terça-feira, 23 de fevereiro de 2010

Da celuloide para a televisão e as ondas do rádio: Hollywood estende os tentáculos



"— Sabe de uma coisa?
— O quê?
Eu te amo.
— Eu sei.
— Beije-me como só você sabe.
Danado."

Planejei um começo todo diferente para esse post, mas, depois de ter acabado de ver "Annie" (1982), uma das coisas mais cativantes e inspiradas que já vi, sinto-me obrigada a mudá-lo. Mas como isso aqui não é uma tese (ainda bem), então não preciso me desculpar e posso logo continuar, por meio dessas linhas, a divertir-me com a carente e exuberante Miss Hanningan enquanto ela abre seu coração desdenhado para o galã de uma rádio-novela, recebendo emocionada as palavras que ele dirige à heroína.
Na verdade, este desvio não me leva para muito longe da estrada principal. Mesmo assim, retomemos o nosso rumo anterior. Mais tarde Miss Hannigan retornará.
...

No feriado carnavalesco, enquanto dava boas risadas vendo o trio Julie Andrews/ Mary Poppins e Eliza Dollittle cantando em uníssono o Supercalifragilisticexpialidocious no "The Julie Andrews Hour" (programa televisivo produzido pela ATV e distribuído pela ITC Entertainment entre 1972 e 1973), dei-me conta de como os domínios de Hollywood iam muito além das salas de projeção de dentro e fora dos Estados Unidos.

The Julie Andrews Hour 1: Julie canta com as personagens que criou

Sabe-se que, a partir dos anos 50, com a rápida penetração do televisor nos lares dos norte-americanos, a indústria do cinema começou a perder terreno. Porém, ela acabou reconquistando o equilíbrio. Para isso, contribuíram os programas televisivas conduzidos por movie stars como a já mencionada Julie, Doris Day (The Doris Day Show, CBS, 1968-1973), Jack Benny (The Jack Benny Program, CBS, 1950-1964), Lucille Ball (I love Lucy, CBS, 1951-1957). Até mesmo o diretor Alfred Hitchcock foi o "anfitrião" dos norte-americanos no Alfred Hitchcock Presents - série de suspense que, a contar pelo episódio a que assisti alguns meses atrás (The Avalon Emeralds, 1959), parece ter sido fascinante. Esses artistas, consumidos com avidez pelo público desde que passaram a ser comercializados em revistas especializadas (o que ocorreu em 1911 com a Motion Picture Story Magazine), tinham suficiente credibilidade para conquistarem os olhares dos adeptos da nova mídia.

Essas pérolas começaram a ser redescobertas com o advento do Digital Video e do DVD - que são, junto com a internet, duas das grandes invenções do século XX. Sem esses aparatos seria praticamente impossível que o público comum tivesse acesso à Julie Andrews dizendo, numa cômica acidez, que Twiggy desempenhou no cinema o papel que ela - Julie - criara no teatro em "The Boy Friend": coisa com a qual "eu logicamente estou acostumada", diz Julie. É no mesmo tom que Julie Andrews "reclama" da bilheteria de "Star!" (1968), um fascinante e desdenhado filme seu: "Se alguns de vocês conhecem esse número de 'A Estrela' - e, a contar pelo retorno de bilheteria, suponho que poucos conheçam...", continua ela. Se as caixinhas desses shows não fossem lançadas às centenas nos Estados Unidos, eu não veria a Ginger Rogers dançando com Jack Benny um pot pourri dos números musicais que dividira com Fred Astaire ao longo de 10 filmes, tampouco teria podido imaginar uma relação entre tal número e o pot pourri das mesmas canções compartilhado por Massina e Mastroianni em "Ginger e Fred" (1986). Tampouco teria visto Gene Kelly e Fred Astaire cantando, num dueto, a história de suas vidas (cinematográficas) noutra relíquia que descobri por acaso numa loja da cidade, "Gene Kelly: an American in Passadena". Aliás, a intertextualidade com o cinema já começa no título do show, alusão a "An American in Paris" (1951) - "Sinfonia de Paris" no Brasil, filme que arrebanhou 6 estatuetas do Oscar em 1952.

Frank Sinatra foge de Betty Garret em "Um dia em Nova Iorque" ("On the town", 1950).

As séries televisivas comandadas por astros e estrelas de Hollywood bastante frequentemente (para não dizer sempre) estendiam às casas das pessoas a persona artística deles. Quase nunca havia questionamento e, se havia, isso invariavelmente era feito por meio de uma piscadela de olhos, à maneira das revistas cinematográficas que reproduziam as fofocas criadas pelos estúdios. Julie Andrews não pôde levar para a frente das câmeras as personagens que tornara célebres no cinema, diziam os estúdios. Então, lá está Miss Andrews dizendo isso para milhões de norte-americanos enquanto os faz conhecer sua versão de Eliza. Do mesmo modo, Frank Sinatra, o rapazote que temia as mocinhas em películas como "Marujos do Amor" ("Anchors Aweigh", 1945), "A Bela Ditadora" ("Take me out to the ball game", 1949) e "Um dia em Nova Iorque" ("On the town", 1949), conta a Gene Kelly (que, nesses filmes era o rapaz que atraía a mulherada) finalmente ter conseguido virar o jogo.

Gene Kelly e Frank Sinatra em Gene Kelly: An American in Passadena (1978),


show em que ambos revisitam musicalmente os musicais em que trabalharam juntos.

E como Frank virara o jogo, afinal, todos sabiam que ele se casara com a belíssima Ava Gardner, a mulher passional e intensa de "Show Boat" (1951) e de "A condessa descalça" ("The barefoot condessa", 1954).

Frank e Ava Gardner

Cinema e televisão, realidade e ficção, verdade e mentira intercambiavam-se facilmente na Hollywood clássica. Como não se podia precisar onde começava uma coisa e terminava a outra, o público tinha acesso a uma extensão do cinema onde quer que estivesse: no dentista, lendo uma revista cinematográfica; em casa, vendo um programa televisivo, ou até mesmo ouvindo um programa de rádio. E é aí que chamamos Miss Hanningan para ocupar novamente o primeiro plano.


Veio a calhar eu ter conhecido "Annie" ontem. O lindo musical dirigido por John Huston (diretor do Falção Maltês, creem?) jogou luzes sobre um assunto que eu não sabia muito bem por onde pegar.
Surpreendi-me ao descobri na internet as gravações de rádiofilmes radializados à população norte-americana dos anos 30 aos 50. No entanto, não tinha ideia do papel que eles desempenhavam na sociedade até que vi a senhora Hanningan de camisola, no conforto de seu quarto, abraçada ao rádio que transmitia um desses shows.


