“Paris vu par Hollywood” continua no Le Champo, para meu deleite e meu desespero. Como resistir a Audrey Hepburn? Ainda mais a uma Audrey Hepburn multiplicada em Holly Golightly, Eliza Dollittle, Sabrina?... O filme é “Paris when it sizzles”, comédia hilária e inteligente dirigida por Richard Quine. A porção moderna da Paris cinematográfica fica por conta da mais nova criação de Tim Burton, artista por quem os franceses têm devoção – restos da exposição que a Cinemateca Francesa lhe dedicou no primeiro semestre do ano ainda podem ser encontrados na lojinha do local. Dois filmes aparentemente tão dessemelhantes podem, quando vistos em sequência na grande tela da cidade, fazer emergir suas insuspeitadas analogias...
O viés de análise não pode ser outro que não o da metalinguagem.
O cinema americano fala sobre si desde antes de se mudar para Hollywood. Pearl White deseja tornar-se atriz (em “The Perils of Pauline”, 1914); lá está a câmera da Pathé americana a registrar a heroína diante das câmeras da ficção, para o filme ficcional apresentado dentro do mundo real criado pela série. Década e meia mais tarde, a personagem de Marion Davies trilha caminho semelhante (em Show People, 1928): na Hollywood já então plenamente “máquina de sonhos”, a personagem da aspirante a atriz contracena com os Chaplin, Pickford, Fairbanks “reais”. Não há limites entre a ficção e a realidade que a capital do cinema não possa transpor vitoriosa, plenamente apta a seduzir o público com as ficções que constrói ao mesmo tempo em que lhes mostra que tudo não passa de ilusão.
Em 1964, nos últimos suspiros do star system – no “crepúsculo dos deuses”, como tão bem Edgar Morin denomina o período –, Audrey Hepburn e William Holden juntam-se, como dez anos antes o fizeram em “Sabrina”, para provarem dialeticamente que Hollywood ainda continuava a vender os melhores alimentos para o espírito. A velha fórmula de “filme dentro do filme” é levada ao paroxismo nesta obra que coloca em primeiro plano o engendramento do ato de se produzir mercadorias de sucesso para a tela grande. Sem nenhuma vergonha, Hollywood sublinha-se aqui como máquina de fazer não só sonhos, mas também dinheiro. Um filme desse tipo dificilmente sairia dali dez anos antes, quando tudo ainda eram flores.
William Holden é Richard Benson, o roteirista boa-pinta que, segundo ele próprio, é o perfeito exemplar de sua classe: ao receber 16 semanas de salário para escrever um roteiro, “como qualquer roteirista que se preze” passou as primeiras 15 a esquiar na Suíça, a veranear em Saint Tropez, a jogar em Monte Carlo, etc. Da última, restam-lhe apenas um par de dias para que ele se cure da bebedeira e indolência eternas e entregue o produto pelo qual foi pago. Para isso, emprega Gabrielle/ Audrey Hepburn.
O artifício do studio system, de transformar a atriz num contínuo leitmotiv a repetir variantes do mesmo tema, é aqui explicitado e ironizado. Holden paga tributo ao seu charmoso David Larraby de “Sabrina”. Audrey é súmula de todas as suas ingênuas inesquecíveis. Ao botar os olhos na bela e vivaz taquígrafa, euforicamente apaixonada por Paris, o roteirista enfronhado na indústria de Hollywood se põe a imaginar entrechos convencionais para seu filme: as cenas de aventura, perseguição, enlace e desenlace amoroso já gastas.
Entrechos dos quais a jovem rapidamente torna-se a personagem principal. Entrechos perigosamente semelhantes àqueles já rodados pela atriz que, na película, dá vida a Gabrielle. “Quando Paris Alucina” realiza, no nível do chiste, aquilo que a Hollywood clássica – a crepuscular Hollywood clássica – exercera durante todo o tempo em que fora potência: promove o intercâmbio entre persona e personagem no intuito de criar os mitos sem os quais a gente até hoje não pode viver... (Edgar Morin comprova-o no seu ótimo “As Estrelas: mito e sedução no cinema”, que me assombra há dias, como os leitores estão vendo).
"Frankenweenie" segue caminho semelhante. No entanto, como os tempos são outros, sua ironia mescla-se a uma graciosa nostalgia. Os letreiros dependurados sobre o vale, que anunciam a cidade aos visitantes; a opção pelo branco e negro em detrimento do colorido; a sintaxe do filme de horror dos anos 30-50, que estende seus domínios para o desenho dos personagens, dos cenários, das sequências; os nomes dos personagens. Tudo é tributo à Sétima Arte.
As referências ao cinema clássico multiplicam-se. Senti por conhecer tão pouco o gênero homenageado. Os amantes dos filmes de horror da época, já tão bem apanhado em Ed Wood (1994) – meu Burton favorito –, vão se divertir em listar as obras relidas pelo diretor.
