domingo, 31 de outubro de 2010

A Suprema Felicidade (2010)


Não posso deixar "A Suprema Felicidade", o mais recente filme de Arnaldo Jabor, passar batido pelo blog. Antes de tudo porque Marco Nanini recebeu daqui, meses atrás, uma crítica (infelizmente) justa pelo seu desempenho em "O Bem Amado". Não que Nanini precise provar alguma coisa a quem quer que seja - sua participação na capenga adaptação cinematográfica da bem sucedida telenovela revela-se um acidente de percurso dentro de sua irrepreensível carreira. Mas sim porque sua performance neste filme de Jabor merece ser conferida. Aliás, este filme precisa ser conferido por todos os que tem alguma afeição genuína pela Sétima Arte.
Vi o filme extasiada ontem. Hoje, continuo achando que não é um exagero considerá-lo um filme perfeito. Muito, muito melhor do que a notícia que darei dele nessas linhas, notícia que, embora seja mais superficial do que ele merece, infelizmente é a melhor que poderei fazer nessa correria de final de semestre.

Aplausos para Jabor, que conseguiu imprimir a seu trabalho uma dinâmica própria, mesmo se utilizando de artistas com idades e formações muito diferentes.
O elenco "global" impera na película, marcadamente nas pessoas de Nanini, Dan Stulbach e Ary Fontoura, mas o jeito Globo de ser passa longe dela. Divide espaço com tais artistas dois comediantes sensacionais que, até onde sei, ainda estão alocados no SBT, Zé Bonitinho - meu ídolo - e Elke Maravilha. Em torno deles circula uma moçada que dá conta do recado bastante bem: Maria Flor (Deise), Caio Manhente, Michel Joelsas e Jayme Matarazzo (Paulinho), Tammy di Calafiori (Marilyn). Gente muito dessemelhante que consegue, no filme, deixar sua marca individual sem que, com isso, quebre o ritmo harmônico da história. Zé Bonitinho de batina é impagável e, nos gestos passionais que ele executa ao reger o coro de meninos da igreja, entrevemos os trejeitos do personagem que ele tornou célebre.
A performer Elke Maravilha dá um show como a esposa do saxofonista Noel (Nanini), o avô de Paulinho, figura responsável por iniciá-lo nos mistérios da vida. É uma delícia vê-la sem os acessórios de sua conhecidíssima personagem - vê-la vestida de vovó, mas uma vovó cujos trajes mal escondem a polaca notívaga que ela um dia foi. O casamento entre as sensibilidades artísticas dela e de Nanini funciona tão bem quanto o casamento que eles encenam na película. Aliás, minha impressão ao ver pela primeira vez o filme - certamente eu o verei mais vezes - é que Jabor dá um ritmo boêmio à narrativa que busca mimetizar essa união bem sucedida do casal.
Durante o tempo do filme, somos levados, junto com Paulinho, a beber a gota de felicidade que escorre até dos momentos mais dolorosos da vida. Quem nos convida é Noel, cuja existência plena de experiências nunca lhe satisfaz: "É praticamente impossível se experimentar a felicidade. No máximo conseguimos ser alegres.". Enquanto ele educa o neto e imagens de uma beleza não raras vezes comovente sucedem-se, acabamos compartilhando com Noel dessa sede de felicidade e sofrendo com ele na medida em que o fio de sua vida se torna mais e mais tênue.
Para que nos impregnasse dessa fascinante boemia visual, Jabor escolheu tematizar a época certa. A infância e juventude de Paulo coincidem com o fim da 2ª Guerra, com o apogeu e derrocada das big bands e reinado do rock'n roll sobre o jazz, com o estabelecimento de Marilyn Monroe como símbolo sexual. Um período repleto de referências tão caras para tantos... muito caras para mim, que cada vez estou mais imersa nelas...
O filme nos proporciona o prazer do reconhecimento dessas referências sem que, no entanto, restrinja-se a um passeio nostálgico nos belos anos de um tempo que passou. A nostalgia está, sim, presente: nos românticos salões de baile em que o jovem casal discute apaixonadamente o filme "O Morro dos Ventos Uivantes" enquanto ouve "I only have eyes for you"; na tradução in South American Way da antológica cena de Marilyn em "Quanto mais quente melhor", na qual ela chora a perda de seu amor; nas imagens de arquivo dos carnavais antigos.
Porém, a lembrança nostálgica não deixa de dar as mãos às sofridas, afinal, como sabiamente nota Noel: "Nada é completamente bom nem completamente ruim". O prazer vem acompanhado de uma evidente visada irônica que nem por isso deixa de nos convidar a aproveitá-lo. Exemplo é o relacionamento torturado entre os pais do menino por cujos olhos conhecemos a história - não pude deixar de pensar no paralelo entre a relação deles e aquela dos protagonistas do filme sobre o qual eles tão empolgadamente discutem no baile em que se conhecem. E a Marilyn brasileira, que enlouquece os homens nos palcos do Eldorado, não passa de uma frágil jovenzinha virgem abusada pela mãe e padrasto.
Tudo isso se desenrola em frente aos nossos olhos sem as detestáveis lições de moral que povoam o grosso da produção cinematográfica contemporânea.
Arnaldo Jabor precisa ser parabenizado por ter conseguido livrar-se das amarras da Rede Globo - mesmo recebendo financiamento dela - e feito um filme de poesia, coisa rara no cinema de hoje. As coisas não ditas soam por meio das imagens com uma contundência que as palavras jamais terão. Quer coisa mais lindamente bem contada do que o sentimento amoroso que o amigo de Paulinho nutre por ele? Ou os flashes dos mortos da gripe espanhola, que assombram continuamente a mente já abalada de Noel?
A falta de um claro nexo entre a realidade e a lembrança, que se observa nesse último caso, marca outro movimento narrativo comum ao filme. Nele, as experiências da infância e juventude de Paulinho desfilam alinearmente, movimento semelhante ao do subconsciente, no qual imagens e sensações misturam-se de modo anárquico.
"A Suprema Felicidade" é uma obra de poesia e enquanto tal deve ser analisada. Bobagem analisá-la aplicando as categorias da prosa - daí a pobreza de algumas resenhas do filme que circulam pela web. Aliás, a percepção estreita de alguns críticos lembra o susto que "Memórias Sentimentais de João Miramar", do modernista Oswald de Andrade, deu na crítica dos anos de 1920. Defendendo-o, o jovem Sérgio Buarque de Hollanda lembrou aos leitores que o que faltava de continuidade narrativa nas "Memórias..." como um todo, sobrava na intensidade que tinha cada um de seus episódios isolados. Acho que isso se aplica bem à "Suprema Felicidade", que deve ser conferida pela beleza das imagens que, em sua bem vinda descontinuidade, plasmam de modo tocante os meandros da memória de uma época que, embora já tenha passado, ainda vive dentro de nós de modo mais ou menos intenso.

