Não posso deixar "A Suprema Felicidade", o mais recente filme de Arnaldo Jabor, passar batido pelo blog. Antes de tudo porque Marco Nanini recebeu daqui, meses atrás, uma crítica (infelizmente) justa pelo seu desempenho em "O Bem Amado". Não que Nanini precise provar alguma coisa a quem quer que seja - sua participação na capenga adaptação cinematográfica da bem sucedida telenovela revela-se um acidente de percurso dentro de sua irrepreensível carreira. Mas sim porque sua performance neste filme de Jabor merece ser conferida. Aliás, este filme precisa ser conferido por todos os que tem alguma afeição genuína pela Sétima Arte.
Vi o filme extasiada ontem. Hoje, continuo achando que não é um exagero considerá-lo um filme perfeito. Muito, muito melhor do que a notícia que darei dele nessas linhas, notícia que, embora seja mais superficial do que ele merece, infelizmente é a melhor que poderei fazer nessa correria de final de semestre.
Aplausos para Jabor, que conseguiu imprimir a seu trabalho uma dinâmica própria, mesmo se utilizando de artistas com idades e formações muito diferentes.
O elenco "global" impera na película, marcadamente nas pessoas de Nanini, Dan Stulbach e Ary Fontoura, mas o jeito Globo de ser passa longe dela. Divide espaço com tais artistas dois comediantes sensacionais que, até onde sei, ainda estão alocados no SBT, Zé Bonitinho - meu ídolo - e Elke Maravilha. Em torno deles circula uma moçada que dá conta do recado bastante bem: Maria Flor (Deise), Caio Manhente, Michel Joelsas e Jayme Matarazzo (Paulinho), Tammy di Calafiori (Marilyn). Gente muito dessemelhante que consegue, no filme, deixar sua marca individual sem que, com isso, quebre o ritmo harmônico da história. Zé Bonitinho de batina é impagável e, nos gestos passionais que ele executa ao reger o coro de meninos da igreja, entrevemos os trejeitos do personagem que ele tornou célebre.
A performer Elke Maravilha dá um show como a esposa do saxofonista Noel (Nanini), o avô de Paulinho, figura responsável por iniciá-lo nos mistérios da vida. É uma delícia vê-la sem os acessórios de sua conhecidíssima personagem - vê-la vestida de vovó, mas uma vovó cujos trajes mal escondem a polaca notívaga que ela um dia foi. O casamento entre as sensibilidades artísticas dela e de Nanini funciona tão bem quanto o casamento que eles encenam na película. Aliás, minha impressão ao ver pela primeira vez o filme - certamente eu o verei mais vezes - é que Jabor dá um ritmo boêmio à narrativa que busca mimetizar essa união bem sucedida do casal.
Durante o tempo do filme, somos levados, junto com Paulinho, a beber a gota de felicidade que escorre até dos momentos mais dolorosos da vida. Quem nos convida é Noel, cuja existência plena de experiências nunca lhe satisfaz: "É praticamente impossível se experimentar a felicidade. No máximo conseguimos ser alegres.". Enquanto ele educa o neto e imagens de uma beleza não raras vezes comovente sucedem-se, acabamos compartilhando com Noel dessa sede de felicidade e sofrendo com ele na medida em que o fio de sua vida se torna mais e mais tênue.
Para que nos impregnasse dessa fascinante boemia visual, Jabor escolheu tematizar a época certa. A infância e juventude de Paulo coincidem com o fim da 2ª Guerra, com o apogeu e derrocada das big bands e reinado do rock'n roll sobre o jazz, com o estabelecimento de Marilyn Monroe como símbolo sexual. Um período repleto de referências tão caras para tantos... muito caras para mim, que cada vez estou mais imersa nelas...
O filme nos proporciona o prazer do reconhecimento dessas referências sem que, no entanto, restrinja-se a um passeio nostálgico nos belos anos de um tempo que passou. A nostalgia está, sim, presente: nos românticos salões de baile em que o jovem casal discute apaixonadamente o filme "O Morro dos Ventos Uivantes" enquanto ouve "I only have eyes for you"; na tradução in South American Way da antológica cena de Marilyn em "Quanto mais quente melhor", na qual ela chora a perda de seu amor; nas imagens de arquivo dos carnavais antigos.
Porém, a lembrança nostálgica não deixa de dar as mãos às sofridas, afinal, como sabiamente nota Noel: "Nada é completamente bom nem completamente ruim". O prazer vem acompanhado de uma evidente visada irônica que nem por isso deixa de nos convidar a aproveitá-lo. Exemplo é o relacionamento torturado entre os pais do menino por cujos olhos conhecemos a história - não pude deixar de pensar no paralelo entre a relação deles e aquela dos protagonistas do filme sobre o qual eles tão empolgadamente discutem no baile em que se conhecem. E a Marilyn brasileira, que enlouquece os homens nos palcos do Eldorado, não passa de uma frágil jovenzinha virgem abusada pela mãe e padrasto.
Tudo isso se desenrola em frente aos nossos olhos sem as detestáveis lições de moral que povoam o grosso da produção cinematográfica contemporânea.
Arnaldo Jabor precisa ser parabenizado por ter conseguido livrar-se das amarras da Rede Globo - mesmo recebendo financiamento dela - e feito um filme de poesia, coisa rara no cinema de hoje. As coisas não ditas soam por meio das imagens com uma contundência que as palavras jamais terão. Quer coisa mais lindamente bem contada do que o sentimento amoroso que o amigo de Paulinho nutre por ele? Ou os flashes dos mortos da gripe espanhola, que assombram continuamente a mente já abalada de Noel?
A falta de um claro nexo entre a realidade e a lembrança, que se observa nesse último caso, marca outro movimento narrativo comum ao filme. Nele, as experiências da infância e juventude de Paulinho desfilam alinearmente, movimento semelhante ao do subconsciente, no qual imagens e sensações misturam-se de modo anárquico.
"A Suprema Felicidade" é uma obra de poesia e enquanto tal deve ser analisada. Bobagem analisá-la aplicando as categorias da prosa - daí a pobreza de algumas resenhas do filme que circulam pela web. Aliás, a percepção estreita de alguns críticos lembra o susto que "Memórias Sentimentais de João Miramar", do modernista Oswald de Andrade, deu na crítica dos anos de 1920. Defendendo-o, o jovem Sérgio Buarque de Hollanda lembrou aos leitores que o que faltava de continuidade narrativa nas "Memórias..." como um todo, sobrava na intensidade que tinha cada um de seus episódios isolados. Acho que isso se aplica bem à "Suprema Felicidade", que deve ser conferida pela beleza das imagens que, em sua bem vinda descontinuidade, plasmam de modo tocante os meandros da memória de uma época que, embora já tenha passado, ainda vive dentro de nós de modo mais ou menos intenso.