quinta-feira, 24 de maio de 2012

O filme mais belo do mundo: “Aurora” (1927)

Na história do cinema, pouca gente esteve tão inspirada quanto Murnau quando ele rodou “Sunrise: a song of two humans”, inconteste obra-prima da Sétima Arte e, na opinião abalizada de Truffaut, “o filme mais belo do mundo”. 
F. W. Murnau nasceu na Alemanha, onde erigiu praticamente toda a sua carreira. Lá criou o legendário “Nosferatu” (1922), filme de terror que faz competente uso da estética expressionista. Lá dirigiu o grande Emil Jannings (o leitor lembrará dele na pele do sisudo professor de colégio enredado por Marlene Dietrich no “Anjo Azul”, de 1930) em outros dois clássicos, “A última gargalhada” (1924) e “O Tartufo” (1925), impondo-se entre público e crítica por sua grande capacidade criativa – “A última gargalhada” foi sucesso de bilheteria, malgrado toda a inovação técnica que arrolava. O êxito na terra natal abriu-lhe as portas da cinematografia norte-americana, que à época caçava talentos ao redor do mundo, pagando-lhes regiamente. “Aurora” foi o primeiro filme do artista rodado na “Meca do Cinema”.
Em Hollywood, Murnau teve liberdade como poucos diretores de seu tempo. Mais ainda, pôde usar como protagonista o rosto mais emblemático da cinematografia norte-americana, Janet Gaynor, se não a atriz mais bela, ao menos aquela que mais perfeitamente simbolizava os ideais americanos de pureza, bondade e amor desinteressado. A principal personagem masculina do filme é George O’Brien, que fizera fama como protagonista de westerns de John Ford e acabara de co-protagonizar com Gaynor “The Blue Eagle” (1926). O roteiro foi produzido a partir de história de Hermann Sudermann, que também em 1926 vira o sucesso estrondoso de “Flesh and the Devil", adaptação protagonizada por Greta Garbo e John Gilbert de sua novela “The undying past”. A empreitada, que estava fadada ao sucesso, experimentou reações frias por parte da crítica e do público. Mas isso não é de se estranhar. O filme era bom demais para o espectador da época.  
“Aurora” é, ainda hoje, bom demais pra ser verdade. O que mais me surpreende na obra – ela toda surpreendente – é a genialidade com que o diretor conseguiu trabalhar o gênero melodramático. Desde “A última gargalhada”, Murnau provara a capacidade de trabalhar com originalidade o melodrama. Aquele filme entraria para a História desta arte como o primeiro feature (quase) sem intertítulos, o primeiro a conseguir, segundo a crítica contemporânea, contar uma história sem precisar recorrer a outros gêneros artísticos, como a literatura ou o teatro. O que a crítica não viu - ou pelo menos até onde eu sei não viu -, é como o enredo de “A última gargalhada” está impregnado de literatura e teatro. A câmera fluida de Murnau e sua decupagem cuidadosa só conseguem se fazer compreensíveis porque a história daquele velho porteiro de hotel, tão cioso de si a ponto de experimentar o declínio moral e físico depois de se ver destituído do emprego e, portanto, do uniforme que lhe conferia prestígio entre os visinhos, já fora tomado como tema por escritores do calibre de Gogol (O Capote) e Machado de Assis (O Espelho). 
Antes do cinema, coube não só à literatura dar carne aos fantasmas do homem, como também ao teatro. Se algo competiu com o cinema no que toca ao amor das plateias, foi o melodrama teatral, popular por natureza no que toca à temática e à preocupação social. Os personagens de “A última gargalhada” dividem-se em polos positivos e negativos: o velho porteiro, magnificamente composto por Jannings como um misto de bondade, simpatia, hombridade e amor paternal, perde injustamente o emprego e com ele o respeito dos amigos, e ao final, depois de ter de volta um posto de honra na sociedade, enceta uma cena catártica de glutonaria – em que metaforicamente reingere, com a comida, o respeito outrora perdido. Os episódios encenados pertencem também à poética do melodrama: o homem que luta para sobreviver às imposições da ordem social; a bela e frágil mocinha casadoira, que periga ser carregada de trambolhão para a sarjeta, junto do pai, quando os conhecidos descobrem que ele virou um zé-ninguém. A originalidade de Murnau está não em ter escapado ao gênero, nas em ter conseguido encontrar soluções cinematográficas para esse feixe de temas, reduzindo o texto escrito ao mínimo. 
Elenco e equipe artística de "Aurora". Murnau está sentado à direita, ao lado de Janet Gaynor.
Revista Cinearte, Rio de Janeiro, 4 mai. 1927