Embora as primeiras transmissões radiofônicas datem do ano de 1906 nos Estados Unidos e de 1922 no Brasil, o rádio verdadeiramente atingiu projeção comercial nos anos de 1930. No final desta década, duas séries faziam sucesso entre os norte-americanos, The Screen Guild Theater e Lux Radio Theater. Ambas apresentavam adaptações radiofônicas de filmes, as quais costumeiramente tinham como protagonistas os mesmos artistas que criaram os personagens nas telas (artistas que chegavam a ganhar $ 5.000 por aparição).
Lux Radio Theater deu início ao negócio em 1934, quando a empresa ainda estava localizada em Nova Iorque. O programa, transmitido até 35 pela NBC e até 54 pela CBS (a NBC reassumiu comando do mesmo de 54 a 55), era apresentado pelo diretor ficcional Douglass Garrick, personagem interpretado por John Anthony, e Peggy Winthrop, a garota Lux, interpretada por Doris Dagmar (descobri tudo isso na entrada da Wikipedia referente ao programa, entrada que me pareceu digna de credibilidade, já que me remeteu aos arquivos sonoros de dos programas da série de 1936 a 1955). O espetáculo era assistido por um público de estúdio. Além disso, havia uma sessão roteirizada em que Garrick conversava com os artistas principais - há uma fascinante charge disso em "Annie", quando Daddy Warbucks tenta desajeitadamente dar conta do script que lhe foi posto nas mãos e acaba, sem querer, endossando uma marca de pasta de dente... Cecil B. DeMille assumiu a apresentação do programa em 1936, pouco depois do show ter se movido para Hollywood, comandando-o até 1945. Nomes como Leslie Howard substituiram-no quando ele viajava.

Público em frente à "Hollywood's Lux Radio Playhouse", situada no n. 1615 da rua North Vine.
Fonte: http://otrarchive.blogspot.com/2009/07/lux-radio-theater.html

A certa altura o show passou a receber um público externo. Como mostra a fotografia, os lugares eram disputados...


The Screen Guild Theater foi ao ar de 1939 a 1952, inicialmente pela CBS, a partir de 1848 pela NBC e de 50 a 51 pela ABC. Na imagem abaixo, vemos Jack Benny, George Murphy, Joan Crawford e Reginald Gardiner apresentando o show de 8 de janeiro de 1939.

Fonte: http://www.joancrawfordbest.com/

Joan Crawford é figura carimbada nesses shows. Apenas para a Lux Radio ela apresentou, ao lado de Spencer Tracy, uma adaptação de "Anna Christie" (Greta Garbo, estrela do filme da MGM, nunca participou de nenhuma dessas adaptações), da "Casa de Boneca" e de "Mary of Scotland" (10/5/37) - apenas para citar algumas.
Cary Grant e Rosalind Russel repetiram sua parceria numa versão adaptada do impagável “His girl Friday” (em 30/9/1940, mesmo ano da película, aliás). Dividiram novamente o microfone em “Take a letter, darling”, adaptado do filme em que Rosalind dividiu a cena com Fred MacMurray (filme datado de 1942 e adaptação de 9/11/42). Também coube à atriz o papel da russa mais do que direta de "Ninotchka" (21/4/1940), eternizada na telona no desempenho magistral de Greta Garbo.
Lillian Gish encarou o microfone no suspense “Marry for Murder” (em 9/09/1943). Em 6/5/1946, Ginger Rogers foi nas rádios a “Bachelor Mother” que fizera nas telas (lindo filme, aliás). David Niven, seu galã no cinema, acompanhou-a na empreitada. Em 1 de outubro de 1939, a atriz juntou-se a Clark Gable em “Imperfect Lady”, além de ter sido protagonista numa história de suspense denominada "Vamp till dead" (11/1/1951), que estou morrendo de curiosidade de conhecer. Carole Lombard, a Miss Clark Gable, juntou-se a James Stewart naquele mesmo ano no romance “Tailored by Toni”, e se juntou a Fred MacMurray em 9/11/1942 para radializarem “True Confession” (14/4/41), adaptação da produção em que ambos dividiram a cena em 1937.

Carole Lombard chiquérrima nos estúdios da CBS. A atriz também tomou parte na radialização de "Mr. e Mrs. Smith", de Hitchcock (veiculado em 1941), "My Man Godfrey" (em 1938); "In name only" (em 1939) e "The moon is our home" (em 1941).
Fonte: http://carolelombard.org/november-contest-carole-lombard-old-time-radio-shows

Orson Wells - que, segundo consta, levou ao desespero os norte-americanos ao anunciar pelo rádio que os extraterrestres atacavam a Terra (na verdade, ele apenas radializava uma versão da “Guerra dos Mundos”) – divide com Lucille Ball e Hedda Hopper as honras da casa em 18/2/1940 quando apresenta “Dinner at eight”, versão do sucesso all star picture dirigido por George Cukor em 1933.

Orson Wells nos estúdios da CBS


James Stewart no estúdio da NBC em "The Six Shooter. The return of Stacy Gault" (1953)
Fonte: http://www.examiner.com/x-27356-OldTime-Radio-Examiner~y2009m11d8-Sometimes-blundering-sometimes-shooting-Oldtime-radio-listening-8-November

Até mesmo as produções eminentemente cinematográficas de Hitchcock foram disseminadas pelas ondas do rádio - foram adaptados “Spellbound” (8/3/1948) e “Notorious” (6/1/1949), por exemplo – neste último, Ingrid Bergman repete o papel que havia desempenhado na película de 1946. Aliás, foi por intermédio de Miss Bergman que descobri toda essa preciosidade na internet, por meio de um usuário do You Tube que anexou entre seus favoritos a versão radiofônica de "Anna Karenina" (4/10/1944), em que Bergman e Gregory Peck atuam em conjunto. Ingrid também levou ao rádio Paula Alquist e Ilsa Lund, em versões radiofônicas de "Gaslight" (1946) e "Casablanca" (26/4/1943). E agora interrompo a lista, que não tem nenhuma intenção de ser exaustiva, considerando-se que The Screen Guild Theater apresentou 527 episódios e o Lux Radio Theater, 926... (os links levarão os interessados para a parte deste material disponível na web).
Que incrível descoberta! Considerando meu entusiasmo ao pôr os ouvidos nesse material, imagino como não seria nos idos de 1930, 40 e 50, quando o público abria as portas de casa para receber seus ídolos da tela e podiam até levá-los para a cama, como fez Miss Hanningan. Se na sala escura do cinema os espectadores se dissolvem na tela de projeção, como não devia ser quando, no aconchego de seu lar, chegava-lhes aos ouvidos as vozes de seus artistas preferidos - vozes que lhes eram tão familiares. Que sensação de intimidade essas vozes não lhes transmitiam? As adaptações radiofônicas das produções cinematográficas eram mais breves que os originais - 10 minutos, 25 minutos, 1 hora. Mas, que efeito não deviam causar quando eram somadas à memória visual que o público tinha das películas! Que empolgante ter o apoio das vozes queridas dos artistas para trazer à tona as imagens dos filmes. E que divertido passatempo não devia ser comparar dois artistas no desempenho de um mesmo papel!