O cachorrinho ressuscitado numa experiência tão sinistra quanto tocante pelo menino cientista, Frankenstein de quatro patas, vira herói da cidadezinha de New Holand (New Hollywoodland, ressurreição do mito em plena era digital, que tornou possível um resultado tão esteticamente perfeito?) ao salvá-la de gigantescas criaturas que nada devem aos extraterrestres da “Guerra dos Mundos” (1953) ou ao símio de “King Kong” (1933). Ganha uma noiva, no final. Mas não qualquer noiva. A noiva do Frankenstein canino ostenta o mesmo penteado da sua contraparte no mundo “real”.
Happy End
O “The End” que fecha “Frankenweenie”, formado pelos rabinhos das duas criaturinhas peludas, nos remete ao mundo do cinema clássico – mundo feito de irreal realidade, como mostra Morin.
Já a Audrey/Gabrielle/Holly/ Eliza/Sabrina e o William Holden/Richard Benson/David Larraby de “Quando Paris Alucina” explicitavam, teórica e praticamente, no fecho do filme, que tipo de história o público da época desejava ver nas telas. Uma que terminasse com final feliz, com a câmera enquadrando os dois rostos lindos e muito bem pagos das duas estrelas de cinema, as quais dariam o tão esperado beijo, responsável por vender a pipoca e fazer os milhões pipocarem...
“Quando Paris Alucina” é um dos últimos sopros do star system. Junta todo o cabedal do cinema clássico contra um inimigo declarado, a nouvelle vague, “aqueles filmes nos quais nada acontece”, como afirma Gabrielle entre suspiros lamentosos.
Há Paris, há Audrey e Holden – duas das principais estrelas do cinema americano –, o colorido, os vestidos, o agito das festanças e das perseguições frenéticas, e muitos, muitos acontecimentos a convergirem para a tal cena que vende a pipoca – cena que ratifica o amor eterno entre o par romântico. Nunca Hollywood precisou se explicar tanto antes de fazer seus protagonistas se beijarem no final da película. Nunca antes misturara tão bem acidez e homenagem a um tipo de cinema que nutrira por década o corpo e a alma dos espectadores. “Paris when it sizzles” é, mesmo, prova contumaz de que a capital do cinema enfrentava drásticas mudanças.
Seria o filme de Tim Burton outro ponto de inflexão na história do cinema americano, como foi o de Quine? O Oscar a “O Artista” patenteia que a ode ao cinema clássico é a nova onda do cinema. Morin de novo: “no instante em que o star system morre, a estrela, que também julgávamos morta, adquire essa sobrevivência que em arte se chama afortunadamente imortalidade. (...) As estrelas de cinema atravessam os anos-luz.” (p. 135)
Como o principal oscarizado desse ano, tanto o filme de Quine quanto o de Burton constroem o enredo ao redor do ato de fazer filmes. Vi o último com uma amiga, Raquel Vandelli, que sublinhou com argúcia a metáfora mais geral sobre a qual ele se sustenta: o cachorro-Frankenstein é o próprio cinema, feito do recorte e da costura de outras artes. Recorte-cola que se dá no âmbito material, mesmo, podemos acrescentar, já que é a decupagem a responsável por construir esse cinema homenageado, tão amado. Oxalá a recarga de energia que o estimado animalzinho de “Frankenweenie” ganha no desfecho converta-se em força para a própria arte, e que ele e ela sigam firmes e fortes por anos-luz...
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A Lê, competente editora do “Crítica Retrô”, querida como sempre, deu para este blog o selinho abaixo. Sou-lhe muito grata. Vou circulá-lo entre os blogs dos amigos, que ando lendo menos do que gostaria, infelizmente, mas pelos quais tenho grande respeito e carinho. Cada um deve circulá-lo para outros sete blogs. Se quiserem, ok?
Crítica Retrô, da Lê
Jornalístico, de Maurette Brandt
As Tertúlias, de Ricardo Leitner
O Falcão Maltês, de Antonio Nahud Júnior
Sublime Irrealidade, de José Bruno da Silva
Cinema cem anos-luz, de Marcelo C. M.
9 comentários:
Tim Burton é persistente com relação a sua visão pessoal e nos só temos que agradecer.
Querida Dani,
Que beleza de ensaio, este! É mais do que uma crítica, é uma visão ampliada de questões super recorrentes e sempre atuais. Você, que sempre foi arguta e inteligente, em Paris está "alucinando", para metaforizar seu belo texto! Que você aproveite até o âmago tudo que esta fantástica cidade pode oferecer!
Assisti recentemente "Frankenweenie", encantada com misto de ironia, crueza e delicadeza de Burton, tão eloqüente, tão transparente em sua crítica impiedosa e terna aos mitos da sua própria sociedade, tão paradoxal e fascinante a seu modo. Os tributos são, inclusive, usados para reforçar isso, de várias maneiras. A inteligência e a sensibilidade de Tim Burton parecem inesgotáveis... Frankenweenie é absolutamente genial. Um beijo e viva Paris!
