domingo, 26 de junho de 2011

Meia-noite em Paris (2011): comediazinha simpática para público cult

Woody Allen volta com maior fôlego depois de dois fiascos artísticos, o over the top “Tudo pode dar certo” (Whatever works, 2009) e o amargo “Você vai conhecer o homem dos seus sonhos” (You will meet a tall dark stranger, 2010). É certo que a fase dourada da carreira do diretor ficou nos anos 70 e 80 – com brilhos esparsos pontuando trabalhos posteriores, como “Vicky, Cristina, Barcelona” (2008), que julgo ser o seu filme mais interessante dos últimos cinco anos. O que não quer dizer que ele esteja completamente fora de forma. Artista prolífico e digno, Allen consegue imprimir sua marca em suas obras. Nunca produz filmes medíocres tendo em vistas unicamente o lucro – prova disso é o fracasso de bilheteria de muitas de suas produções em sua terra natal. Neste caso, não é diferente. “Meia-noite em Paris” é um típico Woody Allen – para o bem e para o mal. É um Allen acima da média – portanto, vale a visita no cinema – sem, todavia, ser uma obra-prima. Seu público fiel poderá se divertir, pois revisitará, neste filme, o melhor que o diretor já produziu para a sétima arte.
Allen ainda produz uma obra “autoral” nesta época em que parâmetros meramente mercadológicos norteiam o grosso da produção cinematográfica americana: os conflitos amorosos, a visão apaixonada e nostálgica à arte, a cidade vista como protagonista da história, o humor filosófico. Esses elementos são como peças de um quebra-cabeça, ordenados e reordenados pelo diretor em cada produção. O problema é que a ideia de “autoria” é muitas vezes usada como muleta, transformando a criação artística no emprego de uma série de procedimentos em direção a um fim já conhecido. Inegavelmente isso é seguro. Porém, tirar a ousadia da equação não faz o jogo ficar sem graça? Conjecturas como estas acabarão tomando conta do cinéfilo que conhece um pouco da produção de Allen assim que ele se deparar com “Meia-noite em Paris”.
O filme abre com planos gerais da cidade de Paris enquanto a banda sonora pespega no público uma canção antiga tocada numa vitrola. Ao fim da música, uma tomada da personagem de Owen Wilson – roteirista cinematográfico de sucesso irremediavelmente apaixonado por Paris – e da namorada recostados na amurada de uma das famosas pontes parisienses: “Essa cidade é uma maravilha. Você não acha Paris maravilhosa? Eu queria viver aqui” é mais ou menos o que ele diz.
Os sucessivos planos gerais de pontos turísticos da cidade, o trabalho do protagonista, o teor do discurso com que abre o filme, a música antiga, tudo isso remete claramente a “Manhattan” (1979). Em “Manhattan”, Isaac (Woody Allen) é um roteirista televisivo frustrado que joga para o alto seu emprego seguro para se tornar romancista; em “Meia-noite em Paris”, Gil (Owen Wilson) é um roteirista cinematográfico frustrado que idem. As canções do norte-americano George Gershwin costuram “Manhattan”; as canções do norte-americano Cole Porter costuram “Meia-noite...”.
Mais que um trabalho “autoral”, Allen faz aqui cópia de si mesmo. Se não é um problema para quem desconhece a filmografia do autor, isso deveras desconcerta quem a conhece. Eu fui uma das desconcertadas, não porque persiga sua obra, mas porque casualmente havia revisto seu canto de amor à Nova York um dia antes de ver seu canto de amor a Paris. Não fiquei muito confortável com a sensação de déjà-vu que reiteradas vezes me acometeu, talvez porque a melodia maravilhosa que soa do filme de 79 torna-se, neste, impostação inócua: como se Ella Fitzgerald, depois de entoar um de seus melhores Cole Porters, passasse seu microfone para mim (eu sou super desafinada).
Seguindo o paralelo entre ambos os filmes – Allen obriga-me a fazê-lo – Owen Wilson é, em “Meia-noite em Paris”, alter-ego do diretor. Corrijo-me: Wilson é o próprio Allen, que tenta transformar o autor em versão perfeita do que ele fora em seus melhores papéis (“Annie Hall” e “Manhattan”). Sejamos sensatos: como Woody Allen, só Woody Allen. E olhe lá... Perdoamos o tipo casmurro e nerd por meio do qual, nesses dois grandes filmes, conhecemos os conflitos sexuais da intelectualidade dos anos 70, porque Allen conseguiu através deles se transformar num personagem por vezes cativante. Owen Wilson não tem esse mesmo poder, não porque ele seja pior ator que Allen, mas porque o tipo que socialmente consolidou (de personagem tola de farsas tolíssimas) não dá credibilidade ao papel. Wilson não é tão bom ao ponto de fazer o público se esquecer das personagens que anteriormente desempenhou. Seu Gil torna-se uma colagem do cômico tolo com o casmurro nerd. Pelas mãos dele, Allen torna-se pastiche de si. Isso coopera para dar ao filme um tom farsesco que se estende para outros âmbitos.