Lurene Tuttle e Rosalind Russell em "The Sisters", radializado noutro programa - Suspense (CBS, 1942-1962) em 1948.
Fonte: http://en.wikipedia.org/wiki/Suspense_%28radio_program%29

Em 1950, Gloria Swanson e Jose Ferrer radializaram noutro programa de rádio, The Big Show, um tratamento de 10 minutos de uma de minhas screwball comedies favoritas, "Twentieth Century" (1934), em que John Barrymore e Carole Lombard dividem brilhantemente a cena. Gloria está tão deliciosa quando Carole no seu desempenho da atriz teatral Lily Garland, outra pobre Galateia nas mãos de um cruel Pigmalião... A adaptação de "Anna Karenina" estrelada por Bergman e Peck tem pouco mais de 29 minutos. A trama gira em torno da leitura, ao filho de Anna, de uma carta que ela escrevera ao conde Vronsky depois de começar a ser desdenhada por ele. A estratégia é engenhosa, pois os flashbacks da vida amorosa de ambos aproveitam muitas das linhas do roteiro original. Aqui podemos ver as diferenças entre as performances de Ingrid e Greta Garbo, duas grandes atrizes que, apesar de conterrâneas, nunca se bicaram muito. Greta Garbo é eloquente, grave. Ingrid é extremamente simples. Impossível escolher qual a melhor. Logo mais, vou me deleitar com a leitura que Rosalind Russell - outra de minhas atrizes favoritas - faz de "Ninotchka".
Em "Tailored by Toni", James Stewart, com aquela sua delicadeza inigualável, diz palavras doces a Carole Lombard. Quantas mulheres, além de Miss. Hanningan, não abraçaram e beijaram seus aparelhos de rádio ouvindo declarações de amor semelhantes?... Haveria melhor convite para levá-las ao cinema para que continuassem a cena de amor no escurinho da sala de projeção - tendo pertindo de si, não só as vozes, mas também os rostos dos galãs? Para isso, ali estava o apresentador do programa, que, solícito, indicava aos ouvintes quais filmes dos ídolos estavam em cartaz. Impossível o espectador ser mais enredado. Eu que o diga...

segunda-feira, 15 de fevereiro de 2010

Pigmaliões e Galateias modernos: a lenda grega renascida na cultura de massas

Pygmalion and Galatea, de Jean-Léon Gérôme (cerca de 1890)

Há muito tempo atrás, quando homens e mulheres nem sonhavam em se sentar lado ao lado no teatro e muito menos supunham que, num futuro muitíssimo distante, poderiam se sentar numa sala escura e assistir ao desempenho de artistas que nem ao menos estavam lá, havia um rei muito rico e idealista, tão dedicado à sua arte que afastava de si qualquer mulher (nenhuma era tão bela quanto suas criaturas). Uma criatura em especial - a mais perfeita - cativara-o: Galateia. E tanto ele a desejou que conseguiu que a deusa Afrodite transformasse-a em mulher. Enfim, ambos puderam se casar e foram felizes para sempre.
O momento da metamorfose da estátua em fêmea capturou a atenção de inúmeros artistas ao longo dos tempos. Gérôme pinta um Pigmalião poeta (daí as máscaras do teatro antigo dispostas na parede de sua oficina) que quase queda de joelhos ao ver seu sonho tornando-se realidade. Hoje, um par de mil anos depois, o conto de fadas continua impregnado na memória coletiva, que lhe deu novos contornos com o passar dos tempos. O amor romântico foi inventado, pondo em segundo plano os sentimentos que motivavam a união homem/mulher, e então Galateia não precisa mais dizer ao seu criador: "tu és o meu senhor, devo-lhe a vida, por isso serei sua esposa...". O renascimento de Pigmalião e Galateia no século XX é digno de um registro muito mais detalhado que este que vou fazer agora, neste feriado de folia carnavalesca. Mas como estou ansiosa para prestar uma homenagem à Lorena, minha amiga blogueira manauara admiradora da Julie Andrews, vou fazê-lo agora com o material que tenho em mãos e na cabeça.

Julie Andrews na montagem teatral de My fair lady (1956-1962).

Quando Julie Andrews subiu no palco do nova-iorquino Mark Hellinger Theater em 15 de março de 1956 para encarnar a encardida - mas o mais limpa que podia -, ingênua e desbocada Eliza Doolittle, ela carregava o peso da tradição. Somava-se à tradição milenar uma muito mais recente, que remontava à escritura do "romance em 5 atos Pygmalion" (1912-1914), da autoria do dramaturgo irlandês George Bernard Shaw e à película hollywoodiana homônima roteirizada por Shaw, Lipscomb, Cecil Lewis, Ian Dalrymple e Anatole de Grunwald (1938) - ambos sucessos de público.

Primeira página de Pigmalion publicada na Everybody's Magazine (novembro/1914)

Detentor de um extenso conhecimento sobre o teatro e a vida teatral londrina, Shaw começou sua carreira de dramaturgo em 1893 com Mrs. Warrens Profession. Antes disso, fora romancista e crítico musical nas folhas de Londres. Dois anos depois, assumiu o cargo de crítico de teatro no The Saturday Review, deixando impressas páginas formidáveis - modernas - de crítica teatral, que muito clareiam a compreensão de Pygmalion se a peça for lida à luz delas. Há no Professor Higgins de Pygmalion muito da irônica acidez que verte da pena de Shaw quando ele fala sobre os melodramas sanguinolentos e grandiloquentes de Sardou - desempenhados por uma Sarah Bernhardt que ele já julgava decadente, impossibilitada de levar o drama moderno à cena - ou quando se vira contra os artistas cujos sotaques tornavam Shakespeare risível no palco.
Shaw é Higgins. O modo como ele se vira contra as produções em cartaz nos palcos londrinos é muito semelhante àquele que Higgins usa para se referir à inaptidão do povo no que toca ao "Inglês" - variedade culta da língua que ele acreditava ser a "língua" por excelência, sinônimo de distinção social e responsável pela divisão da sociedade em estamentos.
Com Pygmalion, Shaw explicita o tipo de peça teatral que defende. Sua crítica ao melodramaturgo Sardou repousa no fato de ele escrever trabalhos pouco teatrais, por exemplo, de optar por desenvolver ações importantes fora do palco e colocar em cena um personagem que as relata ao público. Isto poderia ser narração ou oratória, mas estava muito distante do que ele considerava teatro. E não há nada dessa sardiotice (como ele próprio diz) em Pygmalion. Há, sim, diálogos brilhantes, réplicas coloridas e um mise-en-scéne perfeito. O dramaturgo irlandês mostrava-se um analista atilado de seu tempo. Este seu "romance em 5 atos", como outras peças suas, busca instruir a sociedade por meio do riso. Para que algo seja aprendido com a obra teatral era preciso que, antes, o espectador fosse convidado ao riso - crença que talvez fosse resquício dos dramas burgueses que povoaram os palcos do século XIX e objetivavam educar através do humor. Porém, Shaw é original quando distribui as forças entre membros de classes sociais tão distintas - Higgins é um intelectual de classe média que adquiriu notoriedade pelo nascimento e pela carreira; Eliza é uma vendedora de flores cuja vida beira a mendicidade, uma zé-ninguém aprisionada à sarjeta devido ao seu nascimento pobre e à sua parca educação.

Mrs. Patrick Campbell desempenhou Eliza Doolitle na primeira encenação de Pygmalion em Londres. A premiére foi em 11/4/1914.