O diretor continua a perseguir esses mesmos objetivos nos Estados Unidos, onde o orçamento da Fox Films lhe permite depurá-los à perfeição. Sua inclinação ao melodrama subsiste em “Aurora”. Mas naquele mundo em que dramalhões multiplicavam-se, sua obra brilha como joia lapidada em meio à bijuteria barata. É verdade que o ano de 1927 viu nascer grandes filmes, mas boa parte do que a indústria do cinema produzia entrava no esquema “boy meets girl/ boy faces danger/ boy gets girl”. Murnau chacoalha a estrutura consolidada (ordem social estabelecida  rompimento na ordem — reestabelecimento da ordem) e bota em choque episódios da vida de um casal: 
This song of the Man and his Wife 
is of no place and every place: 
you might hear it anywhere at any time. 
For wherever the sun rises 
and sets in the city's turmoil or 
under the open sky on the farm 
life is much the same: 
sometimes bitter, sometimes sweet 

O homem e a mulher não têm nome: dão corpo a todos os indivíduos cujas alegrias e tristezas desenrolam-se sob o sol. O sol que se põe abre a narrativa, que se fechará quando ele novamente nascer. A poética do melodrama dá aqui mãos à da tragédia. Uma vamp – algo tão Sudermann e tão anos 20... – é responsável pelo rompimento da ordem. Ela é uma das variantes da Felicitas de Garbo: enreda o homem indefeso, prende-o em suas garras. A esposa, na sua fragilidade de mulher-menina, é impotente frente à ordem das coisas. Melodrama, mas também tragédia: a mão do marido (= o chefe de família, o todo-poderoso) aparece de certa forma atrelada aqui à mão do destino – a mulher fatal arquetípica é antes de tudo uma força da natureza, indomável. E, porque não? A própria sociedade patriarcal não era o destino da mulher daquele tempo – ainda mais da mocinha camponesa, casada quase menina? A vamp induzirá seu homem ao crime para que ela o tenha inteiro. A jovem esposa nada pode fazer além de implorar pela vida. É desse percurso da fuga da ordem ao seu reestabelecimento que trata o filme. 
Porém, ao preferir concentrar-se em episódios ao invés de desenrolar uma narrativa convencional, “Aurora” consegue um poder de concentração raro na época. A escolha de Murnau foi vista de modo controvertido pela crítica, acostumada demais à estrutura realista para se deixar prender às reviravoltas surpreendentes encenadas no filme. O conflito entre pontos de vista foi encenado por aqui nas páginas da revista “O Fan” (1928), os membros do Chaplin-Club divididos entre o repúdio e o elogio irrestrito à obra. A leitura dos dois lados da contenda mostra coisas interessantes: de um lado, como a crítica cinematográfica estava desenvolvida naquele fim de anos 20; de outro, como as teorias dos cineastas russos foram tomados de modo enviesado entre nós. Em sua sede por enquadramentos originais e pela eliminação de intertítulos, os críticos deixaram de lado a própria materialidade do filme de Murnau. Não perceberam como, por exemplo, ele elevava o melodrama ao articulá-lo à música e à poesia. 