segunda-feira, 18 de outubro de 2010

"The Nun's Story" (1959) e outros tesouros de Audrey Hepburn

Um achado desta semana me fez retornar ao extraordinário The Audrey Hepburn tresures: pictures and mementos from a life of style and purposes, uma das maiores preciosidades de minha biblioteca. Trata-se de "The Nun's Story" ("Uma cruz à beira do abismo"), filme que eu considerava esgotado desde muito tempo, até encontrá-lo por acaso, por um preço ridículo, na prateleira das biografias cinematográficas de santos das Lojas Americanas. Um verdadeiro milagre...
O filme é tão impressionante quanto o livro que me deu uma primeira notícia dele. Para os fãs da atriz ele é obra fundamental, pois além de oferecer o melhor da atriz enquanto profissional, define sua persona pública mais cabalmente do que "Breakfast at Tiffany's" (1961), película que a tornou mundialmente conhecida como o epítome da beleza e da elegância. Aqueles que conhecem o papel relevante que Miss Hepburn exerceu como embaixadora da UNICEF certamente a reconhecerão na determinada Gabrielle Van der Mal, jovem que decide alistar-se nas hostes da igreja para que possa realizar-se como enfermeira no Congo.
Essa minha leitura biográfica pode parecer forçada - e talvez seja um pouco, mesmo - mas não pude deixá-la de lado depois de ler a correspondência de seis páginas que Audrey envia a Mel Ferrer enquanto estava na Europa, na qual detalha ao esposo a gênese de sua personagem. É, The Audrey Hepburn Treasures traz tesouros como esse em meio a páginas de uma leveza que, numa primeira olhada, nos faz imaginá-las superficiais.