Não há na peça uma defesa estrita da moral burguesa - como observa-se nos dramas burgueses. Ela é, sim, questionada por boa parte dos personagens principais de Pygmalion. Não só o pai de Eliza fala em tom de mofa da "middle-class morality" da qual ele foge com a mesma pertinácia com que o diabo foge da cruz, como o próprio Higgins critica a rigidez da pirâmide social ao atestar que ela se sustinha unicamente devido ao preconceito: uma moça que vendia flores nas ruas de Covent Garden não era em nada inferior a uma florista estabelecida numa loja, a uma duquesa ou à rainha de Sabá. Para comprová-lo, propõe uma profilaxia que ainda hoje é revolucionária - a educação. O fato de Eliza ser aprovada no duro exame que realiza no chá da mãe de Mrs. Higgins (no baile da embaixada, no caso de My fair lady) comprovam que a apropriação do conhecimento abre as portas para o sucesso social.

Mrs. Patrick Campbell (a fotografia é de antes de 1897)

Eliza e Higgins são extremamente humanos. Com eles, Shaw sobreviveu à prova do tempo - não podemos dizer isso de muitos dramaturgos do período. Higgins é um intelectual de meia idade que daria algum trabalho a Freud. Ele visivelmente tem uma fixação pela mãe (Shaw atesta isso literalmente ao falar da peça). Daí, talvez, o fato de nunca ter se casado. É uma criança grande. Uma fase de seu desenvolvimento psíquico certamente não foi fechada... Assim ele é descrito: "Ele aparece na luz da manhã como um robusto, vital, apetitoso tipo de homem de mais ou menos 43 anos (...). Ele é do tipo enérgico, científico, voraz, até mesmo violentamente interessado em tudo o que pode ser estudado como um objeto científico, e despreocupado consigo e com os outros, incluindo seus sentimentos. Ele é, de fato, a não ser por sua idade e tamanho, como um bebê muito impetuoso "anotando" ansiosamente em voz alta e requerindo quase o mesmo tanto de atenção para que seja impedido de cometer travessuras." (começo do ato 2 - perdoem a tradução apressada).

Julie Andrews na montagem teatral de My fair lady

Eliza é uma jovenzinha pobre igual a tantas outras, e prova disso é a cena um tanto quanto cruel que se desenvolve no ato 1 logo após ela lançar seu cesto de flores aos pés de Higgins e coletar a esmola que ele deposita nela:
Ela toma o taxi que Freddy pegara para ele, a mãe e a irmã, pronuncia desajeitadamente ao motorista que quer ir ao "Bucknan Pellis" ("Buckingham Palace", Shaw coloca ironicamente entre parênteses). Chegando lá, revolta-se com o motorista devido ao valor da tarifa e ele, penalizado, nada cobra. Já em casa, encontra as poucas tralhas que possui: papel de parede velho e respingado, uma fotografia de um artista popular (o cinema era a maior diversão das camadas populares da época), fotos de mulheres bem vestidas grudadas pela parede, uma gaiola vazia. Aqui, a rubrica dá lugar à veia discursiva de Shaw - Pygmalion mistura romance e teatro, esferas pelas quais seu dramaturgo movia-se sem dificuldades: "Aqui Eliza, muito cansada, mas excitada demais para ir para a cama, senta-se, contando suas novas riquezas e sonhando e planejando o que fazer com elas, até que o gás se apaga, quando ela aproveita pela primeira vez a sensação de poder colocar outro penny [no contador do gás] sem se recentir disso. Esse humor pródigo não extingue sua preocupação com a necessidade de economizar o suficiente para impedi-la de calcular que ela pode sonhar e planejar na cama de forma mais barata e quente do que sentada sem uma lareira. Por isso ela remove seu xale e saia e os inclui na sua micelânea de roupas de cama. Então ela tira seus sapatos e entra na cama sem se trocar." (fim do ato 1)

Audrey Hepburn na versão cinematográfica de My fair lady (1964)

As duas forças se chocarão quando Eliza decide tomar Higgins como seu professor de fonética. Depois de quase a escorraçar de sua casa do modo mais egoisticamente infantil possível, ("Pickering, devemos convidar esse repolho para se sentar, ou devemos jogá-la pela janela?"), ele aceita o desafio imposto por seu amigo intelectual e resolve ensinar à moça o inglês que lhe tiraria da sarjeta. Transforma-a em sua bonequinha - não creio que o sobrenome "Doolittle" tenha sido escolhido ao acaso - e a manipula à exaustão almejando soprar para dentro do cérebro da garota a alma que pairava no dele. Porém, durante o percurso, o professor Higgins descobrirá que ele é menos parecido com "Pigmalião" do que supunha. Sua pupila não era a pedra disforme que ele pudesse esculpir até dar vida - era um ser humano que tinha um caráter próprio e, nesse sentido, era muito parecida com o mestre. Nenhum deles se dobra ao outro.
Shaw não bafeja nenhum romantismo em Pygmalion. O egocêntrico Higgins, ao contrário do rei Pigmalião do Chipre, não se apaixona por Eliza, a qual, por sua vez, mostra-se muito mais inclinada ao jovem Freddy - abraçar o mestre devia assemelhar-se, para a moça, a abraçar o dicionário universal de fonética que ele escrevera. A cena em que Eliza abandona o mestre e foge com Freddy (transformada em My fair lady na bem escolhida canção "Show me") é prova disso. A jovenzinha, movida um pouco por seus instintos e outro pouco pelo que aprendia nos filmes, retribui a atenção daquele que alimentava seu romantismo com cartas de amor - daí os beijos que ambos trocavam no taxi que os levava para bem longe do frio e "científico" Higgins (cena suprimida de My fair lady).

Leslie Howard e Wendy Hiller na versão cinematográfica de "Pygmalion" (1938), que teve Shaw como principal roteirista.

O desfecho da peça - Eliza despedindo-se orgulhosa de Higgins depois de anunciar que se casaria com Freddy - parece, portanto, cabível. Ela conclui sua formação parecendo-se bem pouco com a submissa Galateia.
Shaw levava muito a sério a sua revitalização da história clássica no panorama moderno. Para que não restasse dúvidas sobre suas decisões, escreveu um posfácio a Pygmalion em que explicava que o casamento dos jovens efetivamente ocorrera e que Higgins, a princípio reticente, depois acolhera o casal em casa e o sustentava - afinal de contas, a moça o divertia (argumento infantil que mostra a coerência do personagem). Tal nota, não sei por que motivo, foi suprimida da edição de Pygmalion e My fair lady que possuo (edição que comemora os 50 anos da estreia de My fair lady na Broadway). No entanto, li-a numa versão brasileira da peça, publicada juntamente com "Santa Joana" em 1964 (a Estante Virtual tem dezenas de cópias disponíveis de tal versão).

Pygmalion e My fair lady - edição de 50º aniversário (Signet Classics), publicada pela Penguin.

