sexta-feira, 30 de novembro de 2012

Seguindo os passos de Sabrina

Pont des Arts

I used to walk everywhere in Paris. Along the Seine, there’s a four-mile walk... that goes from Isle Saint Germain to the Pont d’Austerlitz. It takes you past all the bridges of Paris... twenty-three of them. 

Quem fala não sou eu. É a Sabrina de Julia Ormond (“Sabrina”, 1995), com a qual já me encontrei seguramente pelo menos cem vezes, e que agora reencontro mentalmente sempre que faço uma dessas long walks por aqui. 

Flores num dos marchés do 12e.

Alimentando as gaivotas do Jardin de Luxembourg
Paris é cidade talhada à promenade. Os jardins sempre floridos – mesmo com a agora constante queda da temperatura – convida-nos a ganharmos as ruas, assim como os marchés a céu aberto, presentes em todos os quartiers, os estupendos bulevares haussmanianos, triunfos da engenharia de meados do XIX, e as ruelas que os costuram, repletas de marcas de um passado muito recuado. Restos da cidade primordial e medieval ainda perduram na Île de la Cité, como paredes de igrejinhas e árvores quadricentenárias. Saindo dali pela Pont de l’Archevêché, em direção à rue Monge, lá para as bandas do Quartier Latin, o Boulevard Saint Germain quase que dá as mãos às Arénes de Lutece, centro de diversões da Paris (ainda “Lutécia”) do século I - o monumento da cidade moderna a dois passos do monumento da cidade antiga; isto é Paris.
Quem preferir seguir os passos de Sabrina, como eu fiz domingo passado, pode saltar no metrô Gare d’Austerlitz, em direção ao Sena, e caminhar por ele. Nem é preciso de mapa. Cerca de um quilômetro e meio de graciosas lojinhas de livros e postais antigos, de lindas pontes, de weeping willows debruçados sobre o rio, de músicos de rua e de um rio iluminado separam a Pont d’Austerlitz do fim da Île de la Cité. O marco físico é a Pont Neuf, a primeira da cidade. Se mais alguém além de mim desejar conhecer o quartier de Sabrina, é só seguir mais uns 200 metros até depois da Pont des Arts e dobrar a Rue Bonaparte. A primeira travessa à esquerda é a Rue de Beaux Arts, ruela repleta de antiquários. No n. 13, residência da moça, funciona o hotel onde Borges constantemente se hospedava, e onde morreu Oscar Wilde... 

13 rue de Beaux Arts
Sabrina habita Saint Germain, um dos quartiers mais valorizados de Paris, a 500 metros do Boulevard e uns poucos passos mais da Église de Saint Sulpice e do Jardin de Luxembourg. Pergunto-me como a filha do chofer poderia pagar por isso... 
"Sabrina"
Mas continuemos a segui-la, agora até o seu trabalho. Saindo da Rue de Beaux Arts, novamente em direção ao Sena, cruzamos a Île de la Cité pela Pont Neuf, até o Hôtel de Ville – o mesmo em que ainda acontece a exposição “Paris vu par Hollywood”. Uns poucos passos mais pela rue du Rennard e chegamos ao Centre Pompidou, cuja fonte modernosa serviu de cenário para um dos ensaios da Vogue, revista na qual a moça trabalhava. É lá que ela conhece o fotógrafo que a ensina a enxergar Paris pelos olhos da  câmera, e a ajuda a reconfigurar o seu olhar para o mundo. 
Fonte do Centre Pompidou, hoje

"Sabrina"
Sabrina paulatinamente deixa de ser a jovenzinha acanhada que morava sobre a garagem e sobre as árvores dos Larrabees, sempre apartada dos acontecimentos, para se tornar a mulher plenamente imersa na cidade cosmopolita, agora sua passarela, sua tela, seu tema. No ensaio fotográfico que tem como cenário a Tour Eiffel ela já enverga o hábito da parisiense típica, terninho e sapatos pretos e camisa branca, sobriedade e elegância a toda prova. Sob a chuva fina, também tão constante por aqui, preparará o parisianíssimo set para os amantes temas no ensaio: a névoa, o guarda-chuva e a echarpe vermelha solta ao vento – ponto de sedução em meio à reinante sobriedade ambiente. Sob os céus de Paris, a chofer’s daughter encarna cada vez mais as personagens glamourosas que ajuda a produzir para a Vogue
De volta ao apartamento de Saint Germain, a jovem que aprendera a enquadrar fotograficamente a cidade coloca diante da objetiva o filtro cor-de-rosa de Edith Piaf – que é surpreendentemente o filtro natural de Paris, mesmo de noite, mesmo de madrugada, mesmo sob a névoa desses dias cada vez mais frios. 

Across the street, someone is playing “La Vie en Rose.”. They do it for the tourists... but I’m always surprised at how it moves me. It means seeing life through rose-colored glasses. Only in Paris, where the light is pink... could that song make sense... 

