Em junho passado, acho, quando começaram a aparecer notícias sobre o musical cujo título encima essas linhas, minha primeira reação foi a de pensar: “O que é que vão fazer com a minha Judy?” Os leitores sabem que sou fã possessiva de meus ídolos, e a Judy é das maiores – aquela louca genial que a tanta rasgação de seda já me obrigou aqui... Bem, só pude descobrir o que fizeram com ela na sexta passada, quase no fim da temporada da peça que arrebanhou três indicações ao prêmio Shell de teatro do Rio de Janeiro, nas categorias de melhor atriz (Claudia Netto), ator (Gracindo Júnior) e cenário (Marcelo Pies). E enquanto escrevo aqui, estou ainda sob o efeito do torvelinho no meio do qual fui lançada durante as duas horas de espetáculo.
Se o musical de Peter Quilter (levado à cena em versão brasileira por Charles Möeller e Claudio Botelho) tem estofo para entreter o público pelas suas qualidades dramatúrgicas – mise-en-scène empolgante e aliança sempre segura entre drama, comédia e música -, ele é um manjar dos deuses para os fãs de Judy Garland. Porque quem aparece no palco é uma versão assustadoramente fidedigna dessa artista de vida tão densa e conturbada, mesmo que curta. A Judy entertainer está toda lá, numa composição extraordinária de figurino, maquiagem, impostação de voz e gestual; assim como lá está a mulher debilitada emocional e fisicamente, tão decantada por aqueles que a conheceram na vida privada mas pouco conhecida do grande público – público a quem ela siderava sempre que abria a boca para cantar.
Judy sofreu todas as agruras do star system, como eu já disse aqui. Porque ela era uma das mais lucrativas máquinas de fazer dinheiro da indústria do cinema, foi criada à base de comprimidos que a faziam dormir e acordar para que cumprisse a agenda apertada e a concomitância das produções. Publicamente ela fazia chiste da coisa: “O buquê de flores era comemorativo ao tanto de filmes que fiz. Cada botão correspondia a um filme.”, diz ela sardonicamente a Mickey Rooney no programa que abre a série “The Judy Garland Show”, veiculada na CBS entre 1963 e 1964, testamento cabal da excelência da artista. Porém, era inegável que ela se deteriorava. Aos 46 anos de idade – momento que a peça circunscreve – estava em frangalhos: endividada, viciada e com uma voz que já rareava (diz a lenda que, numa de suas últimas performances, uma soprano se levantou na plateia e produziu certa nota de “Over the rainbow” que ela não mais conseguia alcançar).
A peça centra-se no diálogo entre as vidas pública e privada de Judy Garland, como já o fez “I could go on singing” (1963), o último e, creio, um dos melhores filmes da artista, de forte viés autobiográfico. Nela, como na produção cinematográfica, os excitantes números de palco convivem com a turbulenta vida pessoal da cantora cuja pele ela veste, mulher que tenta se reaproximar do filho que abandonou para se dedicar à carreira.
Porém, o drama da peça, real, é muito mais pungente. Depauperada por uma vida de excessos, Judy via escorrer pelos dedos o seu principal meio de estabelecer contato com o público: a voz. “É uma coisa horrível saber do que você é capaz... mas talvez não consiga mais chegar lá”: não sei se a entertainer efetivamente formulou essa frase que a Judy de Claudia Netto diz em cena; mas é bastante possível que ela o tenha feito. Sempre me pareceu que Judy Garland tentou, durante toda a vida, retribuir a benção que foi ter nascido com aquela voz – sei, o tom é religioso, mas como explicar um talento tão precoce como o dela? Por isso, excessos de toda a sorte pautaram a sua carreira. Há algo de trágico na figura desta mulher que parecia deixar um pouco de si em cada canção cantada, pelo abandono e o modo visceral como as cantava. Ela corria rumo a um destino certo de combustão. Isso se comprova tanto nos episódios do “Judy Garland Show” – nos quais, livre das amarras de Hollywood, Judy pôde ser ela mesma – quanto na peça que tão lindamente a retrata.
Porém, o drama da peça, real, é muito mais pungente. Depauperada por uma vida de excessos, Judy via escorrer pelos dedos o seu principal meio de estabelecer contato com o público: a voz. “É uma coisa horrível saber do que você é capaz... mas talvez não consiga mais chegar lá”: não sei se a entertainer efetivamente formulou essa frase que a Judy de Claudia Netto diz em cena; mas é bastante possível que ela o tenha feito. Sempre me pareceu que Judy Garland tentou, durante toda a vida, retribuir a benção que foi ter nascido com aquela voz – sei, o tom é religioso, mas como explicar um talento tão precoce como o dela? Por isso, excessos de toda a sorte pautaram a sua carreira. Há algo de trágico na figura desta mulher que parecia deixar um pouco de si em cada canção cantada, pelo abandono e o modo visceral como as cantava. Ela corria rumo a um destino certo de combustão. Isso se comprova tanto nos episódios do “Judy Garland Show” – nos quais, livre das amarras de Hollywood, Judy pôde ser ela mesma – quanto na peça que tão lindamente a retrata.
