillo em estado de graça – certamente iluminado pelo meu amado Marcello Mastroianni, de quem ele é uma espécie de alter-ego. Desempenha o papel de Jep Gambardella, jornalista bon vivant, meio flâneur, meio dândi, que espreme a secura de sua Itália contemporânea (são impagáveis suas tiradas à imprensa de celebridades, ramo de onde ele, para seu desprazer, tira o seu sustento) para extrair dela o maravilhamento. Voltam a infância, o primeiro amor, a religião, os grandes monumentos da pátria milenar – todos resignificados pelo palmilhar cativado e irônico do homem pela cidade. O filme poreja “La Dolce Vita”, sem ser derivativo da obra-prima de Federico Fellini. Uma grande, belíssima homenagem à Itália e ao cinema. 
Assim como “Que estranho chamar-se Federico (“Che strano chiamarsi Federico”, 2013), contação da trajetória de Fellini pelo seu grande amigo (e grande cineasta) Ettore Scola – ambos desempenhados, no docudrama, pelos netos de Scola; Tommaso Lazotti e Giacomo Lazotti. Certas obras estabelecem uma relação tão indissolúvel entre texto e contexto que é impossível enxergarmos um em detrimento do outro. Como atingir o distanciamento afetivo para analisar um filme que presta uma homenagem tão derramada ao cinema italiano; à Cinecittà, sua cidade dos sonhos; às grandes estrelas italianas desta arte e ao nosso imaginário, repleto dos flashes criados pela câmera mágica do brilhante Fellini? A tarefa é difícil (mas eu fiz o possível para realizá-la algo extensivamente, numa resenha publicada na Imagofagia, à qual remeto o leitor). 
Da França saiu “Saint Laurent” (2014), um belo filme de Bertrand Bonello, com Gaspard Ulliel excelente no papel do biografado Yves Saint Laurent, Jérémie Renier como Pierre Bergé, e Louis Garrel como Jacques Bascher, uma das pontas do triângulo amoroso. O notório estilista era poeta, quem diria. O filme consegue ganhos dramáticos ao abraçar, para a construção da narrativa, esta faceta pouco conhecida do homem. Ganham sopro de poesia não só o filme, mas também o métier, historicamente mais relacionado à manufatura que à arte. Recupera-se a importância simbólica dos tailleurs saídos do lápis do artista, que cooperaram no empoderamento das mulheres de seu tempo. Muito bom filme. 
Já “Amar, beber e cantar” (“Aimer, boire et chanter”, 2014) é para os amantes de Alain Resnais. No canto dos cisnes do grande diretor francês – premiado no Festival de Berlim pouco antes de falecer, aos 91 anos – retorna a célebre soma de elementos encontrados em suas obras: a troupe composta pela esposa Sabine Azéma, e por Hippolyte Girardot, Caroline Sihol et compagnie..., a adaptação de uma peça teatral (de Alan Ayckbourn), e a partir dela, a circulação pelos gêneros e o entremear da vida e da arte. Também volta o tema da morte, já presente no ótimo “Vocês ainda não viram nada”. Resnais deve ter sido um velho senhor lépido e faceiro, a contar pelo modo como ele retratou a morte, nesses últimos filmes. Com bom-humor, encena as pompas fúnebres de dois alter-egos seus. Sua morte real foi acompanhada pelos mesmos parceiros que acompanharam suas peripécias cinematográficas, os quais, junto ao seu caixão, mimetizaram fidedignamente a arte na vida. 
E, enfim, de Portugal veio-nos “Florbela” (2012), obra de Vicente Alves do Ó com a ótima Dalila Carmo, e Ivo Canelas (no papel de seu irmão) e Albano Jerónimo (seu marido). O filme privilegia a vida conturbada de Florbela Spanca – feminista avant-garde à sua obra poética. A perda da poesia, que tão bem faria ao filme, não o impede de ser um trabalho digno de atenção, com interpretações notáveis de Carmo e Canelas, irmãos que, nesta biografia dramática, nutrem um amor que resvala para o âmbito carnal. Entregues aos seus personagens, ambos conseguem construir duas densas psicologias, das quais emergem as angústias pelos sentimentos proibidos. 

