Aqueles que visitarem os quatro musicais protagonizados por Judy Garland e Mickey Rooney entre os anos de 1939 e 1943, acumularão do passeio uma inesperada carga de conhecimento.
Quando foram escalados pela primeira vez como co-protagonistas, o casal de stars que rapidamente se tornaria unanimidade mundial tinha 15 e 17 anos, respectivamente. A meninice da dupla concorda com os enredos à primeira vista inanes que a MGM preparou para eles: eram um casal de namorados (ou viviam um amor platônico; ou então um vivia um amor não correspondido pelo outro) que desejava avidamente ingressar no show business e, portanto, uniam forças com a molecada da redondeza para organizar um espetáculo no celeiro mais próximo. A simplicidade das tramas cativou o público, tanto que a expressão “Mickey and Judy putting on a show!” virou mantra nas bocas dos moviegowers da América do Norte – e, por tabela, do restante do mundo.
A simplicidade, no entanto, está só na aparência. Considerando-se o tanto de musicais rodados em Hollywood, “Babes in Arms” (1939), “Strike up the band” (1940), “Babes on Broadway” (1941) e “Girl Crazy” (1943) são joias raras, não só porque somam roteiros bem amarrados a ótimas interpretações e a excelente música, mas porque trazem para debate questões fundamentais daqueles tempos, como por exemplo aquela que dizia respeito ao papel dos Estados Unidos no concerto cultural e político mundial. E o trazem com uma impressionante suavidade, o que certamente não é traço característico da Meca do Cinema, que impingiu nos espectadores dos tempos das Guerras uma infinidade de patriotadas de curta validade.
A visita a esse material tornou-se ainda mais deleitosa nos últimos anos, graças à “Ultimate Collector’s Edition” dos filmes colocada no mercado pela Warner Home Video. Aliás, faz tempo que estou para comentar o quanto essas edições cuidadosas de preciosidades da sétima arte foi fundamental para que se redefinisse o modo como elas passaram a ser apreendidas. Tony Curtis definiu bem a coisa nos extras de “Quanto mais quente melhor”: “o DVD elevou a estatura do espectador”, ele disse. Até uns 10 anos atrás, não era incomum que películas fossem editadas para que coubessem no infame espaço de 2 horas oferecido pelas fitas de vídeo. Era, então, praticamente impossível que um VHS oferecesse informações extras sobre a obra. O Digital Video Disc sanou o problema, pois abriga virtualmente qualquer quantidade de informação. Dizendo em outras palavras, e a partir de um exemplo pessoal: se “Singin’ in the rain” me ensinou a amar o gênero musical, a edição dupla do filme em DVD distribuída pela Warner acabou tendo papel fundamental na definição de minha escolha profissional. Se eu não tivesse tido acesso àquela fartura de material de arquivo que palmilhava de modo tão apaixonante as referências do filme de Gene e Stanley Donen, eu não teria me interessado tão intensamente nem por teatro, nem por cinema.
Com o tempo, essas edições tornaram-se cada vez melhores.
A da “Mickey Rooney & Judy Garland Collection”, além de reconstruir para os espectadores novos a experiência cinematográfica que tinham os antigos – já que oferecesse em cada DVD um desenho, um curta-metragem e o filme, elementos que compunham os programas dos cinemas dos anos 30 e 40 – introduz elementos que tornam ainda mais complexa a fruição do público contemporâneo: entrevistas com estudiosos da área, trailers, imagens da produção. A surpresa fica por conta de Mickey Rooney que, da altura de suas 9 décadas de entertainer, aprofunda com pertinácia aspectos dos filmes, traçando uma ponte que liga passado e presente. Os interessados não vão passar incólumes pelo velhinho nostálgico que mudou tão pouco nos últimos 70 anos, mantendo ainda o ar de afabilidade que dava para seus personagens, elemento que o fez amado por tantos.
Vendo as fitas, salta aos olhos a tríade que apontei no título: juventude, guerra e jazz-band. Vou, a partir de agora, passear por eles para ensaiar uma explicação de como isso se dá:
Juventude
Não há como discutir os musicais de Judy & Mickey sem se pensar no contexto em que foram produzidos. Eles pertenciam a um gênero já bem codificado na época (e do qual a MGM era perita), o musical, e saiam de dentro do studio system, portanto, reafirmavam a persona artística de seus stars e as características que o musical de Hollywood construiu desde o início do cinema falado. Quando "Babes in Arms" (“Sangue de artista”, o único dos filmes lançado em DVD aqui) começa a ser exibido, Judy Garland havia acabado de dar corpo à Dorothy.