“Judy Garland: o fim do arco-íris”, desde meu ponto de vista, atinge o ápice em seu gênero. A peça consegue com fluidez apresentar as duas facetas da artista da qual propõe tratar. A encenação recupera a atmosfera nervosa que circundava Judy em seus últimos anos de vida; passando agilmente dos momentos de turbulência emocional à sublime entrega à arte. A enxutez dos elementos presentes no palco em muito contribui para o efeito do conjunto. A orquestra está no local apropriado: em destaque nos números de palco, velada nas cenas da vida privada. O piano, as bebidas, o baú – aquele old trunk, tão relevante para a carreira de Judy desde “Nasce uma estrela” (1954). Enfim, só está lá o que importa, o que é um aplaudível afastamento do circo em que anda se transformando o teatro musical contemporâneo. Três personagens dividem a cena: além de Judy, o seu pianista e maestro e o seu último marido – as duas figuras fundamentais nos últimos momentos dela.
Gracindo Júnior dá corpo de forma admirável ao pianista que, além de parceiro profissional de longa data da artista, também era seu amigo íntimo (como tão claro fica no “J.G. Show”, nos tapas na bunda e beijos na boca que ela alternadamente lhe dá). A química entre ele e a protagonista é perfeita, o que se revela tanto nas cenas tragicômicas quando nas intensamente dramáticas que compartilham. Igor Rickli se sai igualmente bem como o marido que lhe instilava o hábito das drogas para vê-la trabalhar (embora eu não saiba dizer o quanto ele reflete a personagem histórica). Mas ambos representam personas mais privadas que públicas, as quais, portanto, tiveram grande espaço para invenção. O tour de force é, mesmo, de Claudia Netto, a responsável por dar novamente vida ao mito.
E quão bem ela o faz, só mesmo vendo para se saber ao certo – palavras não bastam para dizê-lo. A mulher é maravilhosa. Desconheço os detalhes da composição da personagem, mas vendo-a em cena apercebe-se que ela fez uma imersão digna de respeito em seu objeto. Basta dizer que, pelas mãos de Claudia Netto, Judy novamente sobe à cena: naquele mesmo caminhar elegante (genialmente trôpego nas cenas de bebedeira), no mesmo timbre peculiar de voz, dizendo bobagens com aquela graça infinita que só ela sabia ter. E arrastando os fios do microfone ao desfilar corpo e voz pelo palco; agarrada a ele nas canções dramáticas; posando nos mesmos perfis que a deixavam tão bonita; carregando a música no mesmo crescendo em que Judy a levava, até a explosão final. A atriz apreende com maestria o gestual de Judy Garland. Isso, somado ao figurino que parece ter saído do próprio trunk de Judy e à voz da própria, que aparece aqui e ali no espetáculo – voz retirada de registros históricos dos anos 30 –, só faz cooperar para o estabelecimento do vínculo entre a personagem histórica e a atriz que a recria no palco. Coisa ainda mais louvável porque ela em nada se parece, fisicamente, à artista que interpreta (vejam-na abaixo sem a maquiagem da peça).
E o melhor de tudo é que, ao cantar as canções que Judy tornou notórias, Claudia prefere captar seu espírito a imitá-la, o que só faz coroar a homenagem. Muitos vivas a essa moça, que, como Judy, nasceu com o dom da voz sem, no entanto, precisar lidar com o carma do vício e as vicissitudes da indústria do cinema. Imaginem a honra de poder ser Judy Garland e, depois, ser quem mais ela quiser? Quando Judy não daria por essa capacidade de despersonalização!...
Agora, só me resta recomendar muito o espetáculo aos cariocas ou àqueles que, como eu, se animarem a se deslocar para cá para verem-no. Infelizmente a temporada se encerra no domingo, por isso corram!
Emprestei as imagens do programa da peça e de sua página do Facebook.
Agora, só me resta recomendar muito o espetáculo aos cariocas ou àqueles que, como eu, se animarem a se deslocar para cá para verem-no. Infelizmente a temporada se encerra no domingo, por isso corram!
Emprestei as imagens do programa da peça e de sua página do Facebook.
19 comentários:
É nesse momento que sinto falta das grandes cidades... Amo Judy, vc sabe... Adoraria ver esse musical.