“Aurora” foi lançado um mês depois de “The Jazz Singer”, da Warner, o primeiro filme falado. É um filme silencioso, mas foi o primeiro da Fox a ter sua banda sonora em Movietone, ou seja, impressa junto à película. A música tem papel preponderante em “Aurora”, expresso desde seu subtítulo, não só por embeber a alma do espectador – papel usual da música no cinema, que o piano ao vivo já supria bem – mas também porque exerce função intelectual no filme. 
 A música tem em “Aurora” um papel dialético análogo ao da montagem. No plano sonoro, os leitmotiven apresentam e acompanham as personagens, aprofundando suas subjetividades: repare o leitor na riqueza da música do parque de diversões, em que o tema lírico mistura-se e se choca às canções da moda, ao som incidental e ao tema trágico, prenunciando-o. No plano imagético, é igualmente a noção de choque que impera nas montagens paralelas: a mulher-mãe que abraça a criança enquanto o homem-macho abraça a amante; a mulher-dona de casa alimenta as galinhas enquanto o homem sente as mãos da vamp a apertarem-no, impregnada que ela estava em seu corpo e alma. Murnau adere, assim, à mais literal noção de melodrama: “obra dramática cujo texto é acompanhado de música instrumental.” Ou neste caso, obra visual acompanhada de uma música instrumental que estende seus domínios às cenas e aos textos dos intertítulos. 
“Aurora” é todo ele musical. Dos poucos intertítulos do filme, apenas alguns são explicativos. Do mesmo modo como os enquadramentos e a decupagem multiplicam os pontos de vista, construindo em profundidade a alma atormentada do marido e o desespero da jovem esposa abandonada e daqueles que a amam, os intertítulos servem de eco à dor funda dos personagens e do narrador – que acaba impregnado da tristeza deles: 
 “They used to be like children, carefree... always happy and laughing... 
They used to be like children, carefree... always happy and laughing...” 
 “Don't be afraid of me! 
Don't be afraid of me!” 
Intertítulos como esses não ajudam a alavancar a ação. São uma espécie de mantra. E multiplicam-se: no plano da imagem, por meio do encadeamento das cenas, e no âmbito sonoro, pelo desenvolvimento dos temas. É o melodrama arquetípico, e do mais alto nível.
A repetição quase infantil de frases abre uma espécie de dimensão religiosa para a história, que se desenvolve nas analogias que a imagem traça entre a personagem da jovem mãe e a da Virgem Maria, a grande mãe do cristianismo. A analogia é explícita ao final, no primeiro plano daquele rosto comovente de Janet Gaynor, os cabelos louros envoltos num xale e banhada de claridade. Mas tais analogias aparecem ao longo do filme. Nos sinos, por exemplo, que entremeiam a oração da jovem no barco e o arrependimento do marido, conduzindo depois o casal já apaziguado para a igreja na qual, por meio de um processo de projeção, novamente tomarão a benção matrimonial. 
Murnau trabalha essa dimensão religiosa por meio da estética expressionista, na qual ele já se mostrara mestre. A divisão entre dia e noite ganha uma dimensão simbólica que será repetida nas sombras negras que abraçam o casal de amante e persegue o corpo do homem consumido pela culpa. A luz para a vida do casal será trazida pela mesma cidade grande de onde viera a vamp, ruptura com a dicotomia gasta que toma o campo como o lugar da paz e a cidade como o antro da perdição. A mesma cidade devoradora do princípio torna-se a cidade iluminada onde o amor transforma as ruas em campos floridos, prova de que a beleza está nos olhos e no coração de quem vê. 
Tragédia e melodrama convivem durante todo o tempo, mas é a lógica do melodrama que felizmente prevalece – felizmente para quem, como eu, se apaixonou pelas personagens. Pode-se dizer que com isso Murnau rendeu-se ao status quo? Acho que não. Cada vez que revejo o filme, acredito com mais força que na aparente simplicidade de sua trama esconde-se a sua eternidade. “A Mulher” e “O Homem” de Janet Gaynor e George O’Brien somos cada um de nós, obrigados a mastigar doçuras e amargores, esperando que no final prevaleça a aurora. 
Dois anos mais tarde, na primeira cerimônia de entrega do Oscar, “Sunrise: a song of two humans” receberia a justa aclamação da crítica. Ganhou o prêmio de “Melhor Cinematografia” e, pela única vez na história do cinema, o prêmio de “Melhor filme: produção única e artística”. Janet, que acumulou indicações por este filme e outros dois (“Seventh Heaven”, de 27, e “Street Angel”, de 28), foi a primeira atriz a levar para casa uma estatueta. Merecidíssima.

domingo, 13 de maio de 2012

Henry James e William Wyler: de “Washington Square” a “The Heiress”


Em 1880, o romancista nova-iorquino Henry James publicou o romance Washington Square aos pedaços na “Cornhill Magazine” e na Harper’s New Monthly Magazine”. Naquele mesmo ano, a Harpers & Brothers lançou a totalidade da obra num daqueles volumes de capa dura e letras douradas que caíam como uma luva na decoração das bibliotecas das elites. Em 1949, estreou “The Heiress” (Tarde Demais), tratamento cinematográfico do livro de James dirigido por William Wyler e roteirizado por Ruth Goetz e Augustus Goetz. 
O livro e o filme são ambos de altíssimo nível. O livro, porque Henry James injeta no gênero um frescor e um veneno saborosos. Figura central do realismo literário, James não doura a pílula ao apresentar a alta sociedade americana dos estertores do século XIX. Sua “heroína” mal pode ser caracterizada como tal. É moça simplória, rica em altruísmo mas pobre de encantos, como o pai não esquece de lembrá-la cada vez que a vê impossibilitada de ostentar um vestido de baile com graça análoga a de sua mãe – que morrera ao lhe dar a luz – ou a levar adiante uma conversação. O único talento verdadeiro da jovem Catherine é o bordado, à qual ela se dedica com afinco: era aprendiz pela metade das prendas domésticas que lhe dariam um marido de valor. 
O romancista se deleita em detalhar o dia-a-dia de Catherine: A festa para a qual ela veste traje caro e sem gosto, denotativo da imperícia com que manejava seus parcos encantos. E sua timidez, sua simples sinceridade e o calmo amor que nutria primeiro pelo pai e depois por Morris Townsend. O grande protagonista do romance eu penso que seja mesmo Henry James, que maneja a pena de modo a chamar a atenção não apenas para o tema, mas também para a forma do texto, coisa surpreendente na época. 