Os amigos me lembraram que, ao longo dos balanços do ano, deixei de lado “Pais e filhos” (“Soshite chichi ni naru”, 2013), de Hirokazu Koreeda, aquele que seria o único representante japonês de nossa lista. Realmente, um ótimo filme. Parte de uma premissa banal – a troca de dois garotos na maternidade – para, com a sobriedade comum aos filmes (e à sociedade) do Japão, dar mergulhos de fôlego em questões como o amor paterno/filial, a configuração da sociedade japonesa (no que toca tanto às relações marido-mulher, pai-filho quando no que diz respeito às cobranças feitas desde à mais tenra infância, para que as crianças sejam bem-sucedidas). O mundo do pai workaholic vira do avesso quando descobre que o filho que ele vinha talhando ao feroz mercado de trabalho é, na verdade, o filho de um casal de hippies
E eu, de minha parte, me esqueci de “Até o fim” (“All is Lost”, 2013), de J. C. Chandor, com um excelente Robert Redford, vincado e maltrapilho, a depender exclusivamente de sua expertise de ator. Espécie de versão contemporânea do clássico de Hemingway “O velho e o mar”, aqui Redford é o velejador que se descobre náufrago, depois que restos da carga de um navio abrem o casco de sua embarcação. Sua luta pela vida é tão bem contada que nos resulta quase palpável. 

Quantos mais não foram deixados de lado nesta seleção. E ainda reclamam que o cinema está morto. As obras-primas realmente rareiam, quando comparamos nosso tempo aos tempos passados. Porém, as salas de exibição ainda podem nos comover, nos divertir e nos provocar. Viva o Cinema! Que é, aliás, o título de outro filme...

sábado, 3 de janeiro de 2015

Os melhores e piores de 2014 (I)

O blog entra 2015 com a famigerada lista dos melhores (e piores) filmes do ano que passou. A relação, sempre se considerando o que chegou até essas plagas, é extensa – prova da boa safra de filmes em 2014. Portanto, divide-se em dois posts, e por por continentes, de modo a facilitar a sua organização. E, porque é extensa, será aqui apresentada em flashes, com breves comentários sobre cada obra e minha apreciação acerca delas. Busca especialmente provocar o leitor curioso a ir por si só às obras e tecer suas considerações sobre elas. 

Comecemos com a América do Norte, o grande mercado produtor e exibidor de cinema – falamos dos EUA, sobretudo. O Canadá, embora produza, chega muito pouco até nós. 
Joaquin Phoenix em "Ela"
O ano de 2014 abriu com uma longa seleção de indicados ao Oscar, todos a aportarem religiosamente por aqui, mesmo os medianos. Os melhores foram “O lobo de Wall Street” (“The Wolf of Wall Street”, 2013), ótimo filme do eclético (e sempre perspicaz) Martin Scorsese, saga do par de vigaristas de luxo interpretados com excelência por Leonardo Di Caprio e Jonah Hill. Infelizmente, nem o diretor, nem o protagonista, receberam as tão merecidas estatuetas, distribuídas protocolarmente entre coisas bem menos interessantes – as quais serão aqui merecidamente deixadas de lado... 
Houve também “Ela” (“Her”, 2013), encanto de filme de Spike Jonze com os ótimos Joaquin Phoenix e Amy Adams (e a voz de Scarlett Johanson, programa de computador por quem o protagonista se apaixona). É o retrato poético de um mundo cada vez mais reduzido à inteligência artificial. Vale muito a visita, assim como o melhor de todos, “Trapaça” (“American Hustle”, 2013), no qual David O. Russell (também coautor do roteiro) orquestra um time memorável composto por, novamente, Amy Adams, e também Christian Bale, Bradley Cooper e Jennifer Lawrence. A trama gira em torno dos triunfos e dissabores de um grupo de trambiqueiros. Mas vale a pena especialmente pela leitura irônica e sensual dos anos de 1970, e pela sem-cerimônia com que as quatro estrelas se permitiram transformar em tipos ultra bregas, jogando com deleite o jogo do cinema. 
A corrida para o Oscar de 2015 não demorou a começar. Os concorrentes mais ou menos se assemelham. Há os filmes verdadeiramente bons; os passáveis; e os pretensiosos e/ou estopadas. 
"Interestelar"
Destes últimos, bons exemplos são o interminável “Interestelar” (2014), patacoada de Christopher Nolan (o diretor do ótimo “A Origem”, que aqui assina o roteiro em parceria com Jonathan Nolan), com Matthew McConaughey, Anne Hathaway e Jessica Chastain. A tentativa intentada de aproximação com “2001: Uma odisseia no espaço” resulta ridícula. A passagem do tempo no espaço sideral é arbitrária, ok. Mas a viagem, a exploração, os reveses ganhariam em qualidade se fossem apresentados com maior enxuteza e menos artefatos lacrimogênios. Ganhamos um dramalhão de 3 hrs passado no espaço. Não nos assustemos se ele levar algum(ns) Oscar(s) (a surpreendente posição de 16.º melhor filme de todos os tempos, no IMDB, mostra que o povo gostou bastante do resultado...). 
Tilda Swinton em "Grande Hotel Budapeste"
Dois outros filmes que se encaixam supracitada categoria são “O Grande Hotel Budapeste” (2014), de Wes Anderson, e “Magia ao luar” ("Magic in the moonlight", 2014), de Woody Allen (também autor do roteiro). O primeiro é uma papagaiada – com todo o respeito que eu tenho por (especialmente) Ralph Fiennes, Mathieu Amalric e Tilda Swinton. Wes Anderson procura ser espirituoso e profundo, na sua reflexão sobre a “perda de elegância” do mundo e outros temas pseudofilosóficos, porém dá a essa sua obra a consistência daqueles bolos lindamente confeitados, que enchem os olhos mas não valem a mordida. 
Emma Stone e Colin Firth em "Magia ao luar"
Sobre “Magia ao luar” (“Magic in the moonlight”, 2014), aliás, sobre Woody Allen: acho louvável seu empenho por continuar trabalhando, mas suponho que a crítica recente o esteja supervalorizando. Acho que a sua obra ganharia se ele a deixasse encorpar antes de trazê-la a lume – como a gente faz com os pães antes de colocá-los no fogo. Não precisamos de mais uma refação de “Noivo neurótico, noiva nervosa”; de mais um protagonista alter-ego do autor, a arrotar erudição e ceticismo. Neste filme, ao contrário de seu último, “Blue Jasmine”, nem mesmo os protagonistas foram escolhidos com acerto. Pobre Emma Stone, sempre tão carismática, aqui apagada. Pobre Colin Firth, sempre elegante e profundo, aqui, um paspalho. Torço para que o Oscar de Melhor Roteiro original acerte outra pessoa em detrimento do Sr. Allen... 