O Falcão Maltês
Danielle... O espetáculo é arrebatador, sem dúvida! Olha, eu cheguei em casa e caçei uns videos no youtube... Alguns do ensaio, tem uma ótima entrevista no Jô da Claudia Neto tb...
Vc pegou o contato da Claudia? Creio que ela iria AMAR ler essa sua resenha...
Um bjão, Edison
Ah, esqueci de dizer: achei bacana vc pôr a sua cara no blog... Já tá virando figurinha fácil lá no nosso mesmo... ehehehe, Bjão!!! Edison
Danielle, fiquei curiosa sobre esta peça. Excelente texto! Abraço e ótima semana.
Olá!
Edison, você tinha toda razão quando me disse que a peça era maravilhosa. Fico feliz que tenha gostado do texto. Pois é, como vc viu, finalmente perdi a vergonha :D.
Não vi ainda os bastidores da peça, mas vou procurá-lo no youtube. E não tenho o contato da Claudia, não... Aliás, anima voltar lá na sexta agora?
M., obrigada! Antonio, sei sim como você gosta da Judy. Se a peça voltar em cartaz acho que você deveria dar uma esticada ao Rio para vê-la.
Bjs
Ana Laura disse:
Dani!!!!
Mas que post mais lindo!!!
Vou dormir com a música do Mágico de Oz na cabeça hj!!
=)
Ana Laura disse:
Dani querida!!
Fiquei deslumbrada com o seu posto da Judy Garland.
Por isso decidi escrever pra vc: será que vc não tem uns filmes dela pra me emprestar?
A gente combina de se encontrar, eu te dou o seu poster, finalmente, e devolvo os filmes que deixou cmg.
Se não for abusar mto, queria alguns tb da Greta Garbo.
Admito que ainda não assisti nenhum filme com ela e estava doida pra ver!
Bjsss e saudades
Olá, Aninha!
Gracias!
Claro que gravo Judy e Greta pra você! Você me diz quais prefere ou posso escolher aqueles que mais gosto?
No ritmo do "Judy Garland - o fim do arco-iris", posso gravar pra você os filmes metalinguísticos como "Nasce uma estrela" e "I could go on singing", que são da Judy madura; e também uns graciosos que ela fez com o Mickey. Da Greta, como sei que você gosta de um drama, estou pensando na "Dama das Camélias", em "Anna Karenina" e em "Grande Hotel" (aquele em que ela diz a famigerada frase "I want to be alone"...). O que acha?
Bjos
Dani
Dani, vi uma entrevista da Claudia Netto na TV e fiquei muito impressionada com como ela realmente se transformou em Judy , ao menos fisicamente. Deve ter sido um trabalho árduo de atuação e um espetáculo maravilhoso!
Beijos!
Heróis sem quadrinhos
Em suas páginas agimos como meninos
Abrindo a grande cortina de recordações
Para viver cenas em preto e branco.
Das tiras de jornais
Mocinhos e bandidos
Tornaram-se heróis e vilões.
Como éramos felizes
E não sabíamos!
Como é triste hoje enxergamos
O vazio do amanhã!
Aí vem o Roy Rogers galopando,
Buck Jones e Tom Mix ali acenam
Final feliz ou incógnito?
A resposta ficou nas lágrimas
De uma donzela.
Nossos heróis se foram
Deixando-nos apenas saudade.
Levaram consigo a certeza
De que homens nos tornaríamos.
Crescemos num mundo concreto
Real, carnívoro, traiçoeiro,
Mísero de valores culturais
Abastado de líderes sem valores.
Os heróis de ontem não têm mais quadrinhos,
Nem espaço nas recordações,
Mas enquanto existir a criança de ontem
Continuarão aventurando-se em nossos corações.
*Agamenon Troyan, poeta mineiro é autor do livro (O ANJO E A TEMPESTADE)
Lê, ela faz um trabalho notável mesmo; ainda mais impressionante porque ela não tem o biotipo de Judy. Se conseguir, veja o espetáculo que você certamente vai gostar muito!
Bjs
Dani
Então, você já foi ver a Judy no Rio e voltou com um comentário!
Vou ler agora. Na certa vou adorar.
Mande notícias. Abraços
Chico Lopes
Oi, Chico!
Leia sim, vou adorar saber sua opinião!
Bjs e inté
Dani
Judy foi maravilhosa. Sempre fui fã da voz congestionada de emoção, mas perfeita (há cantoras e cantoras que, por certo, esbanjam emoção, mas acabam ficando é exageradas e nem têm a técnica no ponto, como ela; para seu páreo, eu só indicaria Edith Piaf). Você também cita um filme que ela fez em 1963 com meu idolatrado Dirk Bogarde, "I could go on singing", de que eu nem sabia a existência! Também fiquei com uma inveja danada (na boa) de você ter estado lá e presenciado toda essa beleza.