A estrela era Mickey Rooney, indubitavelmente o centro em torno do qual gravita a ação da película. Se a MGM ainda precisava construir a personagem “Garland”, Rooney já estava mais que formado – tanto que, naquele 39, ele dividiu com Bette Davis o topo do box-office de Hollywood. Prova cabal do sucesso do rapaz era o fato de ele encabeçar a série Andy Hardy (Judy chega a interpretar um papel coadjuvante num dos filmes da série, "Life begins to Andy Hardy"), na qual desempenhava o filho do juiz James Hardy, interpretado por Lewis Stone (conhecido do público desde meados dos anos de 1910). Portanto, Mickey repete em “Babes in arms” o tipo que o fez amado das plateias. Mais que isso, seu Andy Hardy parece saltar das películas da família Hardy diretamente os musicais, traçando a linha de continuidade tão ao gosto da Hollywood clássica, que faz os personagens de um mesmo artista se remeterem uns aos outros como se ator e personagem tratassem-se das mesmas pessoas. A identificação fica clara em “Babes in arms”, em que a personagem de Mickey leva o próprio nome dele e repete características que definem a personalidade de Andy Hardy: por exemplo, o respeito que vota às tradições familiares e o desejo de se descobrir e de encontrar seu lugar ao sol como homem.
Embora a moldura mude, os valores continuam os mesmos. Em ambos os veículos o público flagra o paulatino desabrochar do menino em homem. A trajetória é cheia de dificuldades. Sua transposição é apenas possível se se aliar a ousadia da juventude à firmeza das gerações mais velhas. Em Andy Hardy, as “conversas sérias” que o menino tem com o pai são fundamentais para que ele aprenda valores como a importância do estudo aliado ao trabalho, de se respeitar os familiares, a namorada e os amigos. Em “Babes in Arms”, Mickey pode ser vivaz e talentoso, mas apenas conseguirá se firmar como ator/compositor de teatro se aceitar trocar figurinhas com o pai – artista de vaudeville jogado para escanteio pelo público com a penetração do cinema:
Tolhido pelos espetáculos datados colocados em cena pelos pais e demais conhecidos da velha guarda, Mickey decidirá ele mesmo montar seu show, junto com a namorada e as crianças filhas dos artistas das redondezas. Pergunto-me o quanto disso não mimetiza a relação que na época se estabelece, nos Estados Unidos, entre a velha tradição e os novos valores. No campo político, aquele 1939 fechava um decênio de Depressão. Precisava-se caminhar rumo ao futuro sem se deixar de lado as lições dadas pelo passado. No artístico, era um decênio importante para estabelecimento da jovem música americana (o jazz, o blues, o swing) sobre a tradicional música europeia; época em que o cinema de Hollywood ainda era mundialmente próspero (dificuldades começaram a surgir com a 2ª Guerra, que encurtou o mercado consumidor de fitas); época em que o jovem Estados Unidos começava a se definir como potência mundial ao lado de antigos países da Europa. Mickey & Judy tornam-se retratos da juventude americana e, em última instância, retratos da própria América (do Norte). Seus finais felizes conseguidos com esforço e talento, ao mesmo tempo em que respeitam a convenção do gênero musical, metaforizam o lugar que os EUA se via no direito de ocupar no mundo.
Guerra
Até outubro de 1939, quando “Babes in Arms” é lançado, os Estados Unidos ainda não haviam se envolvido na 2ª Guerra. Seu envolvimento objetivo deu-se em março de 1941, quando passou a fornecer armamentos aos aliados. No entanto, meses antes verbalizou seu apoio à Inglaterra. É também de forma sutil que se dá a menção à grande conflagração em “Strike up the band”, cuja premiére ocorreu em setembro de 1940. Na fita, acompanhamos a tentativa de James (Mickey) e Mary (Judy) de conseguirem verba para viajarem a N.Y. no intuito de se apresentarem num concurso de novas bandas presidido pelo consagrado band leader Paul Whiteman.
Para isso, a dupla encabeça o elenco de um melodrama-cômico-musicado do qual participam seus amigos de colégio e companheiros de banda. O espetáculo é um sucesso – para o nosso próprio benefício, já que “Nell of New Rochelle”, o tal melodrama, é uma delícia de se ver. No entanto, o clímax é o número musical que a personagem de Mickey conduz no programa de rádio de Whiteman, quando lidera uma big-band de mais de uma centena de integrantes. A apresentação é composta por um medley do qual fazem parte as canções “Strike up the band” (Gershwins), “Drummer boy”, “Do the la conga” (Edens) e “Our love affair” (Edens, Freed). A primeira delas abre e fecha o número, servindo de acompanhamento à tomada final: o primeiro plano dos rostos de Judy & Mickey fundidos à bandeira dos Estados Unidos. Estabelece-se, então, uma relação de sinonímia entre Mickey – o líder da banda vitoriosa, responsável por conduzir a batuta no programa de Whiteman –, e o líder do país, a quem caberá conduzir os soldados em direção à vitória. O número é majestoso, misturando a parafernália das bandas marciais (clarim, tímpano); os instrumentos do jazz-band – que são multiplicados para se adequarem à dimensão de orquestra do conjunto (observem o fotograma abaixo); e instrumentos comuns às orquestras europeias, como a harpa.