Fac-símile da primeira página da correspondência enviada por Audrey a Mel Ferrer em 20 jan. 1958. The audrey Hepburn treasures.

Essa densa correspondência, na qual Audrey descreve cuidadosamente os conventos pelos quais passou enquanto compunha a personagem, mostra-nos quão profundamente ela sentiu o choque entre seu modo de vida e aquele que ela passava a vivenciar - choque muito semelhante ao enfrentado pela jovem Gabriele durante o período em que abraçou a vida religiosa.

I was interested to find that this Order allows the nuns to retain an individuality of their own, even after they have managed to efface their personality.

constata Audrey a respeito do convento que a hospedou por um dia, visivelmente comparando-o com a restritivista ordem religiosa à qual pertencia a freira que ela levaria para diante das câmeras - freira que precisava se soltar de todos os laços que a atavam à vida secular e obedecer única e exclusivamente aqueles que lhe eram superiores na vida religiosa.
A crítica ao cerceamento da individualidade, característica determinante no desligamento de irmã Luke do convento, soma-se à consideração que Audrey tece sobre a madre assistente do convento que a recebeu:

Mother Marie-Elise, [...] was [to me] on one hand the personification of a true nun; on the other hand I couldn't help feeling that this was a woman who would have been just the same whatever life she had chosen: plain good.

Audrey enxerga a madre com os mesmos olhos cheios de admiração com que verá a verdadeira irmã Luke e a símile desta que criará para as telas. The Nun's Story é a adaptação cinematográfica da autobiografia da freira Marie-Louise Habets, que desligara-se da vida religiosa por incompatibilidade de gênios. A mulher inspirava um respeito intenso na atriz, como essa sua correspondência nos dá a ver. Audrey relembra a Mel seu empenho junto à Ordem religiosa à qual a freira pertencia para que o roteiro fosse por ela aprovado sem modificações:

I have never talked so much in all my life [...]. I feel strongly that the script is now back where it was and all the things you and I ever discussed are right there. [...] I explained to him how I understood the point of view of the Order and how their purpose was a good one but that neverthleless their purpose limited and checked Sister Luke in her wish to give and serve lovingly and without limits.

O excerto é pródigo por deixar visível tanto a personalidade artística de Audrey Hepburn quanto sua preocupação enquanto membro da sociedade. Aqueles que conhecem sua biografia perceberão como o fato de ela desvincular inclinação religiosa e realização do bem ecoa fortemente em seu papel social, pois a atriz, como sabemos, fez muito mais pelas crianças do mundo do que muitos membros da igreja. E a percepção fina da personalidade que ia transpor para a tela demonstra quão dedicada Audrey era ao seu métier. Na carta, a atriz constata que qualquer história digna de interesse sobre a freira deveria dar a ver o conflito que ela vivenciava por amar sinceramente a Deus e desejar servi-lo, porém, enfrentar as limitações impostas por sua Ordem religiosa.

Cada metro da película patenteia que a atriz foi bem sucedida na empreitada. É tocante o desespero que imprime em seu rosto sempre que a mão de ferro da Igreja, no intuito de eliminar a individualidade da jovem freira, obriga-a a cumprir preceitos muitas vezes vãos: quando, por exemplo, a obriga a reprovar no exame que lhe garantiria a viagem ao Congo para que, com isso, demonstrasse a humildade que lhe pede a Igreja; ou quando ela precisa retornar de seu amado Congo para novamente exercer uma vida de reclusão na Europa. O sofrimento atinge o ápice quando, durante a guerra, a freira não consegue perdoar o nazista que matara seu pai - impossibilitada de seguir a doutrina cristã do perdão sob quaisquer circunstâncias. Esse fato é, aliás, determinante para que aquela marvelous and determined woman, sobre a qual Audrey fala com tanta intimidade e afeto, não mais consiga conciliar os papéis de religiosa e de mulher. Entre a etérea religião, que pairava sobre tudo, e aquela guerra horrivelmente palpável que se desenrolava do lado de fora dos muros do convento, a irmã Luke acabará optando pelo segundo caminho.


