segunda-feira, 31 de dezembro de 2012

Dessay, Legrand e a preparação da “Recette pour un Cake D'Amour” de “Peau d’Âne” (1970)


Vivendo intensamente minhas (re)descobertas francesas. 
Antes de tudo houve Natalie Dessay, a milagrosa Natalie, que conseguiu a proeza de transformar o tolo libreto da verdiana “A Traviata” numa obra-prima. Mas o maravilhoso acaso da descoberta ainda reservava surpresas. A soprano francesa passou o mês circulando a França ao lado de Michel Legrand, a cantar as canções por ele compostas ao longo de mais de 50 anos, para clássicos como “Os guarda-chuvas do amor” (Les parapluies de Cherbourg, 1964), “As donzelas de Rocheford” (Les Demoiselles de Rocheford, 1967), “Pele de Asno” (Peau d’Âne, 1970) e "Yentl" (1982). O necessário encontro com ela trouxe de bandeja a redescoberta de um dos mitos da música popular. Não podia ser melhor. Chuva de pétalas de rosas sobre a fronte de Natalie, a quem o blog se dedicará mais a contento brevemente (tapete vermelho já em fase de instalação)! 
No entanto, o assunto principal da postagem é um dos efeitos colaterais de Mme. Dessay, “Pele de Asno”, ou melhor, a receita do “Cake d’Amour” de “Pele de Asno”, episódio central do filme de Jacques Demy. 
Nada melhor para por fecho no ano que a preparação de um bolo de amor, no qual colocaremos todas as nossas melhores esperanças para o ano vindouro, e... Opa, chuva de clichés à vista; paremos por aqui antes que o leitor feche – com razão – a página, e vamos logo para a receita... Mas não sem antes dizermos umas palavrinhas sobre o filme. 
Michel Legrand e Jacques Demy engendraram, a partir dos anos 60, uma das mais frutíferas parcerias do cinema. Juntos, o músico e o letrista/roteirista/diretor promoveram uma leitura tipicamente francesa do filme musical norte-americano. Vistas de relance, suas películas nada devem às produzidas por Hollywood. O olhar atento revela a originalidade na tessitura das músicas, dos versos e uma maior liberdade na montagem. O resultado é a quebra das convenções que regiam os musicais americanos em direção à leitura bem-humorada das complexas relações humanas; a uma poesia risonha. 
A definição veste bem “Pele de asno”, cujo enredo foi baseado em fábula de Charles Perrault. Catherine Deneuve é a princesa repudiada pelo pai depois da morte da mãe. Uma promessa feita à esposa impede o rei de se casar novamente. Quererá o acaso que a mulher perfeitamente talhada para ele seja a filha, a quem ele pede em casamento anos mais tarde. 
A menina vacila, embora esteja mais que propensa a aceitá-lo como marido. A avó, uma fada, canta-lhe os graves preceitos morais que impedem a união: Mon enfant, on épouse jamais ses parents./Vous aimez votre père, je comprends./ Quelles que soient vos raisons,/ Quels que soient pour lui vos sentiments./Mon enfant, on épouse pas plus sa maman./ On dit que traditionnellement,/ Des questions de culture et de législature/ décidèrent en leur temps, qu'on ne mariait pas/les filles avec leur papa. (“Conseils de la fée de Lilas”). Canta-lhe esse assunto da maior gravidade e de forte sopro trágico no ritmo monotonal da língua francesa, por cima de uma melodia que mais se choca com os versos do que os envolve, promovendo como resultado final uma graciosa surpresa. 
Quando tomado no diálogo com a matriz americana, “Pele de Asno” revela-nos um punhado de outras surpresas. A princesa é obrigada pela avó a partir inesperadamente a um longínquo povoado, disfarçada como a emporcalhada criadinha Pele de Asno – depois saberemos que a avó queria mesmo era casar-se com o rei, que, neste sentido, por uma ironia do destino é obrigado a abrir mão da filha para se unir à sogra!... 
Reduzida ao trabalho braçal, Pelo de Asno divorcia-se das princesas sofredoras e passivas da tradição ao decidir que se casará com um príncipe, nem que precise sair ela mesma em sua busca (“Les insultes”). E depois de enredá-lo, ela, com uma encantadora assertividade, preparará para ele a famigerada “Recette pour um Cake d’Amour”, cujo papel fetichista é sublinhado pela crítica que tratou do filme. Aqui, deixaremos fetiches de lado para metermos a mão na massa literalmente. A partir de agora, o Cake d'Amour", versão "Filmes, filmes, filmes!". Mas primeiro, fiquem com a canção: 

 

Recette pour um Cake d’Amour versão Aline Vessoni e Danielle Crepaldi: 

Como viram no clip, Pele de Asno desdobra-se no seu alter-ego Princesa para preparar o doce. Eu precisava de ajuda, por isso convidei para a empreitada a amiga Aline Vessoni, que todos dizem ser minha irmã-gêmea perdida. Eu, responsável por preparar a receita, faria o papel da princesa. Ela, da mal-ajambrada Pele de Asno... 
Embora tenha reagido agressivamente a princípio (por que será?!...), Aline acabou por encampar a ideia. Aqui vocês a veem entoando a canção em falsete. Abaixo segue a receita/canção.