Ellar Coltrane, "Boyhood"
Mas nem tudo foram espinhos na terra do tio Sam. Jim Jarmusch acertou com “Amantes eternos” (“Only lovers left alive”, 2013), conto pop dos vampiros centenários (os ótimos Tilda Swinton, Tom Hiddleston e Mia Wasikowska) que vivem da saciação de seus prazeres imediatos – a arte, o amor, a fome. James Gray brilhou com “Era Uma Vez em Nova York” (“The Immigrant”, 2013), no qual ele reúne uma trinca de ouro, das melhores do ano: Marion Cotillard, Joaquin Phoenix e Jeremy Renner. Cotillard e Phoenix estarão certamente entre os indicados aos principais prêmios do ano. E Richard Linklater lançou este ano o tour de force que atende pelo nome de “Boyhood” (2014), filme realizado ao longo de doze anos, esforço realista inédito no cinema (até onde eu sei) de estudar o desenvolvimento de um garoto, da infância até a partida para a Universidade – momento simbólico para os norte-americanos. Que beleza é ainda poder ver filmes que distendem os limites do cinema; feitos com vagar, como os vídeos científicos que flagram o desabrochar das flores. O resultado paulatino do galgar dos anos sobre Ellar Coltrane, Patricia Arquette e Ethan Hawke dá um sentido poético ao envelhecimento. 
Estamos ainda nos EUA, agora na faceta autoirônica do país (tão difícil de ser tematizada).
Viggo Mortensen e Kirsten Dunst,
"As duas faces de janeiro"
“As duas faces de janeiro” (“The Two Faces of January”, 2014), muito recentemente estreado entre nós, é um bom exemplo. O longa dirigido e roteirizado por Hossein Amini, a partir do romance de Patricia Highsmith (também autora de “O Talentoso Ripley”, obra de atmosfera semelhante) traz porções bem dosadas de suspense e de humor negro. Ao longo de uma viagem idílica à Grécia, os pombinhos Viggo Mortensen e Kirsten Dunst veem-se envolvidos, juntamente com o norte-americano tradutor de grego Oscar Isaac, numa trama de quiproquós crescentes e surpreendentes. A suposta “beleza americana” se amarrota, na medida em que vemos os três caminharem de Atenas às ilhotas mais recuadas do país, progressivamente desgrenhados e maltrapilhos. O charme do filme transcende, ainda, a trama. Está na montagem e na música, que pontuam com ironia a decadência dos personagens; e na atuação impecável do trio de artistas. 
John Lloyd Young em primeiro plano,
em "The Jersey Boys"
“Jersey boys: em busca da música” (“Jersey Boys”, 2014) é outro filme a mimetizar este esforço autoirônico. De Clint Eastwood, outro diretor eclético e eficiente em todos os gêneros, o filme apresenta a versão cinematográfica do musical – quem sabe – mais bem-sucedido da história recente da Broadway (foram até agora um total de 3788 performances, desde outubro de 2005). O roteiro é de Marshall Brickman e Rick Elice, também responsáveis pela adaptação teatral da história. É uma leitura festiva – com altas doses de liberdade poética – da trajetória do grupo musical “The Four Seasons”, sucesso desde os anos de 1960 com canções como “Sherry”, “Big Girls Don't Cry” e a mais longeva de todas, “Can’t Take My Eyes off You”. John Lloyd Young desempenha o protagonista, Frankie Valli, Cinderela às avessas, ítalo-americano que enveredou pela máfia de New Jersey antes de exercer profissionalmente o invejável falsete de que a natureza lhe dotou. Suas andanças todas – mesmo as menos politicamente corretas – são pontuadas por grande senso musical e bom-humor; além de uma cinematografia que estrutura a história à guisa de obra teatral, deixando de lado o realismo próprio do cinema sem abandonar a emoção. 