O mote por si só já é digno de interesse - como nos comprova o fato de Marie-Louise já ter vendido espantosas três milhões de cópias de sua autobiografia quando os direitos dela foram comprados pela Warner.
Porém, o que torna a película absolutamente imperdível é o modo como ela conta a história de modo cinematográfico. Ao resenhá-la, o crítico da Film and Review sublinhou a necessidade de a obra ser revisitada algumas vezes para que se pudesse compreender a profundidade e complexidade dos sentimentos que a atriz principal projeta. Com efeito, The Nun's Story é de uma beleza tão envolvente que dificulta o distanciamento crítico.
No espaço de duas horas e meia de película, o diretor Fred Zinnemann opta pelo afastamento proporcionado pela objetiva indireta para retratar uma história clássica de aprendizado, que toma a protagonista como personagem privilegiada da observação mas procura não penetrar em seus pensamentos. Faz a opção por um enredo circular, nos moldes do romance de aprendizado, tomando Gabriele desde seu ingresso na Ordem religiosa até seu abandono do local, tão determinada quanto entrou mas muito mais madura. A escolha é precisa porque transforma a película numa melodia suave, tão suave quando as ordens religiosas aparentam ser, e um parêntese nesse sentido é a descrição cinematográfica que Audrey faz ao esposo do ofício religioso que presenciara quando se internara no convento:

they [as freiras] looked alike and became beautiful; partly because their faces all expressed the same inner thinking - [...] - but their habits and the lighting also contributed to this lovely effect. The diversity of faces around the reading table now seemed all as one.

A despeito do que pensavam as freiras, seus vestuários e a iluminação do ambiente tornava-as todas iguais. Nas cenas passadas no convento que antecedem a partida da freira ao Congo, a direção de Zinnemann busca a todo tempo captar a identidade na aparência, identidade que depois será desconstruída quando irmã Luke chega à África e encontrará, na personalidade aguda do Dr. Fortunati (Peter Finch), a força que a levará a repensar o caminho que escolhera.

Daí em diante, a câmera abandonará os interiores para captar planos gerais e panorâmicas da natureza e do povo exuberante pelos quais a jovem quisera ser acolhida desde que resolvera tornar-se freira.
As tomadas não são aleatórias nem tampouco exóticas - servem, sim, para patentear por meio das imagens aquilo que a personagem de Audrey tão lindamente verbaliza ao se referir ao local: "O Congo corre em minhas veias".
E o que dizer do desempenho da atriz, um dos mais extraordinários que já vi no cinema. Aliás, tenho uma dificuldade imensa de falar de Audrey Hepburn, a quem eu amo desde criança por motivos que, portanto, extrapolam sensivelmente o âmbito crítico. Audrey nos deu inúmeras provas de ser a lady por excelência - no modo profissional como encarou algumas injustiças da indústria cinematográfica e na humanidade com que tomou para si os papéis de mãe e de filantropa.
A delicadeza que faz transparecer nos gestos e na voz da personagem que criou é não apenas o resultado do estudo consciencioso do papel mas parece refletir algo que vem de dentro dela.
The Audrey Hepburn treasures nos dá inúmeras pistas para que compreendamos a dedicação da atriz na construção de suas personagens. As duas páginas fac-similares do roteiro de "Breakfast at Tiffany's" trazem palavras e mais palavras grifadas. Lendo-as, lembramo-nos da leitura melodiosa que a atriz faz do papel de Holly. Lembrei-me dessas duas páginas durante todo o tempo em que via The Nun's Story.
Ao ficar sabendo que teria de deixar seu amado Congo, irmã Luke olha para as aves que adornavam o jardim do hospital e afirma: "I'm coming back, you beautiful thing.". Rememorando o contato que tivera com Audrey ao dirigi-la em "Funny Face", Stanley Donen afirma emocionado que nunca se esqueceria do modo como ela cantava. Eu tampouco me esquecerei do modo como ela pronuncia aquela frase ou da musicalidade que ela imprime a todas as falas de Gabrielle - e pensar que Audrey nem era considerada cantora...