Pygmalion virou filme em 1938. A versão cinematográfica é interessante porque captura muito da peça. O Higgins de Leslie Howard tem toda a arrogância e frieza do personagem criado por Shaw, além de ter muito pouco charme. O final do filme, todavia, foi modificado. A jovem e o mestre acabam por se entender e se gostar. Porém, esse par romântico não é muito convincente. Ao ser questionado sobre a transposição da peça ao cinema, o escritor demonstra não ter se sentido muito a vontade com algumas cenas, mas usa de sua habitual ironia ao dizer que estava velho demais para se bater contra a maquinaria de Hollywood (ele tinha 83 anos na época). Além disso, mostra que sua leitura da relação travada entre Elisa e Higgins em nada mudara passados quase 30 anos da escrita do drama. Isso fica claro em sua resposta ao questionamento de Dennison Thornton, do Reynolds News londrino (de 1939).

"Numa nota à versão teatral de 'Pygmalion' você deplorava o que denominou 'finais felizes prontos que desajustam todas as histórias.' No entanto, você permitiu que fosse inserido um final feliz pronto na versão cinematográfica de 'Pygmalion'. Por quê?

Eu não permiti. Não posso conceber um final menos feliz à história de Pygmalion que um caso de amor entre um homem de classe média e meia idade, um confirmado solteirão com fixação pela mãe, e uma florista de 18. Nada do tipo foi enfatizado em meu roteiro, no qual enfatizei a fuga de Eliza da tirania de Higgins por meio de um natural relacionamento amoroso com Freddy.
Mas não posso, em minha idade, empreender trabalho de estúdio: e em torno de 20 diretores parecem ter aparecido por lá e passado seu tempo tentando pôr de lado a mim e ao Sr. Gabriel Pascal, que realmente sabe diferenciar giz de queijo. Eles planejaram uma cena para dar um aspecto de desilusão amorosa no final ao Sr. Leslie Howard: mas isso é muito inconclusivo para que valha a pena criar rebuliço a respeito."

Leslie Howard e Wendy Hiller, "Pygmalion" (1938)

My fair lady, versão musical de Pygmalion que tornaria Julie Andrews mundialmente conhecida, subiu no palco da Broadway poucos anos depois do falecimento de Shaw (que viveu 94 anos). Tenho minhas dúvidas se ele ficaria satisfeito com tal desdobramento de sua peça. Além de ser muito consciencioso sobre sua missão de teatrólogo que deveria educar a sociedade em detrimento de suprir seus anseios românticos, o escritor não parecia demonstrar grande admiração pelos espetáculos cômico-musicados. Porém, isso pouco importa. My fair lady é uma das maiores realizações do gênero. Sua coesão em muito supera "Pygmalion" de 1938.
Sim, seus personagens são muito mais leves que os criados por Shaw. Nele, Eliza encara a vida de modo muito mais otimista do que ocorre na peça que lhe deu origem. Em My fair lady não há espaço para um narrador que demonstre de forma incisiva a pobreza material e espiritual de Eliza. Há a música, que faz com que Eliza enfrente os percalços de sua miserável existência acreditando que quem canta, seus males espanta. Depois de receber a esmola de Higgins, a Eliza de Julie Andrews não vai para casa juntar-se aos molambos de sua cama para sonhar com as coisas que não pode ter. Ela parodia uma lady - serve-se de um jantar fino irreal e despede-se dos amigos em sua carruagem que é, na verdade, uma carroça que carrega a xepa para longe de Covent Garden. E canta abrindo bem as vogais à maneira como faria uma jovenzinha cockney: "All I wa[a]nt is a room somewhere/ Far awa[a]y from the cold night air...". A pronúncia culta do inglês seria [ã] e [e]. Desculpem, mas não consegui transcrever os fonemas aqui. A propósito, quem quiser se divertir com o alfabeto fonético internacional (ele não foi escrito pelo professor Higgins...) pode encontrá-lo aqui. A cena fica tão fascinante interpretada por Julie Andrews quanto por Audrey Hepburn, que deu vida nas telonas à Eliza de My fair lady. Graças ao youtube temos acesso a ambas:


Julie Andrews reproduz no Ed Sullivan Show a personagem a quem deu vida nos palcos.



Audrey Hepburn em "My fair lady" (1964). A atriz foi dublada por Marni Nixon. No entanto, seu audio original foi mais tarde recuperado e, depois, mixado à sequência. Podemos ouvi-lo aqui.


Lindas, cada uma do seu modo.
A qualidade de My fair lady deve-se à perspicácia com que Alan Jay Lerner e Frederick Loewe somaram suas habilidades como letrista e músico - respectivamente - aos argutos diálogos de Shaw, muitos usados literalmente na comédia musicada. Mas o mais evidente tour de force que a dupla enfrentou foi no momento de transformar as falas em canções. Penso que eles se desincumbiram da tarefa brilhantemente.

Cartaz de divulgação da versão teatral de My fair lady.

É claro que as danças e canções tiraram da peça algo de sua gravidade. Todavia, não vi filme musical que conseguiu capturar com mais brilhantismo a essência de seu original. Verdade que Rex Harrison tornou Higgins charmoso, acenando desde o início para a possibilidade de um relacionamento amoroso entre ele e Eliza - o qual é anunciado no final. No entanto, ele conseguiu manter a acidez do Higgins original mesmo em "I've grown accustomed to her face", canção em que declara o amor que nutre pela pupila. O modo como ele a interpreta é muito pertinente: assombrado, incrédulo. Basta ouvirmos a (bela) romântica interpretação que Nat King Cole faz da canção para percebemos como Harrison acertou em não injetar quantidade demasiada desse sentimento nela. Minha preferida de Harrison é "Why can't the English?", que tem uma importância simbólica em minha descoberta do cinema clássico: comprei o CD com a trilha original do filme nos idos de 1998, depois de tê-lo visto na TV, e cantei-a à exaustão, com a letra em punho, até memorizá-la por completo, para o desespero de minha mãe...

A letra afiada da canção sintetiza o posicionamento intelectual do professor apresentado nos primeiros atos da peça: "Olhem para ela, uma prisioneira da sarjeta/ Condenada por cada sílaba que profere/ (...)/ Ouçam-nos na rua Soho/ Derrubando os "hs" por todos os lados/ Falando Inglês do jeito que querem/(...)/ Por que os ingleses não ensinam suas crianças a falar/ Essa distinção verbal já deveria ser considerada antiquada/ (...)/ O modo como um Inglês fala classifica-o/ (...)/ Na França cada francês sabe sua língua de A a Z (na verdade, os franceses não ligam para o que fazem, contanto que o pronunciem corretamente)"... Fantástico! Aliás, essa formulação concernente aos franceses não está em Shaw, é obra de Lerner e Loewe. Como eles apreenderam bem o espírito do escritor irlandês!
Embarcando no sucesso teatral de My fair lady nos palcos norte-americanos, Paulo Autran e Bibi Ferreira viveram Higgins e Eliza nos palcos brasileiros. "Why can't the English?" ou "Por que não os ingleses?" é uma das versões brasileiras mais bem sucedidas das canções de Lerner e Loewe:


Paulo Autran canta "Por que não os ingleses" em Minha querida lady, versão brasileira de My fair lady (1962)


O sucesso de My fair lady na Broadway manteve a peça em cartaz por seis anos. Tão logo saiu, seus direitos foram comprados pela Warner e ela tornou-se veículo para Audrey Hepburn, atriz sólida e adorada pelo público, que dera até então vida às suas mais importantes personagens: a princesa Anna de "A princesa e o plebeu", Sabrina do filme homônimo e Holly Golightly de "Bonequinha de luxo".