No âmbito do “cinemão”, houve uma porção de bombas, mas algumas coisas bem interessantes. A saga “X-Men” encontrou a glória com “Dias de um Futuro Esquecido” (“X-Men: Days of Future Past”, Bryan Singer, 2014), união de alguns dos maiores artistas contemporâneos de Hollywood: além dos costumeiros heróis Hugh Jackman (como Wolverine) e James McAvoy (como o professor Xavier), os excelentes (e polivalentes) Michael Fassbender e Jennifer Lawrence, e Halle Berry, Anna Paquin, Ellen Page. O filme agradará não apenas quem gosta dos quadrinhos como quem aprecia cinema. Há ali timing cômico e dramático, e uso inteligente dos recursos visuais. “No Limite do Amanhã” (“Edge of Tomorrow”, 2014), de Doug Liman, com Tom Cruise, Emily Blunt e Bill Paxton, é outra boa surpresa do gênero. A ideia parte da ficção científica: num futuro não muito distante, um soldado medroso, que trabalha para o exército destrói uma arma que altera o curso da Terra, permitindo que o tempo recomece a partir daquele momento, cada vez que o personagem morre. O filme toca em questões caras ao cinema, como no papel do protagonista – vemos Tom Cruise morrer sucessivas vezes no curso do filme, algo incomum no blockbuster padrão – e na própria reversibilidade da imagem cinematográfica, que pode ser retrocedida, revisitada, reexplorada. É deste processo de revisão, dentro do curso da ação, que o soldado fanfarrão se transformará no herói que a gente conhece. Além de tudo, o filme consegue ótimo rendimento cinematográfico, por meio de um roteiro que repete e esconde acontecimentos na medida certa. 
Ansel Elgart e Kaitlyn Dever em "Homens,
mulheres e filhos"
Saindo do campo do blockbuster, mas ainda no interior do “cinemão”, há “Homens, Mulheres e Filhos” (“Men, Women & Children”, 2014), um imperdível filme (sobretudo aos pais de filhos adolescentes) de Jason Reitman. O diretor tem sensibilidade no trato com a faixa etária tematizada aqui – foi o responsável pelo encantador “Juno” (2007). Como em “Juno”, este filme tem uma pegada popular (os namoros na High School e na internet, a mãe neurótica, a filha que foge de casa para encontrar o namorado...) que mal esconde a sua profundidade. Há uma moral aqui, pois falamos da Hollywood standard, mas há também uma surpreendente alternância dos focos narrativos, que nos permite, ao final, uma leitura bem ampla daquela sociedade representada. Há, além de tudo, contidas atuações por parte de gente como Adam Sandler (popularíssimo ator, mas que raramente acerta), Jennifer Garner e dos novatos Ansel Elgort (do blockbuster teen “A culpa é das estrelas”) e Kaitlyn Dever. Para mim, a grande surpresa do gênero, em 2014. 
Do Canadá, uma única, mas notável, menção: "Mommy" (2014), de Xavier Dolan (também roteirista), com Anne Dorval, Antoine-Olivier Pilon, Suzanne Clément. Mas sobre ele eu já disse muito no post anterior, ao qual remeto o leitor
No próximo post, destaques da América Latina e da Europa.