*

The Audrey Hepburn treasures, embora esgotado na editora, pode ser lido online no site da Amazon. Os fac-símiles dos "tesouros" da atriz não fazem parte da visualização, mas só o livro já vale a visita.

Audrey, embaixadora da UNICEF, em Bangladesh (fim dos anos 80)

sábado, 2 de outubro de 2010

Judy Garland em cena: um filme e um show


Judy Garland é uma das estrelas de cinema que mais me atraem. Mais que admirar seu trabalho sempre competente como atriz e cair siderada quando a ouço cantar, fico fascinada com a relação de amor e ódio que ela desde sempre travou com o show biss.
Filha mais nova de um casal de artistas de vaudeville de Minnesota, Judy praticamente nasceu nos palcos, nos quais ingressou profissionalmente aos dois anos, quando, reza a lenda, arrebatou o público com sua interpretação de "Jingle Bells"... Sua voz lhe abriu as portas da poderosa MGM, que a rebatizou - até então ela era era Frances Ethel Gumm - e tomou para si a tarefa de transformar a adolescente gorducha numa jovem longilínea que fosse desejada pelas plateias de todo o mundo.
O movimento, comum à Hollywood do star system, deixou na moça marcas tão profundas quanto deixara anos antes em Greta Garbo. Em 1939, ano em que Garbo emplacou seu último grande sucesso de bilheteria e de crítica (o imperdível "Ninotchka"), Judy despontou para a fama no "Mágico de Oz". A ele se seguiu uma série de filmes que rodou com outro queridinho de Hollywood nos anos dourados do cinema, Mickey Rooney (com quem já havia trabalhado num filme da série "Andy Hardy", protagonizada pelo ator). O sucesso dos filmes da dupla tornou-a uma das principais estrelas da galáxia da MGM, porém, também foi o deflagrador da dependência química que acabaria por levá-la à morte em 1969, quando ela tinha apenas 47 anos. Em quantas histórias reais e ficcionais como essa a indústria do cinema não desempenhou papel análogo de mãe que se revelou madrasta?...

O passeio pela biografia da nossa Frances Gumm não aparece aqui por acaso. Os tropeços da jovem atriz na trajetória pela estrada pedregosa da fama estão impressos em sua obra, e é isso que a torna tão notável. Selecionei aqui duas de suas produções que me agradam muito - e por motivos diferentes. A primeira é "Strike up the band" (1940), segunda das quatro películas que ela rodou com Mickey Rooney; a segunda é o "Judy Garland Show", série televisiva veiculada pela CBS entre 1963 e 1964.


"Strike up the band" é um daqueles descontraídos musicais que Hollywood rodou desde que começou a falar, em torno de 1929. A fórmula de sucesso do gênero é seguida quase que religiosamente. Nele estão presentes artistas conhecidos, bom humor, romantismo, canções de compositores queridos pelo público e números musicais de tirar o fôlego. No entanto, o filme se destaca pela deliciosa sequência "Nell of New Rochelle", interessante não apenas pela leitura crítica que faz da tradição teatral, como porque alude ao próprio passado artístico de Judy, que cresceu nos populares palcos do vaudeville dos anos 20.
O fio que liga a ação desse musical é tênue: As personagens de Judy e Mickey são dois jovens do interior que sonham com a fama. No intuito de conseguirem dinheiro para levarem a Nova York seu grupo musical, os jovens colocam em cena "Nell of New Rochelle", melodrama "cheio de palavras antigas" que haviam escrito.