"Strike up the band": o plano de conjunto apresenta monumentalidade semelhante à requerida por uma ópera de Wagner.
A ironia está no modo como o uso dessa canção aqui subverte sua função original: “Strike up the band” é a música-título de um musical da Broadway (de 1927) que satirizava a guerra e as canções militares. No filme, em contrapartida, ela serve para reafirmar o éthos guerreiro dos norte-americanos, convidando sutilmente o povo a unir forças em prol da vitória dos aliados. Para isso, os versos foram modificados. O que no original era “There is work to be done, to be done”/ “There's a war to be won, to be won”/ “Come, you son of a son of a gun,”/ “Take your stand” (reparem no “son of a gun”, achado linguístico típico de Ira Gershwin, que num só tempo faz referência ao insulto e faz pilhéria da inclinação que os americanos desde sempre tiveram pelos conflitos armados) no filme fica assim:
Yankee doo doodle-oo, doodle-oo
We’ll come through Yankee doo, doodle-oo.
For the red, white and blue, doodle-oo
Lend a hand
O público contemporâneo ao filme entendia o “Yankee doo doodle-oo” como referência à canção patriótica composta por George M. Cohan, artista de teatro responsável por insuflar patriotismo no povo durante a Primeira Guerra (e que, em 1942, ganharia a biografia cinematográfica “Yankee Doodle Dandy” – “A canção da vitória”, protagonizada por James Cagney). Numa tradução livre e pobre: “Ianque, nós vamos superar isso. Dê uma mão ao vermelho, branco e azul (ou seja, às cores da bandeira), ianque”. Embora a patriotada vá na direção oposta a que queriam os Gershwin, o tom do número é abrandado com a entrada de outros ritmos. Rápido a batuta volta para o band-leader e o “homem com a batuta da mão” torna-se menos o líder da nação e mais o maestro da banda: “And you can’t go wrong/ With a happy song/ Hey leader strike up the band”. A escolha me parece glosar a situação dos Estados Unidos, que naquele final de 1940 ainda não apoiava abertamente a guerra. Ela vale a visita pelo modo grandioso como constrói na película o lugar que os EUA tomavam no concerto mundial:
Quando “Babes on Broadway” estreou, no último dia de 1941, o país já estava com os dois pés na 2ª Guerra (Pearl Harbor foi atacada pelos japoneses em 7/12/41). No entanto, embora seus dois protagonistas tivessem sido explicitamente envolvidos na venda de war bounds, a película traz a guerra com uma sutileza que a afasta das produções do período. O par romântico, agora em Nova York, se esforça para montar um show de rua que o permitirá arrecadar dinheiro para alugar um teatro. O evento casualmente coincide com a chegada de um grupo de crianças fugidas da Inglaterra que, via rádio, se comunicará com os familiares que ficaram no Velho Mundo. As boas-vindas são dadas pela personagem de Judy, que transforma a graciosa canção patriótica “Chin Up, Cherrio, Carry on”, composta por Lane e Harburg, numa obra-prima da sensibilidade. Embora o filme se despeça rapidamente do assunto amargo, o episódio deixa um gosto muito mais duradouro de beleza e de melancolia do que as fitas estritamente patrióticas rodadas no período.
Jazz-band
É minha parte preferida, então será a mais longa (espero não desapontar quem aguentou até aqui). O sub-item tem que começar com uma referência à excepcional mini-série em dez capítulos “Jazz” (2001), uma das principais culpadas desse post, já que me deu elementos para entender um assunto que eu não sabia muito bem por onde pegar.
“Jazz” analisa o nascimento e a penetração desse moderno gênero musical de origem negro-americana nascido em New Orleans em fins do século XIX e bastante difundido após a Primeira Guerra Mundial. Sua história se confunde com a história cultural norte-americana – e com a nossa própria cultura, já que fomos tão vorazes consumidores da música popular americana durante o século XX quanto fomos consumidores da música europeia no XIX.