Torre vista da altura da Pont Bir-Hakein
Sabrina escreve para o pai, mas suas palavras são, agora, também um pouco minhas. 
Descobri-me, em Paris, uma exímia escrevinhadora de cartas, uma ouvinte apaixonada de Piaf, uma fã entusiástica das longas promenades – a do domingo passado refez o trajeto do Sena, da Passerelle Simone de Beauvoir, ao lado da Cinemateca, até a Rue des Eaux, um pouco depois da Tour Eiffel, passando por um Jardin de Tuileries em festa, com direito a algodão doce e a roda gigante. 8,5 quilômetros de um rio luminoso e de gente entusiasmada andando de bicicleta, patinetes, patins, a pé. 
Quanto meus passos não se devem à “Sabrina”, que vejo religiosamente desde menina, quando a única viagem que podia fazer por Paris era a proporcionada pelo cinema? A cidade vivida em sonho durante tantos anos continua, para mim, a ser uma cidade mais ou menos sonhada, vista com olhos moldados pelo cinema...


terça-feira, 13 de novembro de 2012

Sobre Ladies e Frankensteins: a gênese do cinema mapeada em “Quando Paris Alucina” (1964) e “Frankenweenie” (2012)


“Paris vu par Hollywood” continua no Le Champo, para meu deleite e meu desespero. Como resistir a Audrey Hepburn? Ainda mais a uma Audrey Hepburn multiplicada em Holly Golightly, Eliza Dollittle, Sabrina?... O filme é “Paris when it sizzles”, comédia hilária e inteligente dirigida por Richard Quine. A porção moderna da Paris cinematográfica fica por conta da mais nova criação de Tim Burton, artista por quem os franceses têm devoção – restos da exposição que a Cinemateca Francesa lhe dedicou no primeiro semestre do ano ainda podem ser encontrados na lojinha do local. Dois filmes aparentemente tão dessemelhantes podem, quando vistos em sequência na grande tela da cidade, fazer emergir suas insuspeitadas analogias...


O viés de análise não pode ser outro que não o da metalinguagem. 
O cinema americano fala sobre si desde antes de se mudar para Hollywood. Pearl White deseja tornar-se atriz (em “The Perils of Pauline”, 1914); lá está a câmera da Pathé americana a registrar a heroína diante das câmeras da ficção, para o filme ficcional apresentado dentro do mundo real criado pela série. Década e meia mais tarde, a personagem de Marion Davies trilha caminho semelhante (em Show People, 1928): na Hollywood já então plenamente “máquina de sonhos”, a personagem da aspirante a atriz contracena com os Chaplin, Pickford, Fairbanks “reais”. Não há limites entre a ficção e a realidade que a capital do cinema não possa transpor vitoriosa, plenamente apta a seduzir o público com as ficções que constrói ao mesmo tempo em que lhes mostra que tudo não passa de ilusão. 

Em 1964, nos últimos suspiros do star system – no “crepúsculo dos deuses”, como tão bem Edgar Morin denomina o período –, Audrey Hepburn e William Holden juntam-se, como dez anos antes o fizeram em “Sabrina”, para provarem dialeticamente que Hollywood ainda continuava a vender os melhores alimentos para o espírito. A velha fórmula de “filme dentro do filme” é levada ao paroxismo nesta obra que coloca em primeiro plano o engendramento do ato de se produzir mercadorias de sucesso para a tela grande. Sem nenhuma vergonha, Hollywood sublinha-se aqui como máquina de fazer não só sonhos, mas também dinheiro. Um filme desse tipo dificilmente sairia dali dez anos antes, quando tudo ainda eram flores. 
William Holden é Richard Benson, o roteirista boa-pinta que, segundo ele próprio, é o perfeito exemplar de sua classe: ao receber 16 semanas de salário para escrever um roteiro, “como qualquer roteirista que se preze” passou as primeiras 15 a esquiar na Suíça, a veranear em Saint Tropez, a jogar em Monte Carlo, etc. Da última, restam-lhe apenas um par de dias para que ele se cure da bebedeira e indolência eternas e entregue o produto pelo qual foi pago. Para isso, emprega Gabrielle/ Audrey Hepburn. 
O artifício do studio system, de transformar a atriz num contínuo leitmotiv a repetir variantes do mesmo tema, é aqui explicitado e ironizado. Holden paga tributo ao seu charmoso David Larraby de “Sabrina”. Audrey é súmula de todas as suas ingênuas inesquecíveis. Ao botar os olhos na bela e vivaz taquígrafa, euforicamente apaixonada por Paris, o roteirista enfronhado na indústria de Hollywood se põe a imaginar entrechos convencionais para seu filme: as cenas de aventura, perseguição, enlace e desenlace amoroso já gastas. 
Entrechos dos quais a jovem rapidamente torna-se a personagem principal. Entrechos perigosamente semelhantes àqueles já rodados pela atriz que, na película, dá vida a Gabrielle. “Quando Paris Alucina” realiza, no nível do chiste, aquilo que a Hollywood clássica – a crepuscular Hollywood clássica – exercera durante todo o tempo em que fora potência: promove o intercâmbio entre persona e personagem no intuito de criar os mitos sem os quais a gente até hoje não pode viver... (Edgar Morin comprova-o no seu ótimo “As Estrelas: mito e sedução no cinema”, que me assombra há dias, como os leitores estão vendo). 