A bem humorada sequência dá uma aula de história do teatro. O enredo encenado é totalmente tributário dos melodramas que eram sucesso de público na Europa e na América desde 1800.
Nela estão presentes as personagens tipificadas - Nelly é uma pobre moça que vive de esmolas, é perseguida por um vilão bigodudo que tem voz cavernosa e risada macabra, e é salva por um belo cavalheiro; a moral burguesa é defendida de modo escolar pelas personagens, quer por meio de discursos, quer de canções; e todos terminam felizes para sempre, depois da destruição do vilão pelo mocinho.
O melodrama constantemente visita esse blog. Não é um acaso. O gênero surpreendentemente nos persegue a todos, por meio dos enlatados cinematográficos e das telenovelas que ainda insistem em nos fazer engolir essa visão religiosa de que o mundo é justo, o casamento e a procriação são a finalidade maior da existência, and so on...
Portanto, não podemos deixar passar uma produção que zomba desses lugares comuns como esse filme (de 1940!) o faz. Recomendo fortemente a sequência aos leitores. Recostem-se com calma (ela tem 15 minutos). Certamente vão se divertir:



A sequência é fascinante pela recriação que faz do gênero.
Recriação cômica, bem entendido, pois embora os artistas melodramáticos precisassem exagerar nos gestos para imprimirem em suas fisionomias o que se passava nas suas cacholas, é certo que aqui tal exagero é elevado ao cubo. Porém, a maquiagem carregada do elenco, a voz sibilante da mocinha (e a voz rouca do bandido) e os diálogos verborrágicos não devem em nada aos melodramas protagonizados por artistas como Sarah Bernhardt. Não conheço a fundo a biografia de Judy Garland, mas é bastante provável que ela tivesse dado vida, nos palcos populares pelos quais passou, à personagens da estirpe de Nell of New Rochelle. A atriz sublinha de modo formidável o que de patético há em canções como "Heaven Will Protect the Working Girl" ("O céu protegerá a moça trabalhadora", de 1909) e "Come home, father" ("Volte para casa, papai", 1864), as quais levavam os espectadores de fins do século XIX e começo do XX às lágrimas, canções cuja pobreza conceitual salta aos olhos quando vistas com algum senso crítico. "Strike up the band" mostra de modo cabal que enredos e personagens frágeis como esses apenas podem ser ressuscitados pelo viés do humor. Escolha de mestre a do diretor Busby Berkeley, cuja contribuição à história do cinema não se resume aos estravagantes números de caleidoscópio, como pensam muitos.
E nesse filme Judy ainda dava os primeiros passos rumo àquele espantoso domínio de cena que ela demonstrará anos mais tarde, e que está todo contido no "Judy Garland Show".

Mickey Rooney, já então um mocinho de 20 anos e com impressionantes 14 anos de experiência nas telas (e - pasmem - hoje, aos 90 anos, ele ainda continua na ativa), parece ter exercido papel de destaque no desabrochar da atriz como profissional. Sua participação na série televisiva de Judy prova-nos que a química do casal era fruto da afeição genuína que sentiam um pelo outro - e essa afeição foi fundamental para a sustentação da atriz que desde bem jovem vivia sob o efeito de calmantes e estimulantes.
Porém, se Mickey Rooney naqueles anos 60 ainda conseguia fazer Judy reviver a cômica que ela havia sido no teatro de vaudeville, os anos de consumo de drogas e o desdém com que a indústria cinematográfica passara a tratá-la deixaram-lhe marcas profundas. A soma desses fatores deu-nos, no entanto, uma atriz madura, complexa e completa. Por isso, a visita ao "Judy Garland Show" é programa obrigatório aos seus fãs.

Se Judy Garland já brilha como atriz, como cantora ela é incomparável. O domínio de palco e câmera que revela, a escolha do repertório e a incrível afinação oferecem ao público uma experiência estética de um nível poucas vezes suscitado por um intérprete num palco. Ao interpretar as canções que marcaram sua infância e adolescência, sua vida pessoal e profissional, Judy Garland consegue o casamento perfeito da mulher, da atriz e da cantora. Toda a complexidade da mulher está impressa no modo como ela interpreta canções como "A foggy day in London Town" (Gershwin), "San Francisco" (Kahn); "Old Devil Moon" (E.Y. Harburg e Burton Lane) e tantos outros clássicos. Em "A Foggy Day", seu desempenho começa contido e se intensifica conforme os olhos do eu-lírico da canção veem o amor iluminar o caminho onde antes havia uma neblina espessa. O mise-en-scène intimista e os primeiros planos por meio dos quais Judy é tomada dão relevo apenas à canção (demorei muito tempo para reencontrar essa gravação, que tanto me impactou quando a vi pela primeira vez no blog do Ricardo).