O 4º capítulo do documentário apresenta uma formulação preciosa: a big-band foi criada nos Estados Unidos para confrontar a sinfonia nascida na Europa. Não por acaso, compositores americanos que almejavam dar estatura à arte de seu país compunham para as big-bands misturando elementos de música clássica (de origem europeia) e de jazz: A “Rhapsody in Blue” (George Gershwin, 1924) foi primeiramente executada pela jazz-band de Paul Whiteman. Sua premiére, contam, teve na plateia nomes consagrados da música clássica, como Stravinsky e Rachmaninov.
A mistura entre clássico e popular virou marca registrada dos Estados Unidos. A começar pela própria adaptação para o cinema de textos clássicos da literatura – se o país não foi pioneiro nesse trabalho, fez disso literalmente uma arte.
Quanto à música, entre os anos de 1910 e 1920, época em que Louis Armstrong codificou o jazz, o ritmo americano se espalhou ao redor do mundo, passando a servir de metáfora da sociedade contemporânea – tão vertiginosa quanto ele. Logo, brancos e negros o tocavam – uns separados dos outros nos EUA, como pedia a lei de segregação racial. Ganhou as páginas da literatura, defendido por escritores do calibre de Scott Fitzgerald, e mais um pouco não precisava mais pedir licença. Exemplo bem acabado da miscigenação é o clássico de 1934 “You’re the top” (que na minha humilde opinião é a música mais genial criada nos EUA), em que Cole Porter coloca lado a lado e sem hierarquizar a cultura erudita europeia e a cultura popular americana: You’re the top/ You’re the Coliseum/ You’re the top/ You’re the Louvre Museum/ You’re a melody from a symphony by Strauss/ You’re a Bendel Bonnet (loja americana vendedora de acessórios)/ A Shakespeare sonet/ You’re Mickey Mouse – e aí vai, chegando o compositor a rimar “rosa” com “nariz” (rose/nose) e “Dante” com (Jimmy) “Durante”, numa deliciosa ousadia.Nos filmes musicais, Hollywood escolhe o caminho da metalinguagem para analisar o lugar que a cultura dos EUA ocupam no mundo. Acerta em cheio, considerando-se o potencial de circulação que tem seu produto. Exemplos não faltam. Eu poderia começar falando do curta-metragem “Heavenly music” (1943), que narra de um modo deveras escolar (e, portanto, aborrecido) a chegada de um band-leader no céu e os argumentos que lança aos compositores europeus (Wagner, Liszt, Strauss) para provar que sua arte é tão original (tão “celestial”, como diz o título) quanto à deles. Mas não vou: Judy e Mickey precisam voltar.
Os Garland & Rooney pictures são espaços em que a reflexão sobre a música norte-americana se dá de modo privilegiado. À medida em que vemos, nas películas, a paulatina transformação dos dois stars adolescentes em adultos, vemos também ser narrada a infância e a adolescência da arte norte-americana. A escolha da temática não é uma novidade para o gênero – filmes de bastidores explodiram desde o bem sucedido “Rua 42” (1933). Não por acaso, quem dirige os 3 primeiros filmes da série é Busby Berkeley, coreógrafo de “Rua 42”. No entanto, se há nos filmes de Garland & Rooney os exuberantes números musicais que abusam dos planos de conjunto para formarem imagens quase que caleidoscópicas, Berkeley inova ao transformar a série numa homenagem à arte americana:
“Babes in arms” (1939) começa com uma emocionante cena em que o ator de vaudeville apresenta-se enquanto que, nos bastidores, sua esposa dá à luz ao primogênito. No fim do ato, após descobrir que o parto foi bem-sucedido, compartilha sua felicidade com o público, recebendo aplausos por ambos os feitos. O teatro popular, que teve influência fundamental no desenvolvimento do cinema, ganha aqui sua justa homenagem. Uma homenagem de tons em grande medida biográficos, já que Judy e Mickey pertenciam ambos a famílias de artistas, tendo nascido e crescido entre os baús dos camarins e a agitação dos bastidores (em "Nasce uma estrela", Judy eternizaria a expressão "I was born in a trunk").
A família de artistas de “Babes in arms” é reapresentada uma dezena e meia de anos depois, depauperada pela grande Depressão e pelo desenvolvimento dos talking-pictures. Os responsáveis por salvá-la são os jovens, que injetam seiva nova à arte já datada dos pais: e exemplar nesse sentido é o “minstrel show” que apresentam ao final. Contextualizando brevemente, os “minstrels” são brancos que se pintam de negro para interpretarem canções de origem negra. Não sei historicizar o costume, mas acredito que ele descenda das restrições raciais impostas pelos Estados Unidos, que impediam negros e brancos de dividirem o palco. O costume rumou dos palcos para o cinema, sendo Al Jolson seu principal difusor. Dono de uma voz potente e perfeito domínio de palco, Jolson, que era em 1927 um dos principais artistas da Broadway, é convidado pela MGM para rodar aquele que seria o primeiro filme falado: “The Jazz Singer”. Olhem-no em cena, pintado de negro, cantando “Mammy” (Donaldson, Lewis, Young)
Al Jolson repete-se depois em outras fitas menos vigorosas, que valem mais enquanto documentos históricos que por suas qualidades artísticas. Sua arte é, todavia, decantada pelos musicais de Judy e Mickey, os quais injetam nela modernidade e vida ao atualizarem a orquestração e as frases melódicas das canções. Exemplo claro é a Judy fazendo a vez de uma morena sestrosa em “I’m just wild about Harry” (1921, Sissle, Blake).