Maurette
Verdade, Marcelo!
Maurette, querida, é bem isso mesmo: "going absolutely ape" por aqui, como a Audrey em "Quando Paris Alucina".
Obrigada pelas palavras ao texto! A cidade é tão culturalmente borbulhante que não dá vontade de voltar pra casa, no final do dia... "Frankenweenie" é mesmo uma graça, nem parece que traz pra primeiro plano questões tão sérias, de tão leve que ele parece à primeira vista. Concordo contigo sobre Tim Burton - ele é muito insistente na sua visão da arte e do mundo, retrabalhando-a ao longo de seus filmes. E Audrey e Holden, eternos, não? Já vi "Quando Paris Alucina" uma dezena de vezes, mas ele nunca me pareceu tão interessante como agora...
Bjinhos. E viva Paris!
Dani
Adoro filmes metalinguísticos, mas ainda não vi Quando Paris alucina. Não sabia que Frankenweenie tinha referências clássicas, agora fiquei com vontade de ir ao cinema! Só você para enxergar semelhanças em filmes à primeira vista tão díspares.
Obrigada por retribuir o selo, também tenho muito carinho por você.
Beijos!
Oi, Lê!
Menina, então você vai curtir muito esses dois filmes. O de Audrey é um clássico esquecido - só não foi esquecido pelos franceses, que a amam e estão reapresentando este e outros tantos filmes dela semanalmente. Burton é aqui eficiente como sempre. E mais Burton do que no último filme dele, com Johnny Deep. Veja-o sim, e depois dê uma olhada no terror do passado. Estão passando por aqui "A criatura do lago negro", em alguns cinemas até mesmo em 3D (!). Vou dar uma olhada - sou tão falha nesse gênero...
Bjinhos
Dani
Dani,
Só hoje consegui ler o texto como deveria, eu já tinha o lido quando você o postou, mas foi em meio a uma correria sem tanto tempo para reflexão, por isso deixei a aba com ela aberta para ler quando estivesse em um desses momentos de ligeira calmaria.
Lendo-o novamente eu pude confirmar aquilo que já havia percebido e faço então coro com o que um dos colega disse acima, não é uma crítica é um ensaio, acho maravilhoso este ato de pensar o cinema através dos filmes, coisa que a crítica no geral deixou de fazer. Parabéns querida por este post maravilhoso!
Bruno, meu amigo, como você é gentil! Fiquei muito feliz com as palavras suas. Eu queria escrever um postizinho, mas acabei escrevendo essa coisa grande que pensei que ninguém leria :D
Não adianta, algumas coisas me assombram e eu preciso dar conta delas. Tentar dar conta, ao menos... Bem, Morin ajuda sempre. Edgar Morin, aliás, vivíssimo no seus 90 e tantos anos, morando aqui por perto - queria tanto trombar com ele por essas quebradas... Daria pra ele autografar minha cópia-xerox de "Cinema ou a invenção do homem moderno", que só deus sabe que diferença fez na minha vida.
Sabe, concordo contigo que pouca gente se digna a pensar os filmes hoje em dia - pensar cuidadosamente, ao menos. Os jornais abrem tão pouco espaço pra crítica cinematográfica e quem é que está mesmo interessado nela, né, nessa época de velocidade, de smartphones pequenininhos, tão inimigos de textos longos. Bem, eu continuo acreditando nos textos longos, e pretendo insistir neles, mesmo que tenha poucos leitores. Poucos mas bons, né?
Bjs e obrigada por parar pra comentar. Estou super em débito contigo e outros amigos, nas correrias daqui.
Dani
Querida, sempre me refiro à uma linha deste filme... na verdade já tanto a citei que até já me "apoderei" dela (mas ela nao é minha":
HOlden: "Voce já percebeu que My fair Lady e Frankenstein tem o memso roteiro?"
Brilhante, genial...
Voce anda sumida das "Tertúlias". Mas está desculpada... afinal nao se "mora" em Paris todo dia, né? Louc para te receber por aqui ( e o "aqui" nao se refere às tertúlias nao... :-)) Beijos Ricardo P.S. mamae estará aqui em marco!!! Voce vai conhece-la também!
Ah, Ricardo, você é que me chamou atenção para essa frase! Ela entrou no título do texto, mas acabei não a discutindo porque não consegui encontrar onde ela entrasse... Também acho a tirada genial! O monstro e a lady, mesmo opostos, obedecem a mesma regra de criação, ambos são frutos da vontade de alguém exterior, que lhes impõe com violência uma identidade. Pensar o ofício de se construir filmes por um viés semelhante é bem rico, né? Também as imagem ganharão o sentido que quer aquele que as monta.
Ah, como você eu amo esse filme! E vou visitá-lo logo logo, pode deixar, nas Tertúlias virtuais e na real! Março está combinado! Também quero muito conhecer a D. Neyde!
Bjinhos
Dani
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