"Frankenweenie" segue caminho semelhante. No entanto, como os tempos são outros, sua ironia mescla-se a uma graciosa nostalgia. Os letreiros dependurados sobre o vale, que anunciam a cidade aos visitantes; a opção pelo branco e negro em detrimento do colorido; a sintaxe do filme de horror dos anos 30-50, que estende seus domínios para o desenho dos personagens, dos cenários, das sequências; os nomes dos personagens. Tudo é tributo à Sétima Arte. 
As referências ao cinema clássico multiplicam-se. Senti por conhecer tão pouco o gênero homenageado. Os amantes dos filmes de horror da época, já tão bem apanhado em Ed Wood (1994) – meu Burton favorito –, vão se divertir em listar as obras relidas pelo diretor. 
O cachorrinho ressuscitado numa experiência tão sinistra quanto tocante pelo menino cientista, Frankenstein de quatro patas, vira herói da cidadezinha de New Holand (New Hollywoodland, ressurreição do mito em plena era digital, que tornou possível um resultado tão esteticamente perfeito?) ao salvá-la de gigantescas criaturas que nada devem aos extraterrestres da “Guerra dos Mundos” (1953) ou ao símio de “King Kong” (1933). Ganha uma noiva, no final. Mas não qualquer noiva. A noiva do Frankenstein canino ostenta o mesmo penteado da sua contraparte no mundo “real”. 



Happy End
 

O “The End” que fecha “Frankenweenie”, formado pelos rabinhos das duas criaturinhas peludas, nos remete ao mundo do cinema clássico – mundo feito de irreal realidade, como mostra Morin. 
Já a Audrey/Gabrielle/Holly/ Eliza/Sabrina e o William Holden/Richard Benson/David Larraby de “Quando Paris Alucina” explicitavam, teórica e praticamente, no fecho do filme, que tipo de história o público da época desejava ver nas telas. Uma que terminasse com final feliz, com a câmera enquadrando os dois rostos lindos e muito bem pagos das duas estrelas de cinema, as quais dariam o tão esperado beijo, responsável por vender a pipoca e fazer os milhões pipocarem... 
“Quando Paris Alucina” é um dos últimos sopros do star system. Junta todo o cabedal do cinema clássico contra um inimigo declarado, a nouvelle vague, “aqueles filmes nos quais nada acontece”, como afirma Gabrielle entre suspiros lamentosos. 
Há Paris, há Audrey e Holden – duas das principais estrelas do cinema americano –, o colorido, os vestidos, o agito das festanças e das perseguições frenéticas, e muitos, muitos acontecimentos a convergirem para a tal cena que vende a pipoca – cena que ratifica o amor eterno entre o par romântico. Nunca Hollywood precisou se explicar tanto antes de fazer seus protagonistas se beijarem no final da película. Nunca antes misturara tão bem acidez e homenagem a um tipo de cinema que nutrira por década o corpo e a alma dos espectadores. “Paris when it sizzles” é, mesmo, prova contumaz de que a capital do cinema enfrentava drásticas mudanças. 
Seria o filme de Tim Burton outro ponto de inflexão na história do cinema americano, como foi o de Quine? O Oscar a “O Artista” patenteia que a ode ao cinema clássico é a nova onda do cinema. Morin de novo: “no instante em que o star system morre, a estrela, que também julgávamos morta, adquire essa sobrevivência que em arte se chama afortunadamente imortalidade. (...) As estrelas de cinema atravessam os anos-luz.” (p. 135) 
Como o principal oscarizado desse ano, tanto o filme de Quine quanto o de Burton constroem o enredo ao redor do ato de fazer filmes. Vi o último com uma amiga, Raquel Vandelli, que sublinhou com argúcia a metáfora mais geral sobre a qual ele se sustenta: o cachorro-Frankenstein é o próprio cinema, feito do recorte e da costura de outras artes. Recorte-cola que se dá no âmbito material, mesmo, podemos acrescentar, já que é a decupagem a responsável por construir esse cinema homenageado, tão amado. Oxalá a recarga de energia que o estimado animalzinho de “Frankenweenie” ganha no desfecho converta-se em força para a própria arte, e que ele e ela sigam firmes e fortes por anos-luz... 


A Lê, competente editora do “Crítica Retrô”, querida como sempre, deu para este blog o selinho abaixo. Sou-lhe muito grata. Vou circulá-lo entre os blogs dos amigos, que ando lendo menos do que gostaria, infelizmente, mas pelos quais tenho grande respeito e carinho. Cada um deve circulá-lo para outros sete blogs. Se quiserem, ok?


Crítica Retrô, da Lê 
Jornalístico, de Maurette Brandt
As Tertúlias, de Ricardo Leitner
O Falcão Maltês, de Antonio Nahud Júnior
Sublime Irrealidade, de José Bruno da Silva
Cinema cem anos-luz, de Marcelo C. M.