A devassa no baú de escritos de Fernando Pessoa está trazendo à luz coisas do arco da velha. Quem poderia imaginar que aquele que reverberava contra o cinema nas páginas do “Livro do Desassossego” era também escritor de scripts cinematográficos?
Aliás, porque não? Durante sua vida relativamente curta, Pessoa desdobrou-se num sem número de outros. Foi campônio sem cultura letrada e metafísica, engenheiro cantor das benesses da tecnologia; poetou sobre a devastação da guerra, os heróis pátrios, transformou o Deus em homem para senti-lo inteiro. Empunhou uma pena sofredora, otimista, ferina, amorosa, idealista, angustiada. Colocou em primeiro plano sua fragmentação e incompletude, criando eus diferentes – muitas vezes contraditórios – entre si: figuras que juntas completam esse álbum ainda longe de ser desvendado por completo que é Fernando Pessoa.
Passa também por aí a leitura que o escritor faz do cinematógrafo. Ao longo de sua obra – quase toda ela publicada postumamente – alinham-se verrinas e elogios sobre o assunto. O crítico das figuras bidimensionais e ocas do cinema silencioso (das “Páginas de Estética e de Teoria e Crítica Literárias”, publicadas 1967) é também aquele que percebe as convenções do cinema como uma extensão das convenções do mundo. Essas e outras contradições são trazidas à baila por Patricio Ferrari e Claudia Fischer na “Introdução” à obra "Fernando Pessoa: Argumentos para filmes", impressa há pouco pela editora portuguesa Ática:
Convidado por José Régio a responder a uma enquete da revista "Presença" referente ao cinema, Fernando Pessoa primeiro convida o heterônimo Álvaro de Campos para ajudá-lo na empreitada (“podem sempre contar comigo, ou dizendo melhor e com fabrico de termo plural, comigos?”) para, dias depois, escrever ao amigo: “Ao inquérito sobre o cinema não responderei. Não sei o que penso do cinema.” Inútil perguntarmos quem é esse “eu” que nada sabe do assunto. Mais divertido, penso eu, é mergulharmos nas ambivalências do complexo e genial escritor – ainda mais agora, que mais do que nunca chafurdamos na banalidade.
Para isso, o livro em questão é um belo passaporte. Além de dois ensaios densos (o segundo é escrito por Fernando Guerreiro) que discutem a relação de Fernando Pessoa – e dos escritores portugueses seus pares – com o assunto em pauta, apresenta uma listagem dos recortes referentes ao tema que foram guardados pelo escritor e uma relação exaustiva de todos os filmes citados nos tais recortes. Traz também fac-símiles de algumas obras sobre o cinema pertencentes à biblioteca pessoana, o conjunto de fragmentos com pensamentos do escritor sobre o assunto e os manuscritos/datiloscritos de seus roteiros. Cerne da obra, os scripts são apresentados no original (em inglês, francês ou português) e, quando necessário, em traduções dos editores para o português.
O conjunto é de tirar o fôlego. É certo que esta que vos fala, além de estudar o tema, já esteve doente atrás das reflexões de Fernando Pessoa sobre ele – adorou saber, por exemplo, que o escritor guardou quatro cartazes do musical hollywoodiano A Viúva Alegre (The Merry Widow, 1934), protagonizado por Jeanette MacDonald e Maurice Chevalier, publicados em três jornais diferentes. Porém, é bem possível que o leitor comum com algum interesse por Fernando Pessoa também se divirta ao saber que os roteiros do escritor flertavam muito mais com o cinema comercial do que com o cinema de vanguarda - ao contrário do que se poderia imaginar.
Os “Film Arguments” – título atribuído pelo próprio Pessoa para uma de suas produções, o que aponta talvez um intuito de o escritor investir seriamente no medium – constroem seu objeto sempre com graça e senso crítico.
O primeiro é denominado “Note for a silly thriller or a film”. A tolice é patente no enredo, um desses rocamboles a la Sherlock Homes protagonizados por um milionário que contrata um detetive para proteger a coleção de pedras preciosas que ele precisa deslocar de um continente para outro. Durante a viagem, não poderiam faltar os bandidos, os quiproquós, as trocas de identidade, as reviravoltas supreendentes que deixam o leitor sem fôlego... O escritor parece conhecer bem onde pisa, tanto que deixa rubricas do tipo “This can be made interesting by a series of liveliness which, if this be a film, can be easily visualized.”.
Fernando Guerreiro aponta com argúcia a filiação que esses roteiros têm com o “cinema de atrações” dos anos de 1900-1910, que teve em Max Linder uma de suas figuras principais – cinema mais preocupado com a agilidade da ação que com o literário. Eu o filiaria igualmente ao vaudeville teatral de fins do século XIX e começo do XX, que conserva a mesma raiz popular do cinema e também se constrói em cima de quiproquós. Ou então, à literatura policial de Arthur Conan Doyle, Gilbert Keith Chesterton e companhia. Doyle e Chesterton eram leituras diletas de Fernando Pessoa. Guerreiro refere-se aos textos críticos de Chesterton presentes na biblioteca pessoana que poderiam ter servido de influência ao pensamento do escritor português sobre o cinema. Deixa de lado, no entanto, o Chesterton autor de thrillers: no conto “A cruz azul” este escritor utiliza o mesmo expediente de que depois Fernando Pessoa se utilizaria em outro de seus roteiros: sabendo que será vítima de perseguição, o personagem principal envia o objeto precioso pelo correio, mantendo consigo apenas uma duplicata sem valor dele.