Pôster da versão cinematográfica de "My fair lady" (1964). Audrey Hepburn e Rex Harrison interpretam Eliza e Higgins.

Miss Hepburn conheceu o céu e o inferno com esse papel. Interpretou-o com brilhantismo, protagonizando algumas das melhores sequências cômicas e dramáticas que desempenhou durante sua carreira: a reação entusiasmada de Eliza nas corridas da Ascot Gavotte e sua revolta contra o mestre - que culmina com sua partida da casa - são exemplos cabais disso. Não obstante, viu funcionar contra si o star system: foi denunciada por não ter sido a cantora das canções de Eliza (fato corriqueiro na Hollywood da época - Debora Kerr, por exemplo, foi dublada em O rei e eu) e condenada ao ostracismo (pelo menos no que toca à premiação no Oscar). A graciosidade com que a atriz se deixa fotografar com Julie Andrews - ganhadora do prêmio da Academia naquele ano pelo seu desempenho em "Mary Poppins" - demonstra que, se ela a princípio se importou com o modo como foi tratada, isso não durou muito tempo...

Audrey Hepburn e Julie Andrews na cerimônia do Oscar (1965)

Não era incomum, na época, que um artista fosse impedido de desempenhar no cinema um papel que tornara notório nos palcos (também hoje isso não é incomum): Audrey, que dera vida à Gigi na Broadway, viu Leslie Caron interpretá-la (brilhantemente, diga-se de passagem) nas telas. Todavia, a escolha da protagonista da versão cinematográfica de "My fair lady" deu ensejo a uma polêmica que, curiosamente, perdura até os dias de hoje. Lembram-se das brigas entre os admiradores das cantoras de rádio dos anos 40 e 50 - briga fomentada pelas próprias gravadoras? No caso de "My fair lady" não me parece diferente e parece servir a um mesmo objetivo: vender o objeto artístico em detrimento do objeto humano a ele relacionado.
Minha postura a esse respeito é menos incisiva. Eu não me canso de ver a Audrey vestida de Eliza - adoro-a. Emocionei-me ao ouvir a sua voz pouco potente cantando algumas canções do filme e não creio que tenha sido uma má escolha colocarem Marni Nixon para dublá-la - a trilha do filme é uma delícia de se ouvir. E fiquei fascinada - e ainda fico - quando ouço o vozerão de Julie Andrews cantando "Wouldn't it be lovely?", "I could have danced all night" e vejo-a no Ed Sullivan ou numas gravações promocionais do making off de My fair lady (outra pérola que encontrei a pouco no youtube) - é positivamente extraordinário como umas aulas de fonética fizeram com que a atriz classuda, numa "educação às avessas", se assemelhasse à garota cockney.




Making off da versão teatral de My fair lady (1956).

Todas essas histórias que ajudam a construir a História são fascinantes demais para serem resumidas a uma briga para que seja eleita a melhor. A propósito, a gravação brasileira, nos seus erros e acertos, não é menos interessante. Que presente tiveram aqueles que viram e ouviram Bibi Ferreira e Paulo Autran darem vida às versões nacionais de Eliza e Higgins - versões um pouco mais "eloquentes", mas nem por isso menos belas (aqueles que tiverem curiosidade podem encontrar as gravações aqui). Este post é, portanto, um brinde àqueles que, como o professor Higgins e eu, Cresceram acostumados com o rosto de Eliza: que seja por a terem visto encarnada em Julie Andrews, em Audrey Hepburn ou em Bibi Ferreira. E, por fim, um brinde a Shaw, que a tornou possível.

George Bernard Shaw aos 78 anos (1934)

terça-feira, 9 de fevereiro de 2010

Ginger Rogers & Fred Astaire (e eu): "Heaven, I'm in heaven"

"Heaven, I'm in heaven. And my heart beats so that I can't hardly speak. And I seem to find the happiness I seek. When we're out together dancing cheek to cheek...". Foi ao som desta canção que fui apresentada a Fred Astaire e Ginger Rogers, enquanto deslizavam os créditos iniciais da "Rosa Púrpura do Cairo" e a mocinha ingênua suspirava defronte ao cinema no qual costumava passar suas noites românticas com seus ídolos. Creio que o belo "The purple rose of Cairo" (1985) seja o veículo ideal para que eu os conduza a um passeio pelo cinema dos tempos da grande Depressão norte-americana e lhes apresente duas de minhas paixões, Ginger Rogers e Fred Astaire - ou uma, já que eles não teriam deixado recordação tão indelével em tantos se não tivessem se transformado em um enquanto dançavam. Esta será, portanto, uma postagem não muito sóbria, o que, aliás, é a atitude costumeira daqueles que gostam tanto de uma coisa que supõem-na sem defeitos. Perdoem.

O filme de Woody Allen fecha brilhantemente um conjunto de homenagens - talvez eu devesse dizer rememorações - a esse que se tornou o primeiro casal de dançarinos das telas. A homenagem de Allen tem uma dose de crítica e outra de paixão. Sua paixão exacerbada pelo cinema levou-o a tornar literal a metáfora da identificação do espectador com o artista de cinema. Cecília, a mulher simples de uma cidadezinha do interior dos Estados Unidos, realiza o sonho de outras tantas jovens daquele tempo (e, porque não dizer, deste tempo): é cortejada pelo aventureiro personagem de uma de suas películas preferidas. Porém, cedo a moça perceberá que vive uma aventura impossível.
Neste sentido, a sequência inicial do filme é simbólica: a jovem que observa encantada o pôster do filme enquanto soa a "Cheek to cheek" por pouco não é atingida por um pedaço de seu letreiro quando ele despenca. Cecília, a mocinha sonhadora, perigosamente caminha na linha tênue que divide ilusão e realidade. A bela ilusão, que lhe permite conviver por alguns momentos com destemidos aventureiros e belas damas da alta-sociedade - representados pelos galãs e divas com os quais ela convive em suas noites no cinema - e a sombria realidade, composta pelo marido desempregado, violento e bêbado, pelo emprego de garçonete que ela desgosta e pela Grande Depressão dos anos 30. Woody Allen retrata no filme uma época da história em que o cinema teria sido fundamental para garantir a sanidade de tantos norte-americanos que, sem dinheiro nem perspectivas, encontravam na ilusão nas telas a fuga de suas desilusões. É claro que Allen não deixa de lado o que há de alienante nessa oferta de alento para as massas desesperadas. Tanto que Cecília acaba abandonada pelo galã por cujo personagem ela se apaixona. Todavia, o desfecho da fita explicita o quanto a ficção - e todas as ilusões que ela pode gerar - é fundamental em nossas vidas. Cecília adentra o cinema ainda carregando consigo as malas que levaria da cidadezinha e embarca no filme - no "Picolino" - e, ao ver o casal Rogers & Astaire dançando "Cheek to cheek", seu rosto já traz novamente aquela expressão de felicidade sonhadora que conhecemos no início da película.