O filme nos apresenta, grosso modo, dois núcleos: a Paris contemporânea e a Paris dos anos 20.
Do primeiro tomam parte a namorada do protagonista e os pais dela; a guia turística (Carla Bruni) e a vendedora de discos de Cole Porter. O segundo é composto por uma dúzia de artistas de todo o mundo que povoaram Paris depois da 1ª G.M.: Porter, Hemingway, Scott e Zelda Fitzgerald, Dalí, Bruñuel, Gertrude Stein etc. Os cenários da efervescente Paris dos 20 são magnificamente compostos. Há um cuidado quase que documental na composição da casa de Gertrude Stein (Kathy Bates) tal qual a descreveu Hemingway em “Paris é uma festa” (balanço nostálgico da juventude do escritor e da juventude da arte moderna concluída nos anos 60). Isso se estende para as frenéticas festas ao ar livre e libações noturnas ao som de composições musicais do período: o charleston dançado no parque de diversões e o bar no qual um Cole Porter safadinho canta a deliciosa “Let’s do it. Let’s fall in love” são verdadeiros festins para os nossos olhos (e ouvidos).
No entanto, isso nem sempre se revela num ganho dramático, já que tais ambientes não são suficientemente aproveitados para o desenrolar da história. Allen não transfere para sua película a importância que esse grupo teve na Paris daquele tempo. Esses artistas lançaram bases para a vanguarda cinematográfica – que objetivava fazer frente à produção convencional norte-americana; um tanto razoável da produção literária da época foi decidida em meio à algazarra, nos bares e festas e em casa da Madame Stein – que Hemingway pinta em todas as suas contradições em “Paris é uma festa”. Tais elementos estão ausentes do filme, que transforma os artistas em tipos caricaturados em traços grossos: Hemingway (Corey Stoll) parece a todo o momento estar posando para o retrato impresso em suas obras completas, além de repetir como mantra, ridiculamente, características definidoras de seu trabalho (“A linguagem tem de ser seca.” etc.); Dalí (Adrien Brodi) é uma perfeita casca dentro de um conteúdo que esvazia ao máximo o rótulo de “surrealista” dado à sua obra.
É curioso de se ver – ao menos para o público que conhece as referências; na sessão a que assisti, muitos abandonaram o barco antes do final e outros tantos saíram reclamando de terem perdido tempo – só isso. Do grupo, se salva Adriana, personagem fictícia desempenhada por uma ótima (como sempre) Marion Cotillard, mas sua delicadeza não consegue dar suficiente humanidade ao conjunto, já que ela pouco aparece em cena – e aparece nuns diálogos pouco inspirados.
O galho contemporâneo da história é composto por uma Rachel Mc Adams tão pobremente composta como os pais dela. Personagem plana, desagradabilíssima como a loira chata que, como seus progenitores, humilha o namorado de cabo a rabo da história: e ele estranhamente a segue como um cachorrinho.
A vivência empírica nos anos 20 – aliás, altamente tributária de “Rosa Púrpura do Cairo”, pois torna literal a metáfora da viagem no tempo proporcionada pela arte, como faz o filme de 1985 ao tratar do cinema – é costurada com razoável eficiência com o presente. A noção, implícita ao longo da história, de que o presente só é compreendido na distância temporal – o que o torna tão sedutor às próximas gerações – é escolarmente explicitada no desfecho, na cena em que a personagem de Marion bota ponto final à amizade colorida com o protagonista (a única coisa a dar calor humano à história) para viver na belle époque de 1890 – passado que tanto a seduzia.
Se isso está longe de compor um todo completamente descartável, compõe um em grande medida frustrante. Faltou ao diretor imprimir a “Meia-noite em Paris” o ritmo da cidade-luz do mesmo modo como ele fez em “Manhattan” com a cidade homônima. O apego a um passado de sucesso artístico perigosamente mostra um Allen que tem pouco a oferecer no futuro.