Washington Square (NY), 1910

O enredo é de uma simplicidade monacal. Porque ele data de 150 anos e seu conhecimento não prejudica a fruição do livro, deem licença de eu contá-lo: Catherine descobre-se objeto da atenção do belo e desocupado Morris Townsend. Porque ela não tem gênio o suficiente para enxergá-lo como desocupado, preferindo sobretudo vê-lo como um bonito exemplar do gênero masculino que, além disso, oh, glória!, mostra-se interessado por ela – emoção nova na vidinha simples que levava – a moça começa a corresponder ao flerte. Quem observa de camarote a reviravolta de Catherine, de moça calma a pseudo-heroína romântica, é seu pai, médico arguto que transpira ceticismo. E ele a observa com olhos sadistas, perfeitamente cônscio de que a filha está sendo embrulhada pelo seu galã de romance romântico – o qual, pela cartilha do realismo, não passa de um interesseiro, que prepara o bote para ascender socialmente. 
O Dr. Sloper maneja a filha-títere como se ela fosse um experimento de laboratório. Primeiro, instando-a a corresponder às atenções do jovem Townsend, supondo assim que a moça finalmente devolveria à sua vida (à vida do médico, bem entendido) o brilho que fora embora quando sua esposa se finara. Depois, quando a jovem – que afinal de contas era um exemplar de fêmea da sociedade do fim do século, sem espírito suficiente para sentimentos impetuosos, porém, talhada ao matrimônio – aceita o pedido de casamento de Townsend e comunica-o ao pai com aquela simplicidade que lhe era inerente. Aí ele empregará todos os métodos conhecidos na novelística para afastar a filha de Townsend: vasculha a vida do rapaz para esfregá-la no nariz na moça; ameaça deserdá-la; leva à Europa para fazê-la esquecê-lo. Nada consegue. Para a cabecinha da simplória Catherine, a Europa torna-se uma extensão de sua casa neo-clássica na nova-iorquina Washington Square. Durante a viagem que lhe formaria o espírito às coisas da arte e da vida, tudo o que a jovem faz é se corresponder com o namorado, antevendo o momento em que se tornaria a Senhora Townsend. Como ela, o autor prefere se debruçar em sua heroína a tratar da arquitetura que ele – que tantas vezes viajara à Europa – conhecia tão bem. 

Washington Square, séc. XX - arremedo da parisiense Place de l'Etoile

Porém, nem Catherine, nem o Dr. Sloper (Ralph Richardson no filme), nem Morris, nem a tia velha (Miriam Hopkins) – sátira feroz ao éthos romanesco meia-irmã da Madame Bovary de Flaubert. O ventriloquista-mor de Washington Square é mesmo Henry James, pai malvado não só de Catherine como do restante das personagens e, em suma, da sociedade de aparências do fim dos oitocentos. 
Porque ele era homem e só a muito custo foge-se às determinações sociais do gênero, ele trata o Dr. Sloper com um pouco mais de respeito. Mas mesmo o proclamado amor paterno do personagem impede o autor de desenhar-lhe mais e mais vil: vileza que culmina na exclusão da filha da herança quando ela, pela primeira e única vez na vida, se dá ao luxo de desafiá-lo. O pai de Catherine é por vezes alter-ego do narrador, que explicitamente considera a moça uma pobre coitada: carente de criatividade ou vivacidade, carrega como cruz o desdém do pai por toda a extensão da obra, apenas fazendo-se notar quando se transforma numa solteirona (existia coisa pior na sociedade da época?), exímia em dar conselhos à juventude, justo ela que passara toda a vida na inação.