Beijos
Chico Lopes
Oi, Chico!
Acho que você deveria dar uma esticada no Rio especialmente pra ver a peça - eu estava vendo que ela ficará em cartaz a semana que vem também (não esta do carnaval). Vá lá e depois do espetáculo conversa com a atriz, que é uma coisa de louco de boa.
Olha, "I could go on singing" eu só pude ver porque importei-o. Ele não saiu por aqui e nem havia arquivo digital dele disponível na web pra download. Quando ele chegou em casa e eu finalmente pude vê-lo foi um acontecimento... A propósito, sabe que não conhecia o Dirk Bogarde até então?...
Minnelli aparece sim na peça, em menção não muito entusiástica de Judy - acho que é bem assim que ela o via no fim da vida: como uma bicha louca... Bem, a gente sabe que ela não economizava a língua e isso está muito bem posto na peça. Não economizava talento, também, e disso igualmente a Claudia Netto dá conta excepcionalmente bem.
O curioso é que aparecem várias menções de "O Pirata" na peça, que é um filme pouco conhecido dela (mas que eu acho maravilhoso - o autor da peça também deve achá-lo).
Bjs e inté logo
Dani
Esse musical é um assombro. Até...
Dani minha querida,
como sempre voce me emociona com sua eloquencia, com tanto sentimento que simplesmente flui (se escreve assim?) do teu coracao...
Deve ter sido um espetáculo interessante... sim, eu digo só interessante...
Eu particularmente nao gosto deste sabor biográfico no teatro - com os ídolos da gente!!! Nao me importam Susan Hayward como Lilian Roth ou Jane Froman e Eleanor Parker como Marjorie Lawrence - mas considero uma coisa meio pretensiosa alguém se atrever a colocar alguém em cena (talentosa, nao há dúvida!) como Judy - que tinha uma personalidade "larger than life" (é a mesma coisa com atrizes que tentaram ser Norma Jean... ).
Eu, particularmente, acabaria fazendo comparacoes, querendo uma "imitacao" perfeita de Judy e nao a atriz que a faz fazendo SUA versao dela... Por esse mesmo motivo nao comentei a postagem de Maurette sobre Sylvia Bandeira fazendo Marlene... Odieie Marília - fanhosa - como Carmen Miranda e todas estas producoes que fazem (ou fizeram) sobre Dalva D'Oliveira (A estrela dalva), Marlene e Emilinha e por aí vai a lista... nao sao minha praia. Vamos deixar os originais como eles sao - e nao resussitar os mortos... Compreende?
Sou meio radical nisso - mas sei que com voce tenho a total liberdade de expressar-me francamente...
Quanto a tua postagem - bem já disse acima - como sempre de uma sensibilidade imensa.
Gosto do que voce "ve".
Coisas que outros nao conseguem "enxergar"...
E que voce descreve tao fácil- e simplesmente...
Impressionante!!!
Isso, minha querida, é um GRANDE dom!
Um beijo com muito carinho e saudades (deveríamos skypear brevemente, hein?)
Ricardo
Ricardo, querido, suas palavras sobre o texto me deixam muito feliz! Precisamos skypear sim, urgentemente! Você vai estar em casa amanhã?
Olha, te entendo perfeitamente. Quando primeiro vi o anúncio da peça pensei que uma remasterização e veiculação para o público do "Judy Garland Show" faria mais pela Judy que uma peça teatral que se propusesse a retratá-la. Só durante o espetáculo é que vi como estava enganada. Isso porque, talvez, a gente só consegue ter noção da dimensão desta artista que foi tão grande ao vivo como foi em película se ela ganhasse corpo de novo no palco. No cinema as pessoas estão para sempre vivas, estabilizadas. O teatro, pela presença física do ator, ressalta como nenhuma outra arte a fragilidade e a grandeza do artista. Acho isso precioso, sobretudo no que toca à Judy, que teve muito dessas duas coisas.
É claro que não dá pra fugir às comparações. Porém, como nunca vai haver outra Judy como a própria, o empolgante é ver o esforço da atriz de criar um personagem que seja fiel à persona histórica. A dedicação a este ofício, o despojamento da individualidade para se transformar em outro, são coisas que me tocam muito. Claudia Netto faz isso bastante bem, por isso é que eu te sugiro a ver a peça mesmo se sentindo do modo como sente. Imagino que você vai se surpreender com o envolvimento que a peça consegue construir da personagem com o público.
Bjs e até amanhã!
Dani
Danielle fiquei curiosa, quem são seus outros ídolos além de Judy?
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