Quando vi a Ginger e o Fred dançarem "Cheek to cheek", senti-me como Cecília - fascinada, atraída pela tela, esperando que o sr. Astaire abrisse seus braços e me convidasse para dançar. Isso foi muito antes de tomar algum contato com teorizações sobre o appeal calculado dos astros ou de ler a formulação de Katharine Hepburn segundo a qual "Ginger torna Fred sexy e ele lhe dá classe". De fato, a química desses astros é tão perfeita que Fred (a beleza certamente não está entre seus atributos) torna-se belo devido à paixão com que Ginger o olha. É ela a culpada por querermos estar no seu lugar. Depois que fiquei um pouco mais escolada a respeito disso, devo dizer que meu fascínio diminuiu pouco - ou, porque não dizer, aumentou bastante... "O Picolino" ("Top hat", 1935) foi, por motivos claros, o primeiro filme que vi da dupla.

Sequência musical Cheek to cheek (Top hat, 1935)

E graças à bem cuidada edição do filme distribuída pela Warner, conheci detalhes curiosos da produção. Por exemplo: o vestido de penas desenhado pela Ginger que parecia branco era, na verdade, azul, e levou Fred a uma crise de espirros que culminou num sururu do qual até a mãe da Ginger tomou parte. Mais uma dentre tantas outras fascinantes histórias de bastidores que apresentam os percalços pelos quais a ficção passa até ela parecer realidade... Aliás, o casal perdido entre a montanha de técnicos demonstra como os bastidores de uma filmagem daria um filme fascinante...

Bastidores de Cheek to cheek (Top hat, 1935)

Entre 1933 e 1949, Fred e Ginger fizeram juntos 10 filmes. "O Picolino" é o Astaire & Rogers quintessencial. As canções compostas por Irving Berlin pertencem hoje ao "American songbook". Cheek to cheek ganhou o prêmio da Academia de melhor canção original e iniciou uma parceria que se tornaria recorrente: é Berlin que assina a trilha sonora de "As águas da esquadra" (1936) e "Carefree" (1938). Esta colaboração flagra o que se tornou marca registrada nos filmes da dupla: a contratação de compositores de talento e de sucesso, cujos nomes ajudavam na publicidade das películas. Aqui, os três se deixam fotografar lado a lado durante a rodagem de "Carefree".


Lembro-me de Stanley Donen dançando "Cheek to cheek" com o Oscar honorário que recebeu em 1997 (que alegria encontrar registro disso no Youtube!), e Martin Scorsese contando como o então menininho de 9 anos apaixonado por musicais foi convencido por Ginger e Fred a fazer aulas de dança e depois tornou-se um dos diretores do maravilhoso "Cantando na chuva". Ou como a canção acompanhou minha infância nas vozes de Frank Sinatra e Nat King Cole. O "Picolino" foi um reencontro com a canção e com minha infância, daí a sua relevância em minha vida.
O valor deste filme não repousa apenas em sua importância histórica. Ele perdura nos dias de hoje. Seus ditos espirituosos permanecem tão vivos quanto as belas sequências musicais. Aliás, esses dois aspectos foram fundamentais para manter o público atraído durante a primeira leva de 9 filmes rodados pela dupla entre 1933 e 1939. Eric Rhodes, o costureiro italiano Alberto Beddini que no "Picolino" tem como lema "Às mulheres, um beijo. Aos homens, a espada!", na "Alegre Divorciada" ("The Gay divorcée", 1934) desempenha o papel do tenor desafinado Tonetti, que diz "As mulheres estão a salvo com Tonetti. Ele prefere espaguetti."
Personagens tipos povoam grande parte da série de filmes, o que é característico das comédias musicadas teatrais: Helen Broderick é a matrona que tem sempre um dito ácido (muitas vezes concernentes ao sexo oposto); Eric Blore é o serviçal voluntarioso que invariavelmente desconcerta os patrões; Edward Everett Horton é o marido (ou pretendente) abobalhado que é dominado por uma mulher; Fred é o dançarino idealista salvo pela mocinha linda e séria, conquistada num número de dança.
Porém, antes de "A alegre divorciada" inaugurar o modelo, os dois astros tomaram parte no delicioso "Flying down to Rio" ("Voando para o Rio", 1933), onde Ginger encarna uma daquelas criaturas espevitadas que a tornaram célebre em "Footlight parade" e "Rua 42", no mesmo ano, nos quais ela desempenhou papéis de pouco destaque. Em "Voando...", percebeu-se o potencial da dupla tão logo Ginger aceita o convite de Fred para que se aventurem pela "Carioca" e ensinem aos brasileiros "One thing or three".

Sequência musical The Carioca (Flying down to Rio, 1933)

Não por acaso, são ambos - até então, coadjuvantes - que fecham o filme, enquanto dão adeus a uma Dolores Del Rio e a um Gene Raymond que partem para nunca mais se juntarem a eles. Ginger e Fred voltam para "A alegre divorciada", um dos grandes sucessos da dupla, onde a personagem de Fred encontra a mocinha pela qual se apaixonara enquanto canta "A needle in a haystack" ("Uma agulha num palheiro"), e conquista-a na legendária "Night and day", de Cole Porter, a qual termina com aquele acender simbólico do cigarro sobre o qual já conversamos no post passado. Aliás, esta canção é a única que migrou do musical "The gay divorcée" - estrelado por Astaire na Broadway entre 1932 e 1933 - para a telona. Adoro-a na voz de Frank Sinatra e Doris Day, mas nada como ver a personagem de Fred Astaire dizendo à de Ginger que uma voz dentro dele repete "you, you, you" assim como o incessante tique-taque do relógio de parede ou o pingar das gotas de chuva. A pieguice decididamente não está no que se diz, mas no modo como se diz...

Sequência musical Night and day (The gay divorcée, 1934)

Outra deliciosa canção, "The Continental" - esta também premiada com o Oscar - pinta outra característica da série: os números musicais grandiosos, do qual tomam parte centenas de extras e culminam com Ginger e Fred juntos, em nossa frente, convidando-nos a participar da extravaganza.

The Continental (The gay divorcée, 1934)

Depois da "Alegre Divorciada", a dupla dividiu as telas com Irene Dunne e Randoph Scott em "Roberta" (1935), no qual Ginger faz uma divertida norte-americana interiorana que se finge de russa para conquistar a noite parisiense (!), e Fred, um regente de orquestra que acaba obrigado a conduzir um atelier de costura (!!) que é objeto de um litígio às avessas por Irene e Randolph. É delicioso o modo como Miss Rogers canta "I'll be hard to handle" debaixo do olhar divertido daquele que fora seu namorado de infância (e que, pelo desdobrar da canção, parecia julgar a moça efetivamente muito difícil de se lidar) e como ela o convida para dançar e ele recusa-se através da deliciosa canção "I won't dance", de Jerome Kern e Otto A. Harbach, outra canção obrigatória. Algo que me fascinou a respeito de "Roberta" foi a campanha promovida pelo estúdio para a divulgação do filme, com direito a flashs das gravações dos números musicais, curiosidades acerca deles, biografias dos artistas e entrevistas com eles. O "Campaign book" da película fala por si só:

Edição facsimilar do "Campaign book" de "Roberta" (1935)

Depois de "O Picolino" e de "Roberta" seguiu-se "Nas águas da esquadra" ("Follow the fleet", 1937), em que ambos deixam de lado o glamour anterior para encarnarem, ela, uma dançarina de 10 centavos, e ele, um marinheiro. Ironicamente, a sequência mais lembrada é aquela em que ambos encarnam membros da high society e Fred salva uma Ginger deprimida ao som de "Let's face the music and dance", - sequência que motiva a paródia agridoce de Giulietta Massina e Marcello Mastroianni dirigida por Fellini em "Ginger e Fred" (1986).