sábado, 18 de junho de 2011

Festival Varilux de Cinema Francês 2011: várias boas realizações e uma obra-prima

Nessa semana, um pouco da cultura francesa desembarcou no Brasil no Festival Varilux de Cinema Francês 2011 - que nos trouxe 10 filmes recentemente produzidos e alguns nomes consagrados que deles tomaram parte.
Em Campinas, o festival encontrou seu espaço de divulgação no Cinema Topázio, que graciosamente se divide entre a exibição da produção cinematográfica comercial e da alternativa - algo cada vez mais difícil de se ver - e, aleluia, está fincado logo na entrada da cidade, bem perto daqui. Não dá para falar da mostra sem mencionar a casa que a hospedou - que é, aliás, minha segunda casa, como a de tantos outros cinéfilos que temporariamente se mudaram para lá junto com os filmes franceses. O resultado foi proveitoso - salas cheias, algumas vezes lotadas, ajudaram a contrariar a crença socialmente consolidada de que o público está hoje preferindo o download pirata às salas de exibição.
O cinema - enquanto espaço de congregação de pessoas no âmbito público - mostra que não vai morrer tão cedo, e aqui assino publicamente embaixo da simpática propaganda do Telecine projetada antes dos filmes: não há nada como o cinema no cinema.
Isso dito, passo agora a dar uma notícia das novidades francesas. Notícia breve e que ainda se ressente da overdose de trabalho dos últimos tempos - o que, infelizmente, me afastou daqui por mais tempo do que desejaria. Espero que a desamarração geral das linhas abaixo não diminua o desejo dos leitores de passar os olhos por algumas dessas produções - especialmente por "Potiche: Esposa Troféu", a obra-prima do título, comédia protagonizada por uma irresistível Catherine Deneuve. No entanto, não vamos pôr a carroça antes dos burros. Primeiro, uma referência às boas realizações, ao menos àquelas que tive a oportunidade de ver (a lista completa está aqui).

Audrey Tatou em "Uma doce mentira"


Os dramas

O primeiro, "Copacabana" (2010, direção de Marc Fitoussi), protagonizado por Isabelle Huppert, injeta um riso ao mesmo tempo ácido e estapafúrdio na situação dramática que toma como base. Huppert desempenha uma mãe atípica, hippie extemporânea rejeitada pela jovem filha que está prestes a se casar. Depois de ser desconvidada para o casamento da filha, a mulher viaja à Bélgica atrás de um emprego de vendedora de apartamentos time-sharing (sistema segundo o qual se adquire um imóvel em conjunto com outras pessoas, desfrutando-se do direito de ocupá-lo por um breve período de tempo todos os anos). O motivo real da viagem nem mesmo ela sabe ao certo, impulsiva que é: provar à filha que poderia ser uma mãe convencional?; viver outra aventura noutra terra estrangeira? A fortuidade impera no roteiro, estendendo-se para o título e a trilha-sonora da película - canções brasileiríssimas ritmam malemá as andanças da mulher pela gélida Bélgica - coadunando-se com as excentricidades do conjunto (excentricidade impressa até mesmo no colorido cartaz).
A história é surpreendente: a viagem desde sempre anunciada ao Brasil - mas nunca realizada empiricamente - desdobra-se numa original vivência da protagonista com o país que ela tanto ama (ama, aliás, o estereótipo do Brasil, o que nem por isso deixa de ser interessante, já que dá consistência ao papel da mulher avoada e calorosa); o percurso até o insólito clímax (que não vou anunciar para não perder a graça) é marcado por encontros da protagonista com personagens igualmente incomuns.
O mote da trama é doloroso e Huppert parece mais uma vez se deleitar desempenhando com desprendimento outra personagem surda às imposições do mundo, vivendo somente para seus instintos (vi-a pouco tempo atrás em "Minha terra: África", igualmente correta). O filme não alça nenhum maior voo, porém, é interessante pela forma como rejeita expressamente qualquer convenção - o que pode até acarretar na dificuldade de o público se identificar com a personagem principal, mas nem por isso diminui o interesse da história.