Préparez votre... préparez votre pâte 
Dans une jatte... dans une jatte plate 
Et sans plus de discours 
Allumez votre... allumez votre four.

Prenez de la... prenez de la farine 
Versez dans la... versez dans la terrine 
Quatre mains bien pesées 
Autour d'un puit creux... autour d'un puit creusé

Choisissez quatre... choisissez quatre œufs frais 
Qu'ils soient du mat'... qu'ils soient du matin frais 
Car à plus de vingt jours 
Un poussin sort tou... un poussin sort toujours. 

Un bol entier... un bol entier de lait 
Bien crémeux s'il... bien crémeux s'il vous plait 
De sucre parsemez 
Et vous amalga... et vous amalgamez. 

Une main de... une main de beurre fin 
Un souffle de... un souffle de levain 
Une larme de miel 
Et un soupçon de... et un soupçon de sel. 

Il est temps à... il est temps à présent 
Tandis que vous... tandis que vous brassez 
De glisser un présent 
Pour votre fian... pour votre fiancé 

Un souhait d'a... un souhait d'amour s'impose 
Tandis que la... que la pâte repose 
Lissez le plat de beurre 
Et laissez cuire une... et laissez cuire une heure 


Préparez votre, préparez votre pâte...: resultados do experimento 

Com todo o respeito, M. Demy e M. Legrand como cozinheiros são ótimos músicos. A mistura de quatro punhados de farinha, quatro ovos e uma cumbuca de leite apenas dá uma massa manipulável com as mãos no mundo fantástico instaurado pelo filme... Un bol entier de lait foi reduzido para cerca de 100 ml. Como a receita pede-o bien crémeux, usei um lait concentré entier non sucré, semelhante ao nosso creme de leite, não fosse por sua coloração amarelada. Mas mesmo a diminuição da quantidade de leite resultou numa massa da consistência de um milkshake... 
Enquanto eu realizava o milagre da multiplicação do trigo dentro da jatte plate, chegou em casa da Aline a Flávia Bragatto (era véspera de Natal, dia perfeito para preparação de um “Cake d’amour”...), chefe de cozinha que os deuses sabiamente colocaram em nosso caminho. Concordamos que quatre mains bien pesées era uma medida deveras vaga de farinha de trigo... À essa altura a receita era seguida apenas de rabo de olho, e Flávia se uniu a mim na missão de fazê-la dar certo. 
Cozinhando bem vestida pela primeira vez na vida...

Aos quatro ovos, ao leite e às 750 gramas de trigo (“quatre mains” de gigante de trigo...), introduzimos quatro colheres de sopa de açúcar e aproximadamente 50 ml de mel. 
Seguimos à risca a quantidade de manteiga da canção, une main de beurre fin, umas boas 100 gramas. Multiplicamos o fermento para fazer o - agora - monstro, crescer; un souffle de levain virou três sachês de fermento biológico, já que cada qual faz crescer 250 gramas de trigo.
Hélas, antes a poesia de Demy que essa descrição prosaica da receita! Bem, atentamos contra a arte, mas... deu certo! Eis o resultado final, depois de a massa ter descansado ½ hora em fogo baixo e assado uma hora em temperatura de 200 graus. 
O bolo/pão acabou por espalhar amor pela casa (...). Como ficou apenas levemente doce, nós o comemos com manteiga, ricota, mostarda, patê de atum, frango e tudo o mais que havia na mesa. 
E na manhã do outro dia, ele ainda gloriosamente foi acompanhado por Nutella e mel, recordando experiências muito doces que começaram no concerto de Dessay e Legrand e acabaram numa perfeita (embora um tanto quanto bagunçada, devo reconhecer...) noite de Natal.

segunda-feira, 24 de dezembro de 2012

Beasts of the Southern Wild/ Les Bêtes du Sud Sauvage (2012)