William Wyler não poderia ter escolhido objeto melhor a que voltar sua câmera ferina. O diretor é um notável artesão das feridas da sociedade. Exemplos de como ele as escarafuncha não faltam: “Infâmia” (The Children’s Hour, 1961), em que a angelical Audrey Hepburn desempenha uma personagem perseguida por seu suposto homossexualismo, deixa isso claro. Ele soube como poucos colocar a constelação de Hollywood em papéis ousados. O que é aquela “Pérfida” Bette Davis, que espreme até a última gota o marido com o qual se casou por obrigação (The little foxes, 1941)? Wyler foi mestre em estender diante da tela o amarrotado tecido social. “The Heiress” se beneficia muito disso. 
Pelo título do filme vê-se que a personagem principal agora é Catherine, interpretada por Olivia de Havilland no papel que lhe daria o Oscar. Wyler enfeia a bela Olivia e malevolamente escala como seu galã o homem mais lindo da Hollywood daquele tempo: Montgomery Clift. A escolha do ator beneficia a personagem de Townsend, pois o rosto de Clift somava beleza física e densidade psicológica como o de nenhum outro artista da época. Em seu corpo, Townsend parece menos arrivista social e mais apaixonado, o que parece uma redução do personagem dele ao gosto de Hollywood, mas na verdade é uma valorização, já que em toda a primeira parte do livro Townsend é desenhado por Henry James de modo ambíguo. 
 O primeiro plano do rosto do jovem ao se despedir de Catherine no baile onde se conheceram é prova disso: seus olhos brilham, seus lábios esboçam um breve sorriso, mas todo seu rosto exala seriedade. É raro no cinema de Hollywood dos 50 que um primeiro plano mostre tanto e ao mesmo tempo tão pouco. Quem é Townsend? Sem o narrador onisciente de James, que do meio para o final de Washington Square dedica-se a esmiuçar suas falhas, Townsend é um ser incerto. E Wyler aproveita-se bem disso. Depois daquele primeiro plano, o jovem é tomado numa sucessão de perfis que explicitam a dificuldade de se lhe apreender completamente. Porque ninguém é estritamente bom ou mau, talvez. Porque a máscara social esconde segredos terríveis, provavelmente. E como Wyler era bom em lançar luz sobre eles! 
Ao contrário de James, Wyler parece ter se apaixonado irrestritamente pelos seus personagens. Sua Catherine é tirada da inação. Não se torna mocinha romântica stricto sensu, bela de uma hora para outra como tantas tocadas pelo amor. Porém, ela caminha da timidez à ousadia e ao final torna-se brilhante em seu bom senso e depois, em seu amargor. Deixada pelo noivo, despeja no pai sua revolta por anos de menosprezo: 

Se era para comprar um homem, eu preferia ter comprado Morris. (...) Eu o amo. 

Nem precisamos olhar muito longe para percebermos que a assertiva é atualíssima... Impossível saber se Townsend seria incapaz de amar Catherine e, de todo modo, seu próprio pai passara uma vida sem amá-la – é o que ela por fim constata. 
 Porém, o roteiro não deixa de transmitir a amargura oriunda dessa tomada de consciência. A Catherine de Henry James repudia Townsend porque felizmente o pai lhe abrira os olhos. A Catherine hollywoodiana repudia-o não só por descobrir que sua atenção encobria segundas intenções, mas porque a manipulação do pai acabara com toda a doçura que havia nela. 
Em sua leitura crítica do passado, “The Heiress” toma com sensibilidade a mulher da sociedade machista dos anos de 1880. A fotografia e os enquadramentos do filme falam tanto quanto os personagens. Exímio na composição de quadros, Wyler enquadra o pai sempre em primeiro plano, de costas para a câmera, encarando impositivamente a filha ou Townsend, que ocupam um segundo plano que os apequena. Potencializa assim a grandeza ameaçadora do velho, cerne da sociedade patriarcal. E a arquitetura anacrônica da casa de Washington Square não apenas serve de cenário. Soma-se aos enquadramentos para contar a história de opressão da mulher daquela sociedade – não só da mocinha que não se encaixava bem no papel de objeto de luxo que a História impunha ao seu sexo, mas de todas as mulheres, obrigadas a passar das mãos do pai para as mãos do homem que ele escolheu para elas. Henry James cria “Catherine Sloper”, mas quem a entende realmente é “The Heiress”. É William Wyler e o casal de roteiristas que adaptou o romance quase 100 anos depois.