sexta-feira, 26 de dezembro de 2014

Mommy (2014)

Certos filmes não se deixam dissociar de sua trivia. Exemplo é “Mommy”, obra saída da batuta de um garoto de 23 anos, Xavier Dolan (também autor do roteiro). É um filme de largo fôlego. Surpreendente (mesmo meio exasperante), que algo tão bom tenha saído de alguém tão jovem. Lembramo-nos de Orson Welles, que não muito mais velho pariu um monstro – “Cidadão Kane” (1941), obra que revolucionou Hollywood à época. 
Xavier Dolan no set com Anne Dorval
O jovem diretor canadense herdou do confrade norte-americano a megalomania e o talento. O caso de Dolan é, no entanto, mais espantoso. Embora tenha estreado no exercício do longa-metragem com “Kane”, Welles já havia experimentado na direção de alguns curtas e tivera uma intensa experiência no teatro. Era, no final das contas, um produto dos anos de 1940 – self-made man, a trocar o banco escolar pela vivência empírica do métier. Amadureceu e adquiriu erudição cedo, como não era incomum então. 
Já Dolan é um prodígio. 
O século XX foi se infantilizando e desletrando com o galgar dos anos, como bem sabemos. Portanto, impressiona que o menino de 17 anos tenha decidido trocar a faculdade pelo cinema e sido capaz, já aos 23, de erguer uma carreira digna de nota. Se lhe falta erudição cinematográfica, sobram-lhe criatividade e frescor de observação. 
Antoine-Olivier Pilon
A obra de Dolan se debruça sobre o universo jovem, deslindando temas que tangem mais ou menos fortemente a esfera da autobiografia. Mais do que fruto da arrogância – pecha que a crítica brasileira já lhe impingiu –, a escolha se deve à compreensível imaturidade do autor e à sua ausência de erudição cinematográfica. Com o tempo, sua objetiva se voltará ao outro. Movimento que já se observa: se em “Eu matei a minha mãe” (2009) e “Amores imaginários” (2010) o diretor acumulava o papel de ator principal, em “Mommy” ele se retira em prol de Antoine-Olivier Pilon, protagonista de seu curta “College Boy: Indochine” (2013). 
As escolhas estilísticas e dramatúrgicas também se sofisticaram. Em “Mommy”, como em “Eu matei a minha mãe”, o cerne é o relacionamento entre mãe e filho – a ótima Anne Dorval desempenha ambos os papéis, e, pela constância da parceria entre ambos, deve funcionar como uma espécie de mãe substituta do diretor, no âmbito cinematográfico. Todavia, se ambas as relações são tumultuosas, a retratada em “Mommy” poreja não só tensão, mas profundidade e poesia. Embora os dois filmes olhem o mundo pelos olhos dos filhos, no último a subjetiva mistura as vivências do protagonista adolescente às do diretor, já um homem. 
Xavier Dolan fez uma escolha estilística decisiva para que o júri de Cannes o tenha pareado ao mítico Jean-Luc Godard, mestre da Nouvelle Vague que este ano surpreendeu novamente com “Adieu au langage” (2014), experimentação no 3D: restringiu em 2/3 o tamanho da tela de projeção. O cinema, janela do mundo, torna-se, em “Mommy”, a fresta que dá a ver o mundo do garoto-problema Steve Després. Sucedânea de seus olhos, a câmera detém-se nas minúcias do que ele enxerga. 