Sequência musical Let's face the music and dance (Follow the fleet, 1936)

A próxima película, "Ritmo louco" ("Swing time", 1936), é, se não a mais significativa, talvez a mais bela de ambos. A começar pelas canções, umas tão lindas, como "The way you look tonight" (outra oscarizada), outras tão divertidas, como "Pick yourself up". Ginger é, aqui, mais graciosa do que em qualquer outro filme da série. Os ensaios incessantes com Hermes Pan se fazem notar cabalmente pela perfeição com que ela dança em sequências como "Waltz in swing time" (uma mélange de compassos de valsa e swing) e "Never gonna dance", cuja continua execução para as filmagens, diz-se a trivia hollywoodiana, fez com que os pés da atriz sangrassem.

Sequência musical Never gonna dance (Swing time, 1936)

Abaixo, um registro fotográfico de Ginger e Hermes ensaiando. Essas imagens com copywright da RKO fazem parte da "Complete Film Collection" da dupla.

Dali em diante, o interesse do público pelo casal começou a esmaecer. Mesmo assim, outros 3 filmes foram rodados. O primeiro deles, "Vamos dançar" ("Shaw we dance", 1937), trás uma canção deveras influenciada pela Depressão: "Shall we dance/ Or keep on moping?/ Shall we dance/ or walk on air?/ Shall we give in/ to despair/ Or shall we dance with never a care". Parecia, no entanto, que o público havia se cansado de bailar em companhia de Ginger e Fred, tanto que demorou um ano e meio para os dançarinos rodarem outra fita. "Carefree", um dos filmes mais desdenhados da série, é curiosamente um dos meus preferidos: um tanto pela pseudo-psicanálise que gera alguns quiprocós hilários (Ginger hipnotizada maltratando os patrocinadores de seu programa de rádio ou quebrando um vidro com o cassetete de um guarda, por exemplo), outro pouco por sequências musicais como "The Yam", em que ela está radiante nos braços de Fred e, por isso, ele parece lindo como nunca.

Sequência musical The Yam (Carefree, 1938)

Mas especialmente na engenhosa sequência musical do sonho, em que Fred Astaire, o diretor Mark Sandrich e Hermes Pan combinam um cenário surreal e a ação em câmera lenta para apreenderem a paixão da jovem Amanda Cooper por seu psiquiatra. A beleza da sequência merece um registro especial. Sou muito grata a quem colocou-a no youtube:

A cena é também digna de nota por um outro motivo: Ginger e Fred trocam seu primeiro beijo romântico em frente às câmeras. Até então, o ator dizia que ele não precisava dos lábios para fazer amor com sua protagonista, já que tinha os pés. A trivia hollywoodiana encontra um motivo mais picante: sua esposa morria de ciúmes de Ginger Rogers.
O fracasso de bilheteria de "Carefree" faz com que ambos abandonem a fórmula e voltem em "The story of Vernon and Irene Castle", biografia de um casal de dançarinos querido do público dos anos 10 que encontra um fim trágico com a morte de Vernon na guerra. O público não gostou e tampouco a verdadeira Irene, descontente com o fato de ser desempenhada por uma atriz que, para a sociedade machista da época, não gozava da melhor das reputações.

Com a película, o casal de dançarinos despede-se soturnamente das telas. As lágrimas que Irene derrama ao dizer adeus àquele que fora seu par nos palcos e na vida, e o modo como o espectro de ambos dançam pela estrada florida até darem lugar ao "The End", anunciavam que Ginger Rogers e Fred Astaire deixariam as telas para alimentarem, a partir de então, a memória daqueles que os amavam. Na década que se seguiu à "História de Irene Castle e Vernon", Fred aposentou-se das telas e Ginger recebeu da Academia o prêmio de melhor atriz por "Kitty Foyle" (1940), saciando o desejo comum das estrelas do teatro/cinema alegre de brilhar no gênero dramático.
O acaso - ou, porque não, o destino - juntou-os novamente no delicioso musical "Ciúme, sinal de amor" ("The Berkleys of Broadway", 1949), que, aliás, jocosamente arremeda suas vidas. Nele, Ginger é uma atriz do teatro musicado que deseja ser reconhecida por seus dotes dramáticos. Conflitos com o esposo (Fred) - que se julga seu Svengali - levam-na ao divórcio e ao sucesso no papel de Sarah Bernhardt. No entanto, ela realmente nos conquista quando dança com Fred um novo arranjo de "They can't take that away from me", canção de George e Ira Gerswhin que compartilharam em "Vamos dançar" ("Shall we dance", 1937) - ah, como eu gostaria de estar no lugar de um daqueles figurantes que se sentaram no teatro onde aquela cena foi gravada e os viram! No desfecho, a mulher descobre que seu lugar é dançando junto ao esposo numa peça saltitante, com figurinos estravagantes e sem enredo, à moda dos musicais teatrais que faziam sucesso nessa mesma época.

They can't take that away from me (Berkleys of Broadway, 1949)

A dupla recebeu outra homenagem - esta menos conhecida - no "The Jack Benny Program" de 1957 que, ironicamente, glosa o modo como ela seria vista nos anos seguintes. No show, a atriz é abandonada por Fred no palco do programa porque este perdera o avião. A gag resolve-se numa hilária sequência em que Jack toma o lugar do dançarino e conduz Miss Rogers nuns passos estravagantes filmados em alternados close-ups e long shots (claramente os long shots registram a performance de um dublê de Benny). No entanto, o abandono que era mote do programa tornou-se aparentemente uma situação costumeira para Ginger que, já no final da vida, diz com amargura numa entrevista que Fred não a fez e tampouco ele estava sozinho nos filmes da dupla. "I'm my own master", diz ela, desejosa de receber um pouco das alvíssaras que couberam ao seu companheiro das telas. Infelizmente ela não está mais aqui para recebê-las das novas gerações que cativou.

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As homenagens à Ginger e Fred:


Ginger Rogers e Jack Benny, "The Jack Benny Program", 1957.

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Julie Andrews e Ken Berry, "Julie Andrews Hour", 1973. (clique sobre a imagem para vê-lo no youtube)

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Bernadette Peters e Steve Martin, "Pennies from heaven", 1981.

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Giulietta Massina e Marcello Mastroianni, "Ginger & Fred", 1986.