Al Jolson repete-se depois em outras fitas menos vigorosas, que valem mais enquanto documentos históricos que por suas qualidades artísticas. Sua arte é, todavia, decantada pelos musicais de Judy e Mickey, os quais injetam nela modernidade e vida ao atualizarem a orquestração e as frases melódicas das canções. Exemplo claro é a Judy fazendo a vez de uma morena sestrosa em “I’m just wild about Harry” (1921, Sissle, Blake).
Em “Babes on Broadway” (1941) há uma sequência ainda mais sofisticada de um “minstrel show”, em que estão presentes elementos que dariam pano pra manga caso quiséssemos nos debruçar detidamente neles: um branco ocupa o centro do palco e organiza a apresentação de variedades protagonizada por negros, em que soam canções sulistas como “Oh! Susanna” (1848) e “Old Folks at Home” (1851) – essa última ganha de G. Gershwin e Caesar a maravilhosa paródia “Swanee” (1919) que dá o pontapé inicial na carreira artística do primeiro. Ainda preciso parar para pensar nas implicações racistas desse tipo de show, que reforçavam execráveis estereótipos.
Canções contemporâneas também ocupam espaço de destaque nos filmes da série. Compositores de sucesso na Broadway foram recrutados para levarem a moderna música norte-americana para as telas. E não só a música. “Babes in arms” dá título a um musical de teatro de Rodgers e Hart e, embora a trilha-sonora tenha recebido sensível modificação, no filme permanecem a canção título e “Where or when” – ambas eficientes, aquela porque ganha no filme uma eficaz coreografia que serve como rito de passagem dos jovens da infância para a vida adulta; esta porque inaugura os duetos românticos da dupla. Esta última é curtinha e merece ser vista, pois exemplifica com que perícia os dois artistas conseguiam criar situações românticas verossímeis (e eles ainda conseguiam isso 25 anos depois, como fica claro pela cena que a segue, do Judy Garland Show de 1963).
Canções contemporâneas também ocupam espaço de destaque nos filmes da série. Compositores de sucesso na Broadway foram recrutados para levarem a moderna música norte-americana para as telas. E não só a música. “Babes in arms” dá título a um musical de teatro de Rodgers e Hart e, embora a trilha-sonora tenha recebido sensível modificação, no filme permanecem a canção título e “Where or when” – ambas eficientes, aquela porque ganha no filme uma eficaz coreografia que serve como rito de passagem dos jovens da infância para a vida adulta; esta porque inaugura os duetos românticos da dupla. Esta última é curtinha e merece ser vista, pois exemplifica com que perícia os dois artistas conseguiam criar situações românticas verossímeis (e eles ainda conseguiam isso 25 anos depois, como fica claro pela cena que a segue, do Judy Garland Show de 1963).
Também aparecem nos filmes composições de George M. Cohan (o Yankee doodle dandy), Arthur Freed e Nacio Herb Brown (cujas canções compõem a trilha de “Cantando na chuva”), Harold Arlen e E. Y. Harburg (que compuseram a trilha inesquecível do “Mágico de Oz” e cujas carreiras em muitos momentos viriam a se cruzar com a carreira de palco e tela de Judy Garland).
Papel de destaque tem os irmãos Gershwin, que dão nome para dois dos quatro filmes da dupla, “Strike up the band” e “Girl Crazy” e são citados literalmente em “Babes on Broadway” na canção “How about you” (Burton Lane, Ralph Freed), lindo dueto romântico que só não ganhou o Oscar daquele ano porque competiu com “White Christmas”: I like New York in June. How about you?/ I like a Gershwin tune. How about you?...