A escolha restritiva – este filme, como o de Godard, são obras para o cinema, daí a simbologia da escolha de ambas pelo júri do festival francês – denota invulgar autoconfiança do autor, além de um bem-vindo sopro de inventividade. A decisão formal resvala com força dramática para o âmbito da temática: a enxutez do quadro recria para o público o mundo restrito em que habita o superexcitado personagem – cerceado pelas restrições que a doença lhe impõe; os muitos planos aproximados dão intensidade ao recorte. O mundo de “Mommy” é feito das sensações de Steve: desde sua saída do centro de correção, ao dia-a-dia turbulento com a mãe (por quem ele nutre um amor doentio), à convivência paulatina com o outro – notadamente a vizinha Kyla (Suzanne Clément). 
A câmera oscila entre a grande beleza de alguns quadros e os excessos de outros. A grandiloquência calculada não deixa, no entanto, o filme cair no maneirismo. 
Dolan tem olhos excepcionalmente treinados para a sua idade. Sua câmera inventa o mundo; ele segura firme as suas rédeas. A casinha decaída recém-alugada pela mãe (Anne Dorval/ Diane Déspres) é vista com grande sensibilidade pelo menino vindo do reformatório: os cortinados e a tapeçaria tomados por uma câmera acariciante, a dar tessitura de seda aos primeiros momentos de mãe e filho na casa nova. 
O olhar é extensivo à figura materna, amada e vilipendiada com passionalidade análoga pelo garoto. Dolan projeta suas nevroses em toda a sua obra. A bela sequência de Anne Dorval sob a macieira da casa, a degustar o fruto recém-colhido, será sucedida por uma feroz contenda entre mãe e filho; e assim sucessivamente – o filme, como a obra toda do diretor, pontua-se desses altos e baixos. O rapaz trabalha com interesse os fantasmas inerentes à fase de transição da adolescência para a vida adulta, que todos nós já vivenciamos com intensidade maior ou menor. 
Kyla/ Suzanne Clément
Um dos pontos altos de Xavier Dolan é sua sensibilidade no trabalho com os atores. Os três principais estão ótimos. Anne Dorval e Suzanne Clément, sobretudo, a primeira, derramada, a segunda, contida: contrapontos perfeitos uma da outra. No relacionamento entre ambas, e delas com o menino Antoine, Dolan impregna a película de humanidade. Em detrimento da grandiloquência pontual, o diretor põe em debate as relações humanas com sensibilidade e verossimilhança, sem o sentimentalismo barato costumeiro nos filmes que retratam a relação da criança-problema com o seu entorno. 
A delicadeza com que Dolan apreende suas atrizes é muito bem representada pela sequência que apresenta Suzanne Clément: pela câmera que deixa a mãe e o filho ruidosos e, penetrando na casa da vizinha Kyla, perscruta silenciosa o seu entorno, quiçá procurando compreender o que teria feito a professora perder a voz. Daí por diante, atam-se os percursos do trio, a experimentarem as alegrias e os sofrimentos do relacionamento recém-construído. 
Cabe, por fim, recomendar o filme pela sua qualidade sonora. O Canadá de ascendência francesa tem uma especificidade quando comparado ao país de quem herdou a língua. Enquanto que a França repudia e/ou pisoteia o inglês, ele (o filme foi realizado no Quebec) abraça o idioma de bom grado. Dolan não nega a sua juventude. Sua obra transpira cultura pop, e “Mommy” não é diferente: mistura a língua francesa e a inglesa, os cancioneiros estadunidense e canadense. O resultado é um cosmopolita filme em francês, que muito merece a nossa visita atenta.