A UGC – rede de cinema francesa responsável por uma tentadora carteirinha cujo pagamento de uma taxa mensal fixa dá direito à frequentação ilimitada de suas salas – está fazendo barulho este mês por conta de “Beasts of the Southern Wild” (“Indomável Sonhadora” no Brasil, previsto para sair por aí em fevereiro de 2013), que uma olheira da companhia exibidora descobriu logo no Festival de Sundance e comprou para a comercialização no país. A assertividade da mulher pagou-se. O filme (americano, independente) está rendendo ao jovem e até então desconhecido diretor Benh Zeitlin honrarias como o troféu Cámera D’Or de Cannes, além do AFI Awards, o Sutherland Trophy e da nominação para dezenas de outros prêmios. 
A companhia francesa, apoiando-se em comentários da imprensa especializada e de figuras emblemáticas como Ophra Winfrey e Barack Obama, vende-o como um chef d’oeuvre. Deu-lhe grande destaque em sua revista mensal e repete ad nauseam o seu trailer. Campanha tão agressiva de marketing só pode deixar de pé atrás o espectador acostumado a esse tipo de coisa, e foi bem esse o meu caso. Mas a tal tentadora carteirinha da UGC falou mais alto; urgia conferir até que ponto a propaganda tinha razão. 
Quenzhané Wallis
Pois ela estava certa. O filme é muito mais encantador do que promete o trailer bobinho, pontuado por frases de efeito de cunho metafísico, semelhantes ao aborrecido “Arvore da Vida” (The tree of life, Mallick, 2011). Mais que um encanto, ele é um hino de amor à família, à união, à natureza. Hino cantado de forma matizada, pela voz de uma menininha de seis anos que realiza cabalmente aquilo que Edgar Morin discute em As Estrelas: todo mundo mesmo pode, um dia, ser o personagem de si mesmo defronte da câmera. 
Quenzhané Wallis (Hushpuppy) foi descoberta pelo diretor quando tinha 5 anos, numa comunidade bayou da Louisiana. A personagem, escrita para ela, é de certo modo ela própria: criança a descobrir o mundo, “bicho do homem”, como há cada vez menos nessa idade, nesta época em que tudo se vê obrigado a amadurecer depressa demais. O enamoramento do diretor por essa imagem nostálgica da infância se efetiva, no filme, nos primeiros planos que invariavelmente a mostram; na câmera subjetiva que nos dá a história sempre sob o ponto de vista de Hushpuppy. Em sua comunidade primitiva (sem que com isso eu queira fazer qualquer julgamento depreciativo de valor) que tanta importância dá aos nomes, pois transferem suas características aos indivíduos, Hushpuppy é a menina agridoce aprendendo a duras penas como encontrar seu espaço no universo que, como ela aprenderá a perceber, não lhe pertence.


O assombramento frente ao mundo inóspito nós experimentamos juntos com a garotinha, já que compartilhamos sua visão às coisas. A história ganha ainda mais força cinematográfica porque o mundo em miniatura da menina enlaça-se ao da comunidade à qual ela pertence. Bathtub está em vias de ser inundada devido à construção de uma represa. O poder público tenta, com a burocrática assertividade que lhe é inerente, remover o grupo da região e realocá-lo. Há protestos, violência. Coisas que o telejornal reproduz diariamente e que, por isso mesmo, deixamos de enxergar, adquirem vida nova pelos olhos virgens de Hushpuppy. 
Os protestos ganham a conotação de festins embriagadores, em que a lógica capitalista é quebrada em prol da experimentação mágica do mundo. O pai ébrio, vítima de uma doença que em breve o matará, adquire para a menina os foros de rei, de senhor, de guerreiro, de herói. Ele é o domador daquela natureza viva, a matar com tiros de espingarda a tempestade noturna que os ameaça; o líder a conduzir o grupo à vitória. É o mágico que dá vida à filha ungido pela força da carne de jacaré. Seus gestos, olhados pela garotinha, nos fazem enxergar, como poucas vezes conseguimos, coisas graves do tipo: quanto o deslocamento de um grupo do seu habitat reverte em perda de sua identidade? 
A história traz como pano de fundo a preocupação com a natureza, tema que por ter sido já tão cantarolado pela direita, pela esquerda e pelo centro há tempos que perdeu sua força. Num universo no qual a intervenção de cada ser pode atrapalhar o equilíbrio do todo (como diz a menina na sua resoluta e pequena voz, prenhe daquele mundo fantástico que lhe ensinou o pai, a professora e sua relação profundamente afetiva com a fauna e a flora de Bathtub), que direito tem o homem em destruir todo um habitat? Se há ingenuidade nessa formulação, é uma ingenuidade infantil, plenamente perdoável porque também esconde muitas verdades. A personagem nos ajuda a formular perguntas que há muito deixamos de lado, bichos-homens sedentos de progresso e de tecnologia que somos. 


O paulatino alagamento da “banheira” onde habita a comunidade de Hushpuppy obriga a garotinha ao amadurecimento. Processo difícil esse de se tornar homem. “I’m the man!”, o pai moribundo a faz dizer pouco antes de ela encetar uma jornada em busca da mãe perdida. No caminho, um prostíbulo. Uma mãe enxertada – mesmo assim, exímia preparadora daquela carne de jacaré que deu vida à menina – a ensinará que, na vida adulta, nem tudo é como queremos. 
Um brinde ao diretor Benh Zeitlin, que acumula ainda a função de coautor do roteiro, rapaz que mesmo tendo começado a carreira outro dia já demonstra surpreendente domínio do métier. Brindemos à sua história matizada, que se recusa a dar às costas à alegria, porém tampouco se abre às fórmulas gastas do happy end. Mas brindemos sobretudo à sua descoberta da pequena Quvenzhane, que neste nosso mundo de bebês adultos diz preferir o pé no chão aos sapatos, e os desenhos da Disney à Kylie Minogue. Oxalá o mundo purpurinado de Hollywood não estrague a grande artista que ela (felizmente) ainda não descobriu que é.


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Duas palavras sobre a pequena atriz, da revista da UGC:

Illimité (déc. 2012), p. 7.