No entanto, a arte dos Gershwin só foi plenamente aproveitada no último filme da série, “Girl Crazy” (1943), que leva para a tela prateada 7 números musicais da peça da Broadway acompanhados pela orquestra de Paul Whiteman - que na história se interpreta a si mesmo. A escolha dá unidade à película, que acaba também se destacando do conjunto porque deixa de lado a guerra – que àquela altura já era cantada numa infinidade de filmes. Além das músicas que rapidamente se tornariam clássicos – “I Got Rhythm”, “Fascinating Rhythm”; “But Not for Me”, “Embraceable You”, “Bidin' My Time”, “Could You Use Me?” –, o filme coloca o humor em primeiro plano, oferecendo a Judy Garland e Mickey Rooney a oportunidade de trabalharem num meio que conheciam desde a infância. Além disso, o público que viu a dupla crescer tem o prazer de encontrá-los aqui já maduros, desenvoltos no campo da música e da atuação. Judy Garland naquela altura havia perdido a "carinha de patinho feio" que cantara de modo tão tristonho anos antes, tornando-se uma bela mulher, bastante capaz de convencer na pele da moça que arrasa os corações de todos os jovens de uma universidade. E Mickey, na sua inegável versatilidade, circula com segurança pelos campos da comédia, da música e do drama.
Esse é o Garland & Rooney picture que mais se sustenta à prova do tempo, pois apela para o bom e velho humor ao invés de enxertar no roteiro a história cultural da América do Norte – história que hoje poucos conhecem e, portanto, não ganha muito sentido para o espectador. Não deixa de ser curioso que o ponto culminante da série esteja no filme que finalmente coloca em ação toda a enorme contribuição dos EUA no campo da música ao invés de discutir metalinguisticamente sobre ela: ou seja, os Gershwin e Paul Whiteman estão juntos, numa evidenciação dos caminhos que começaram a trilhar em meados dos anos 20, quando, com “Rhapsody in blue”, mostraram ao mundo que o caminho para a originalidade no campo da música estava na união entre o erudito e o popular.
*
As fotografias emolduradas em branco foram retiradas do portifólio da "Ultimate Collection"; a de Judy Garland lendo o jornal no qual figura a notícia sobre o encontro entre Hitler e Mussolini faz parte do livro que acompanha os DVDs; as demais imagens foram emprestadas de sites da internet.
29 comentários:
Adorei o post,bem elaborado.
Da hora teu blog heim.
parabéns.
Seguindo certo,me segue ai tbm.
http://hiphopactivistface.blogspot.com/
abçs
@Ativista2
Ativista, muito obrigada pelo comentário. Seu blog é muito bom - já o estou seguindo!
Abss e até mais.
Dani
Mas que delícia de postagem. Amei. Li e reli. Vibrei, me lembrei... Só faltou a "Conga" dos dois...
Mas eu a coloco aqui para voce...
http://tertulhas.blogspot.com/2009/10/la-conga-vamos-nos-divertir-com-judy-e.html
Foi uma postagem de 20/1o/2009....
Parabéns querida por este magnífico espaco tao recheado de informacoes deliciosas e escritas de uma forma tao maravilhosa, como só voce sabe! Chapeau!!!!!
Um beijo cheio de carinho e de admiracao nao só à tua pessoa como a este imenso talento!
Ricardo
Oi, Ricardo!
Querido, deixe-me agradecer pela leitura carinhosa que você fez do post. "La Conga" é o máximo (vou ler seu texto sobre o número). Gosto do uso que é feito dela no Finale, em que ela começa logo depois de "Strike up the band" - os motivos musicais de ambas ainda se misturando, o que dá leveza à propaganda bélica americana.
Bjinhos e bom domingo
Dani
Ah, Dani... Que blza de postagem, que viagem no tempo!!! Sinceramente, nunca tinha parado para prestar atenção a esses filmes antigos da Judy Garland... Como disse, filmes sobre a 2ª Grande Guerra me chamam a atenção
mas sempre vi os que foram filmados após seu término... “Chin Up, Cherrio, Carry on” é um PRIMOR e creio que eu nunca saberia o real motivo daquilo se tivesse visto sem passar pelo teu delicioso post antes!!!
“Mickey Rooney & Judy Garland Collection”, será que ainda se encontra fácil por aí??? Minha listinha virando a página, ehehehe...
Aquele bjão, tou indo ver a CONGA que o Ricardo indicou... PS: O Mickey ainda vive?????
Oie, Edison!
Fico feliz que tenha gostado! Há uns filmes muito graciosos da Judy adolescente. Além desses, todos os que ela fez com Mickey Rooney na série "Andy Hardy" são fofos. Mas essas coisas infelizmente não circulam por aqui, então o jeito é baixá-las da net ou então importá-las.
“Chin Up, Cherrio, Carry on” é lindo, não? Há inúmeros momentos especiais nos filmes. Difícil foi escolher quais colocar aqui. Dá uma olhada no "How about you?" (de Babes on Broadway), outro dos meus favoritos:
http://www.youtube.com/watch?v=KmBsS4WlNT0
O box com os 4 musicais surgiu nos EUA em 2007 e eu o paquerei desde então, deixando de comprá-lo porque ainda tinha esperanças de que ele saísse aqui, com legenda em português (na versão americana, os 3 primeiros filmes vêm com legendas apenas em inglês e o último, em inglês e espanhol).