sexta-feira, 28 de novembro de 2014

Mil vezes boa noite: das seduções de um mundo em ruínas

Algumas vezes o cinema se impregna de visceralidade tal que se torna, pelo espaço de duas horas, o espelho dos meandros mais tortuosos das nossas almas. Digo isso depois de ver e rever “Mil vezes boa noite” (Tusen ganger got natt, 2013), ótimo filme de Erik Poppe, com uma Juliette Binoche de intensidade estonteante, secundada por um Nikolaj Coster-Waldau cheio de equilíbrio e uma jovem atriz com méritos de veterana (Lauryn Canny, em sua estreia no métier). 
“Mil vezes boa noite” fala de guerra. Daquelas travadas entre dois grupos oponentes, visando à supremacia de um sobre outro (governos versus grupos terroristas; governos versus civis; tribos rivais, etc.). Porém, sobretudo, daquela travada dentro de nós mesmos, silenciosa, mas nem por isso menos brutal. 
Juliette Binoche é Rebecca, francesa radicada na Noruega, fotógrafa de zonas de conflitos com marido e duas filhas pequenas. Seria a mocinha modular, à moda das heroínas americanas de guerra (uma delas, a Hana de “O Paciente Inglês”, deu-lhe mesmo um Oscar de Melhor Atriz Coadjuvante), não se digladiassem dentro dela, em medidas análogas, o horror à barbárie e a incontrolável atração pelas situações-limites. 
É a clássica sedução do perigo – que movimenta o turismo de aventuras, dá altos retornos financeiros aos divertimentos radicais dos parques e arrasa multidões aos filmes-catástrofes; entretenimentos que oferecem ao público a possibilidade de viver em dimensão controlada as situações de tensão – que leva Rebecca a abandonar a família rumo aos fronts de batalha; para fruir a vivência do terror, desta vez empiricamente. 
Juliette é uma atriz experimentada. As heroínas convencionais são para as meninas – para as atrizes meninas; para as mentalidades meninas. A sinceridade com que ela traja as vestes da personagem, despindo-se de melodramatismos, e o despudor com que num só tempo bebe o sangue dos sujeitos que retrata e chora por eles, tornam-na a projeção de cada um de nós, da integridade que desejamos ostentar e das taras que procuramos esconder. 
A ambivalência se estabelece durante todo o curso da narração, com profundidade rara no cinema contemporâneo. O filme promove uma dissecção nas personagens de primeiro plano que me lembro de ter visto pela última vez em “Separação” (2010). 
Quem é Rebecca? A fotografa brilhante, vista como heroína pelos colegas de trabalho? A mulher cuja vida familiar é marcada pelas despedidas: esposa apaixonada porém ausente; mãe que amarga a culpa de não acompanhar o crescimento das filhas, não por amá-las de menos, mas por ser incompatível à maternidade padrão. Como ao casamento padrão. A mulher que busca transcender os limites do próprio corpo, como se quisesse fugir dele: dos mergulhos nas águas geladas do mar invernal norueguês, às corridas exaustivas a que se submete, estando ainda por cicatrizar das feridas abertas pelo último atentado a que presenciou. 
“Não podemos fugir do que somos”, ela diz ao esposo. Seu repúdio às marcas da violência que dilaceram os rostos dos outros – marcas que ela com tanto talento registra – convive dentro de si com uma sanha de atividade que a leva a querer mover-se; em detrimento das marcas que ela própria deixa pelo caminho – como a obrigação que impõe ao marido e à filha mais velha de viverem na contínua iminência de sua morte. 
É a gana de aventura, a “raiva não sei do quê” - que desde sempre habitava dentro de si – que a fazem tão boa. Rebecca, fotógrafa excepcional enquanto não se deixa envolver emocionalmente por aqueles aos quais fotografa, vê-se reduzida a frangalhos quando a filha lhe volta a objetiva, fotografando a mãe austera até que a transforma em objeto. Doravante, a profissional de sangue frio ganhará uma emotividade que, se a aproxima daqueles que constantemente a esperam em casa, também a incompatibilizará ao ofício. No rincão do Oriente Médio, Receba é incapaz de fotografar a menina-bomba que se prepara para o holocausto. A fotógrafa dá lugar à mãe. 
Mãe que, a certa altura, percebe ter se transformado no espelho da filha. Retorna de uma de suas constantes viagens para ver a garota prematuramente amadurecida. Também artista: desenhista, a traçar com o lápis o rosto morto da mãe, registro de um fato que cedo ou tarde acabaria por se consumar. Steph quererá seguir os passos de Rebecca. Descobrirá com ela os primeiros prazeres e temores das zonas de conflito, e semeará na mãe o temor primevo de perdê-la – explicitado na cena em que Rebecca vê a adolescente afegã ser preparada para morrer. 
O filme tece cinematograficamente a ambivalência, construindo imagens – fotografias e sequências – que primam num só tempo pela beleza e pelo horror. Rebecca desejava fazer os leitores de seu jornal engasgarem com os terrores que registrava; faz sua câmera funcionar à guisa de arma, transformando-se, ela, em soldada dos oprimidos; mas muitos daqueles que ela registra transbordam fotogenia. A sequência inicial, com o velório de uma mulher afegã viva – para que as rezas não se dirigissem a um corpo destroçado –, o último banho da vítima, a encomenda de sua alma ao seu Deus, e a impassibilidade com que a fotógrafa acompanha o evento antes e depois da explosão - ferida e amarfanhada -, é das mais belas rodadas nos últimos tempos. Ao iluminar os éthos guerreiros das duas mulheres, alinhando-as uma à outra, a sequência leva os espectadores a questioná-las a ambas. 
Ao mesmo tempo, as cenas da intimidade familiar dão-nos um estranhamento que também é o da protagonista, mais acostumada às suas “roupas que cheiram a morte” que à casa acolhedora da família. Embora breves sopros de felicidade façam resplandecer o belo rosto Juliette – a fotogenia em pessoa – a casa é sempre o âmbito da passagem, suas paredes a ecoarem despedidas.