Os outros dois dramas seguem o mesmo saudável percurso que faria muito bem ao cinema norte-americano standard dos dias de hoje: roteiros despretensiosos, limpos e seguros, e atuações de uma naturalidade quase documental.
"O pai dos meus filhos" ("Le père de mes enfants", 2009, direção de Mia Hansen-Love) toma como tema a indústria do cinema a partir do ponto de vista de um pequeno produtor que tenta se equilibrar entre os sucessos comerciais e os artísticos. Que a luta é infausta todos nós sabemos. O problema é que as produções que se dedicam ao assunto insistem em desfechos upbeating - nos quais a qualidade vence o dinheiro e o artista lutador vê finalmente seus esforços recompensados. Aqui não há disso.
Acessamos flashes da vida familiar e profissional de Grégoire Canvel, pai amoroso e produtor cinematográfico dedicado que acaba digerido pelo sistema. A soma dos âmbitos público e privado, todavia, não prenuncia o desfecho que o homem terá: por isso tal desfecho é tão surpreendente.
A principal riqueza do filme está no modo como as duas partes da história são contadas. Na segunda, a virilidade - marca principal da personalidade de Canvel, transferida para o ritmo frenético da filmagem - é suplantada pela delicadeza das mulheres da família. A forma como o percurso se dá é bastante bonita: Multiplicam-se os primeiros planos dos rostos das frágeis mulheres e a velocidade dá lugar à lentidão; enquanto isso, através de velhas cartas do homem e da defesa de seus ideais, mãe e filhas tentam repor sua presença. O resultado vale a pena ser conferido.
Igualmente original é o modo como o thriller Simon Werner desapareceu... ("Simon Werner a disparu...", 2010, direção de Fabrice Gobert) é narrado. O mote é simples: numa escola de Ensino Médio, três jovens misteriosamente desaparecem. As soluções comuns ao gênero são, no entanto, deixadas de lado em prol de uma narração reiterativa, que teima em (re)contar tais desaparecimentos a partir dos pontos de vistas dos colegas de escola dos jovens. A escolha igualmente diminui a importância dada aos momentos de surpresa, e os sustos comuns ao gênero dão (viva!) espaço para uma leitura muito mais cerebral do caso narrado. O final é surpreendente e só faz ressaltar a potencialidade de uma narração em primeira pessoa: a câmera ganha os olhos de várias personagens; a subjetiva direta apresenta o olhar de cada um sobre o fato. Quem faz o balanço é o público, que, nesse sentido, participa do desvendamento do caso.
Algo curioso - e que menciono só de passagem, já que não consigo cogitar em suas razões - é que o filme tem um sopro nostálgico que se estende para as outras duas produções das quais me ocupo a partir de agora. Nele aparecem debates sobre o tabu do homossexualismo, a AIDS e a camisinha. Além disso, pululam walkmans e os toca-discos ritmam as festas estilo "Barrados no Baile" - o divertimento ingênuo com que as personagens dos anos 80 comemoravam a saída dos pais de casa ganha aqui tom lúgubre, mareado pelo aparecimento de um corpo. Parece que o nosso dia-a-dia marcado por celulares e demais dispositivos de localização imediata diminui o mistério das coisas, e que para novamente encontrá-lo se é preciso mergulhar no passado...