Mas nosso mercado de clássicos é muito acanhado, então duvido que ele algum dia sairá (muito menos nessa coleção recheada de extras). Por isso, faz uns 6 meses eu o comprei na Amazon (por um preço bem interessante, diga-se de passagem).
Bjinhos. Ah, leia mesmo o post do Ricardo que você vai adorar!
Dani
Edison, esqueci de responder uma parte da pergunta. Mickey ainda vive - e ainda atua. Está agora com 90 anos, quase 91. É bom saber que ainda está entre nós um dos grandes artistas da Hollywood clássica.
Dani, que texto fundamental. O Mickey Rooney é um fenômeno pouco lembrado. Ele tinha uma energia única, uma explosão de sensações positivas, um evidente amor pela vida (e pouco sei de sua vida privada). A Judy também era cheia de luminosidade, mas ainda assim me passa uma certa melancolia.
Que bom contar com sua competência e sensibilidade, cara amiga. Vida longa para o seu blog!
Uma dúvida: Rooney e Judy não fizeram juntos 9 filmes?
Oi, Antonio!
E eu agradeço sua leitura do texto!
Concordo com tudo o que você disse sobre o Mickey. Como pessoa, ele é um personagem fascinante. Numa das entrevistas que fazem parte desse box, ele diz que queria ter trabalhado ainda mais, porque sua casa era o estúdio. Ele tinha (acho que ainda tem) uma energia tão intensa que precisava distribuir entre os personagens. Ele e Judy eram diferentes nesse aspecto, por isso se completavam e seus filmes são tão agradáveis de se ver. Ele sempre pende um pouco para a caricatura enquanto Judy injeta naturalismo e uma certa melancolia em seus papéis, como você muito bem lembrou. Isso, aliás, se vê bem nessa sequência maravilhosa do Judy Garland Show em que ambos fazem uma colagem dos filmes que fizeram juntos. Embora isso ocorra pelo viés do humor, a gente percebe a diferença nas personalidades artísticas.
http://www.youtube.com/watch?v=iip7u1LyL0I
Quanto aos filmes, até onde sei eles fizeram juntos 3 "Andy Hardys", esses 4 musicais, Words and Music e um anterior ao estrelato de Judy, Thorougbreds don't cry (de 1938).
Bjos e boa sorte com seu computador!
Dani
Só tenho duas palavras:
BLOG EXCELENTE!!
Gentileza sua, Close Up!
A propósito, acabei de acessar o seu e o achei o máximo. Você é um blogueiro bem dedicado, hein! Já o estou seguindo.
Bjs
Dani
Parabéns pelo blog, a leitura é ótima! Você disse que o filme "Sangue de Artista" (babes in arms) foi lançado em DVD aqui no Brasil? Por favor, me diga onde encontrar esse filme, pois o procuro há tanto tempo com legendas em português e ficaria muioot feliz em adquirí-lo.
Muito obrigado e espero que possa me ajudar!
Olá!
Obrigada pela visita!
Sobre "Sangue de artista", lembro-me de tê-lo visto anos atrás na Livraria Cultura, distribuído por uma dessas editoras bem pequenas (do tipo da Continental e da Silver Screen). Mas hoje dei uma busca nessa loja e em outras e não vi nem cheiro dele. Fiz uma busca brevemente na internet e descobri um vendedor de Niterói que comercializa o filme - provavelmente uma cópia dele. Acho que vale a pena entrar em contato com a pessoa. Segue o link dele.
http://www.quebarato.com.br/filmes-musicais-raros__361146.html
Volte mais vezes!
Abraços
Danielle
Leitor fiel e admirador do seu blog, que visivelmente faz um inteligente e bonito trabalho centrado no universo cinematográfico, escolhi-o para um PRÊMIO-SELO.
Juntamente com o prêmio seguem algumas regras: copiar e publicar o Prêmio-Selo no seu blog, destacar/premiar cinco blogs que admire – e que ainda não tenham recebido tal honraria - e avisá-los da premiação.
Sucesso!
O selo está no final da minha mais recente postagem: “A Difícil Vida Fácil no Cinema”.
Abraço bom,
www.ofalcaomaltes.blogspot.com
Que maravilha, Antonio! Obrigada! Logo logo posto o selo e meus indicados.