sábado, 8 de novembro de 2014

Música & Cinema no SESC Pinheiros

Foi com nostalgia que recuperei a resenha da exposição francesa "Musique et cinéma", escrita quando eu recém voltara de Paris. E os comentários dos amigos blogueiros. A Letícia, da Crítica Retrô, sonhava: “Quem sabe um dia não temos a sorte de vir uma exposição dessas para o Brasil?”. Sonho de realização improvável, mas não impossível. Prova disso é que o SESC Pinheiros (São Paulo, metrô Faria Lima) acolhe agora (e até 11 de janeiro de 2015) uma porção considerável dela. 
O questionamento segue o mesmo: “Música & cinema: O casamento do século?”. E as respostas desdobram-se com a mesma formatação da Exposição original: a penumbra a mimetizar a sala de cinema; telas brancas a reproduzirem as sequências de abertura de filmes rodados entre os anos de 1930 e 2000; enquanto pequenos monitores apresentam sequências célebres (Clouzot a testemunhar Karajan regendo a Filarmônica de Berlim; Judy Garland num dos números musicais de “Nasce uma Estrela”, 1954...) e conta as histórias a eles relacionadas. É desusado me estender aqui. Remeto o leitor à tal resenha passada, que descreve a passo a exposição. 
Da criação da Cité de la Musique, não cruzaram o Atlântico os estúdios de brinquedo; os três telões a emergirem uma grande audiência nas obras inesquecíveis. A sala dentro da qual criadores explicavam proficuamente suas criações foram transformadas nuns poucos monitores a apresentar o depoimento de escolhidos: Ennio Moriconni, Michel Deville, Eduardo Coutinho.  
O resumo é eficaz. Se lima consideravelmente a voz de nomes fundamentais da música na Sétima Arte, como Michel Legrand (a quem o lirismo da obra de Jacques Demy muito deve), também dá voz à prata da casa – igualmente abafada na exposição francesa, diga-se de passagem. Chico, Vinícius, Caetano e Gilberto Gil deram corpo e alma a filmes mais ou menos populares: de “Ópera do Malandro” (1986) a “Lisbela e o Prisioneiro” (2003); de “Veja essa canção” (1994) a “Eu tu eles” (2000). A seleção deixa de lado os usos mais cerebrais da música, como aquele que ocorre em “O Som ao Redor” (2012), para concentrar-se, sobretudo, na canção. Daí, pede a voz Eduardo Coutinho, cuja última obra, “As Canções” (2011), recupera as trilhas-sonoras das histórias de anônimos. 
O sempre sagaz Coutinho vê as vidas dos brasileiros indissoluvelmente imbricadas nas canções. Um mundo emerge dessa consideração: a revolução tecnológica que tornou possível a invenção do fonógrafo, do cinema e do rádio, que engatilhou a cultura de massas, alavancou a popularização da música enquanto item fragmentado de consumo: nos 78 rotações, nos salões de bailes dos bairros, numa variedade crescente de gêneros que aproximavam os corpos, relaxavam os costumes severos de outrora e davam voz a uma massa a quem o acesso à música clássica era impossível. Nosso século XX teve a honra de parir Cartola, Irving Berlin, Adoniran Barbosa, Cole Porter, Vinícius, George Gerswhin, Catullo da Paixão, nossos Beethovens. 
O cinema acolheu de bom grado a popular canção, sua contemporânea. A Exposição apresenta algumas das primeiras tentativas de se sincronizar som e imagem: O "Chronomégaphone Gaumont", de 1906, apresentava números musicais curtos. São da época gravações de canções populares e de trechos de óperas, reduzidos às suas mais célebres árias. 
Enquanto que, ao longo dos anos 1895-1920, instrumentistas e orquestras maiores ou menores tocavam antes, durante e/ou depois das exibições cinematográficas, além de ritmarem, dos bastidores, os affairs imaginários das estrelas silenciosas das telas (observem o violinista e a pianista que tocam para criar o mood romântico em Garbo e Nagel, n’“A Dama Misteriosa”). 
Música e cinema: o casamento do século? Um dos mais auspiciosos, por certo. Se lágrimas nos subirem aos olhos aos primeiros compassos de “Moon river”, será possivelmente porque nos lembraremos de Audrey Hepburn flanando suave pelas ruas sonolentas de Nova York, ao despertar da cidade (e de “Bonequinha de Luxo”, 1961). 
Nunca o prelúdio de Tristão e Isolda me soou tão pungente quando no momento em que fui interpelada pelo desespero de Kirsten Dunst, em “Melancolia” (1961). A música nos toca a todos menos por seu propalado “sentido universal”, e mais porque ela ganha subitamente tradução num rosto, num gesto, num acontecimento – quer sejam naqueles criados pelo cinema, que nos são dados sem pejo fitar, quer seja naqueles construídos pelos nossos cinemas individuais, nas canções que embalam as pessoas e os momentos que nos são queridos.
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SESC Pinheiros: Música e Cinema: o casamento do século?
De 20 set. 2014 a 11 jan-2015
R. Paes Leme, 195. São Paulo (metrô Faria Lima)