As comédias

O festival acertou em cheio na escolha das comédias: ambas leves e adoráveis. "Uma doce mentira" ("De vrairs mensonges", 2010, dirigido por Pierre Salvadori) permitiu a Audrey Tatou revisitar a personagem que eternizou em "O fabuloso destino de Amélie Poulain".
O filme está distante da obra-prima de 2001 no que toca à temática e o cuidado com a fotografia - de uma sofisticação e singeleza ímpares, como raramente vemos nesses dias. Porém, ainda podemos ver uma Audrey Tatou luminosa como um raio de sol - sim, a comparação é tolinha, mas é exatamente nela em que pensava sempre que o rosto da atriz era enquadrado pela câmera - demonstrando cabalmente que, embora se desincumba bem de papéis dramáticos, seu elemento mesmo é a comédia leve.
O enredo é simples, mas rende múltiplos achados cômicos: Emilie é dona de um estiloso salão de beleza situado num canto da Riviera e tem como empregado um jovem charmoso que nutre por ela uma paixão recolhida. Uma carta romântica anônima escrita pelo rapaz à moça dá início a peripécias que acabarão por envolver também a mãe dela - mulher desgostosa da vida depois de ser abandonada pelo marido.
Nada muito inovador, porém, a história é contada de um modo tão gracioso que se torna imperdível. Para isso, contribui enormemente uma trilha sonora dos anos 80 - não localizei os nomes das canções para dizê-lo com certeza, mas os arranjos me parecem bastante tributários dos 80 - que são um deleite para os ouvidos dos nostálgicos (para mim, essas canções combinavam com a piscina do clube onde eu passava despreocupados verões, tanto tempo atrás...). Elas caem como uma luva na história, dando credibilidade aos bobinhos desencontros amorosos encenados - já que estão envolvidos por aquela pátina do tempo que torna tudo mais charmoso. Imperdível, assim como "Potiche".

A surpresa do festival foi, para mim, "Potiche: Esposa Troféu" (Potiche, 2010, dirigido por François Ozon). Por causa dele, Catherine Deneuve acabou de ganhar um espaço de destaque na minha prateleira de musas.
O filme segue de perto o melhor da screwball comedy. Não conheço a filmografia do diretor e conheço pouco a de Deneuve. Então, ver o filme me proporcionou a deliciosa descoberta de que é ainda possível reencontrar na tela grande o ritmo que tanto me deleita naquelas maravilhas dos anos 30 e 40 dirigidas por Capra, Lubitsch, Cukor, La Cava... E isso pelas mãos de uma atriz que, embora experiente, mostra que pode ser lépida como uma garotinha - o que multiplica o charme da história.
"Potiche" mergulha romanticamente no passado - no final dos anos 70, aurora da luta da mulher pela igualdade social. Deneuve é Suzanne Pujol, a esposa enfeite.
Casada com um homem de ferro da indústria do guarda-chuva, a mulher de meia-idade (embora a atriz tenha quase 70, passa facilmente por uma mulher de 50 - ou menos) precisa se contentar com um espaço módico na vida pública e privada do homem. Como as bonequinhas dos anos 70, Suzanne se dedica a ninharias. Ela escreve poesias... A sequência que abre o filme, da mulher correndo no bosque e interagindo com os pequenos animais silvestres, é um primor da graça, tolice e poesia (não é quase impossível juntar bem tudo isso?).
A viagem ao passado é acompanhada de um olhar num só tempo amoroso e analítico. O filme constrói, com riqueza de detalhes, tipos e estereótipos dos anos 70 - o próprio pôster faz graça com isso, rotulando todas as personagens logo de cara, influenciado em grande medida pela produção cinematográfica e seriada da época. Porém, cabelões armados, calças bocas-de-sino, laquê e companhia emolduram personagens algo complexas. Os estereótipos vão caindo na medida em que a esposa-troféu vê-se obrigada, devido à doença do marido, a sair da estante e enfrentar a fábrica dominada pelos funcionários insatisfeitos. E aí, o filme é todo de Catherine Deneuve, que conduz o protagonismo com uma maestria igual a qual é raro vermos. A dignidade que a atriz experimentada imprime a cada cena faz o filme a todo momento deixar a sátira e esbarrar na poesia: seu encontro com o velho amor na boate da moda; sua relação suis generis com o marido - contada por uma câmera que a todo momento beira o kitsch mas vitoriosamente escapa dele.


Sem contar as referências à sétima arte - não só a produzida nos anos 70. Sabem que sou amante assumida do cinema clássico. Por isso minha emoção ao ver Catherine tratada com um respeito quase reverencial pelo diretor - a alusão a "Os guarda-chuvas do amor" não está só na fábrica de Monsieur Pujol, mas na canção que a própria personagem entoa graciosamente no clímax do filme. O respeito é merecido, porque não só a atriz mostra ter se esbaldado em cena, nós também nos esbaldamos com ela.

Como esse post é mais um convite para que os leitores conheçam as produções que uma análise cerrada de cada uma delas, paro por aqui para não estragar as surpresas. Aqui em Campinas, nos movimentamos e ganhamos de presente "Potiche" por mais um par de semanas. Desejo-lhes a mesma sorte!