Bjs e até logo
Danielle
Oi, oi vai lá pegar o selinho do grupo de blogs clássicos. Peço que vc coloque em um post pra divulgar. Até lá:
http://blogsdecinemaclassico.blogspot.com/
Nossa, Dani, que matéria espetacular. Vc deve ter levado um tempo absurdo pra preparar, pq está muito bem escrito e fundamentado.
Olha só, eu vou pedir licença a vc e colocar isso (com os devidos créditos, claro) no cinemaclassico, certo?
beijo pra vc!
Oi, Carla!
Primeiro, muito obrigada pelas palavras! Fico muito feliz que esse texto tenha saído. Você tem toda razão: eu estava lutando com ele há alguns meses.
O curioso é que vi esses filmes uma vez no começo do ano passado e gostei realmente apenas do "Girl Crazy". Porém, como eu sou apaixonada por musicais e pelos protagonistas desse conjunto de filmes, decidi que tinha de entender a lógica deles. Quando os vi de novo - já embalados nessa coleção - eu já havia revisto os clássicos do Al Jolson, aí as coisas começaram a fazer mais sentido. A coleção traz, por exemplo, um curta metragem ficcional de Mickey e Judy vendendo war bounds (que foi apresentado na época, quem sabe até mesmo antes de um desses musicais); além de alguns detalhes sobre a escolha do repertório, diretores e roteiro dos filmes (sem, no entanto, tocar em nenhum desses três pontos que trouxe aqui).
O jazz foi a questão que desde sempre mais me atraiu. Por sorte encontrei essa série de documentários da qual falei - ela me ajudou a encaixar algumas peças.
Amanhã mesmo posto o selo e abro um post divulgando o grupo. Que ótima ideia vocês tiveram!
Bjs e até logo
Dani
Daniiiii! Adorei "Girl Crazy"!!!! É maravilhoso um filme bem leve e divertidamente animado pra continuar a semana... É difícil acreditar que o mundo estava em guerra... Nada deixa transparecer isso, imagino como deve ter sido essa situação... Percebo que vc é mesmo grande fã do Gershwin... A maioria dos filmes que vc indica tem alguma coisa a ver com sua orquestra... Realmente, é LINDO e irretocável!!! O Mickey Rooney me vezes gargalhar duas vezes e aquela risadinha da Judy Garland, na minha opinião, pode r ser considerada uma marca do filme... No mais, vc já falou tudo na sua resenha! Falta-me agora assistir aos outros dois filmes da dupla!!!! Aqueler bjão! Edison
Oie, Edison!
Menino, imaginei que você gostaria do filme. Fico feliz de ter acertado! O Mickey e a Judy estão divertidíssimos, né? E a Judy tá linda. Ela poucas vezes esteve assim bonita e, com o Mickey, ficava muito a vontade. O filme todo é adorável. Felizmente deixaram a guerra de lado nele - como, aliás, acho que os compositores gostariam que acontecesse.
Os Gershwin são demais. George era um músico incrível e Ira, um grande letrista. Quando se juntavam, arrasavam. Eu ando trombando neles muito ultimamente mesmo... Adoro muitos outros também. A música popular americana das primeiras décadas do século XX era incomparável.
Recomendo muito os outros filmes!
Bjinhos. Adorei que você passou aqui e deixou suas impressões.
Dani
É... Eu demoro mas passo sempre aqui agora... Tou ficando assíduo... Outro dia dei uma olhada em blogadas daqui antigas.... A hora passou e eu nem percebi... Bjão!
Ah, passei tb lá na tua entrevista... Vc nem viu, né???? Bjo!
Oie, Edison!
Ah, eu sempre adoro suas visitas e comentários. Sabe, não vi mesmo o seu comentário lá. Nem sonhava que mais alguém o tinha comentado. Vou passar lá agora mesmo!
Bjs
Dani
Olá Amiga , Muito Obrigado por sempre participar no meu site sobre AUDREY HEPBURN , agora também fiz um site sobre Judy e estou colhendo todas as infor dessa grande atriz . Adorei essa postagem pois estava procurando uma matéria completa sobre os dois , e a sua foi a melhor , gostaria de usar o seu maravilhosos texto sobre os dois e mudar o visual , mais não se preocupe pois lhe darei todo o credito como merecido Ok!
Beijos e abraços ...
Olá, colega!
Muito gentis suas palavras!
Pode sim utilizar o texto. Só não esqueça de indicar o link e meu nome, ok.
Abss
Dani
Que blog incrível! Adorei esse texto sobre os musicais da Judy e do Mickey. Sou viciada em filmes e sou muito fã da Judy Garland, e achei esse texto excelente!
Muito obrigada, Raissa. Fiquei feliz de verdade com suas palavras. Seja bem-vinda ao blog! Você vai encontrar a Judy aqui com frequência. Ela é minha musa!
Bjs
Danielle
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