A voz de Judy Garland e seus gestos potencializam os sentidos das canções que ela escolhe. A especificidade do veículo onde essas pérolas foram veiculadas não é em nenhum momento negligenciada. Sobejam os primeiros planos da artista - a subjetiva direta, profundamente expressiva, aproxima-se mais e mais de seu rosto, parecendo captar o alvoroço de sua alma nas canções melancólicas ou sensuais. E quando invade a tela o rosto já macerado da atriz e seus grandes olhos inquirem o espectador, ela se torna muito humana e lindíssima.

Nunca imaginei que alguém pudesse superar a interpretação de Petula Clark de "Old Devil Moon". Judy consegue, pois injeta uma dose de desvario romântico na leitura desses versos, glosando assim a crescente intensificação do arrebatamento amoroso que eles suscitam:

You've got me flyin' high and wide
On a magic carpet ride
Full of butterflies inside.
Wanna cry, wanna croon,
Wanna laugh like a loon.
It's that old devil moon
In your eyes.





E nos momentos descontraídos, a atriz mostra-se tão senhora de si como quando dera vida a Nell of New Rochelle, em 1940. Exemplo disso é sua interpretação de "San Francisco", canção que ganhara as telas em 1936 no filme homônimo (denominado no Brasil "São Francisco, cidade do pecado") protagonizado por Jeanette Mac Donald e Clark Gable.
A canção era uma das preferidas de Judy, como nos atestam os vários registros que há da mesma nos álbuns da artista gravados a partir de seus shows. Em comum nessas gravações há a introdução de uma estrofe cômico-laudatória que parece ter sido composta pela própria Judy, na qual ela dizia que nunca se esqueceria como a "Brava Jeanette" cantava em meio das ruínas da cidade: "A-a-a-and saaaang", enfatiza ela, reproduzindo a interpretação que Jeanette fizera da canção - interpretação tão ao gosto dos anos 30, quando a performance das operetas teatrais ainda dava as cartas no cinema. E Judy leva o mimetismo às últimas consequências, numa apresentação que paga claro tributo ao número musical de sua antecessora. Trinta anos depois de Jeanette, Judy traz à canção o mesmo entusiasmo quase infantil que tomara a mocinha de "São Francisco, a cidade do pecado" enquanto ela entoava o hino da cidade que estava prestes a ser varrida por um furacão. Um misto de homenagem e bom humor bem Judy Garland que leva o público à loucura. Abaixo, a cena do filme "São Francisco" (colorizada, pois não encontrei a versão original) e, em seguida, Judy.






Meu primeiro ímpeto é acabar isso aqui lastimando a fatalidade que a levou tão cedo. Mas aí entro no You Tube e assisto aos excertos do "Judy Garland Show" nos quais ela arrasa cantando as canções que tanto amava; pego meu DVD do "Desfile de Páscoa" e revejo aquela cena incrível em que ela canta "Easter Parade" para Fred Astaire, uma de minhas preferidas dos dois artistas; volto ao You Tube e vejo mais uma vez sua interpretação de "Old Devil Moon" (canção que me persegue faz alguns meses); e acabo me decidindo pela manjada - porém, não menos sincera - conclusão de que Judy continua por aqui, vivíssima.


*
Nos comentários à postagem, os amigos trouxeram não apenas a Dorothy - que aqui apareceu apenas de passagem, largadinha sobre as flores do Mágico de Oz - como a Liza Minelli. Como agradecimento pelas leituras carinhosas que o post recebeu, divido com todos o número de "Over the rainbow" do qual tomam parte a mãe e a filha - bela sequência do show que ambas realizaram no London Palladium em fins de 64. Depois de afirmar "Oh, I sang this song for so many years", Judy pede ajuda da plateia. Olhem...

12 out. 2010