Mas tem mais: a troca de identidade nem sempre se dissolve no suspense. Ela igualmente desliza para a comédia sexual, e aqui eu me refiro ao terceiro roteiro presente no livro: “Half plan of play or film”. Segundo ele, certo “Marquês A.”, na impossibilidade de comparecer a um evento social, pede que o criado vá em seu lugar e se passe por ele. “D.”, que fica sabendo da ausência de “A.” (mas não do plano bolado por ele), e não recebe convite para o evento, resolve comparecer disfarçando-se de “A.”. Porém, “A.” decide ir à festa tão logo descobre que sua namorada também vai. Resolve, no entanto, fingir-se de “D.”, uma vez que o criado já se passaria por “A.”. A ação é cortada para o interior da festa, quando descobrimos que o criado é, na verdade, um bandido. Assim termina abruptamente o roteiro que, todavia, parece se desenrolar em outros dois documentos do baú pessoano: ambos escritos em português – por oposição ao inglês da primeira parte – e com propostas de desenvolvimentos mais, digamos assim, literárias, para o tema: o dinamismo da ação dá lugar a uma série de diálogos estapafúrdios que só fazem complicar a trama.
O primeiro é denominado “Note for a silly thriller or a film”. A tolice é patente no enredo, um desses rocamboles a la Sherlock Homes protagonizados por um milionário que contrata um detetive para proteger a coleção de pedras preciosas que ele precisa deslocar de um continente para outro. Durante a viagem, não poderiam faltar os bandidos, os quiproquós, as trocas de identidade, as reviravoltas supreendentes que deixam o leitor sem fôlego... O escritor parece conhecer bem onde pisa, tanto que deixa rubricas do tipo “This can be made interesting by a series of liveliness which, if this be a film, can be easily visualized.”.
Fernando Guerreiro aponta com argúcia a filiação que esses roteiros têm com o “cinema de atrações” dos anos de 1900-1910, que teve em Max Linder uma de suas figuras principais – cinema mais preocupado com a agilidade da ação que com o literário. Eu o filiaria igualmente ao vaudeville teatral de fins do século XIX e começo do XX, que conserva a mesma raiz popular do cinema e também se constrói em cima de quiproquós. Ou então, à literatura policial de Arthur Conan Doyle, Gilbert Keith Chesterton e companhia. Doyle e Chesterton eram leituras diletas de Fernando Pessoa. Guerreiro refere-se aos textos críticos de Chesterton presentes na biblioteca pessoana que poderiam ter servido de influência ao pensamento do escritor português sobre o cinema. Deixa de lado, no entanto, o Chesterton autor de thrillers: no conto “A cruz azul” este escritor utiliza o mesmo expediente de que depois Fernando Pessoa se utilizaria em outro de seus roteiros: sabendo que será vítima de perseguição, o personagem principal envia o objeto precioso pelo correio, mantendo consigo apenas uma duplicata sem valor dele.
Mas tem mais: a troca de identidade nem sempre se dissolve no suspense. Ela igualmente desliza para a comédia sexual, e aqui eu me refiro ao terceiro roteiro presente no livro: “Half plan of play or film”. Segundo ele, certo “Marquês A.”, na impossibilidade de comparecer a um evento social, pede que o criado vá em seu lugar e se passe por ele. “D.”, que fica sabendo da ausência de “A.” (mas não do plano bolado por ele), e não recebe convite para o evento, resolve comparecer disfarçando-se de “A.”. Porém, “A.” decide ir à festa tão logo descobre que sua namorada também vai. Resolve, no entanto, fingir-se de “D.”, uma vez que o criado já se passaria por “A.”. A ação é cortada para o interior da festa, quando descobrimos que o criado é, na verdade, um bandido. Assim termina abruptamente o roteiro que, todavia, parece se desenrolar em outros dois documentos do baú pessoano: ambos escritos em português – por oposição ao inglês da primeira parte – e com propostas de desenvolvimentos mais, digamos assim, literárias, para o tema: o dinamismo da ação dá lugar a uma série de diálogos estapafúrdios que só fazem complicar a trama.
A língua inglesa para a construção de um enredo que pende para a cinematografia norte-americana; a portuguesa para os diálogos mais tributários do teatro. Fernando Pessoa parece a todo tempo querer encontrar o idioma que com maior justeza exprima o gênero com o qual se propõe a trabalhar. Tal identidade é ainda uma vez percebida nos dois últimos roteiros presentes no livro, escritos em francês, roteiros que, pela sua temática e cuidadosa decupagem, aproximam-se de obras da vanguarda cinematográfica francesa: ambos rompem com a narrativa convencional, transformando-se em herméticos poemas visuais à maneira do “L’étoile de mer” (de Man Ray, 1928), por exemplo.
Nenhuma semelhança há entre este Fernando Pessoa e aquele que investia em roteiros comerciais. Assim como não as há entre aquele das "Ficções do Interlúdio" e o da Ode Marítima.
Nenhuma semelhança há entre este Fernando Pessoa e aquele que investia em roteiros comerciais. Assim como não as há entre aquele das "Ficções do Interlúdio" e o da Ode Marítima.
Se a morte não tivesse colhido o escritor tão cedo, é bem provável que esses poucos escritos cinematográficos se multiplicassem e comportassem o nascimento de outros heterônimos – afinal, boa parte do recortes sobre o assunto presentes na biblioteca pessoana comporta filmes rodados em 1934, um ano antes da morte do escritor. Mais uns anos e talvez o escritor se inclinasse mais seriamente à sétima arte, podendo, quem sabe, fruir ainda em vida o reconhecimento de sua genialidade.
Versão adensada da resenha saiu publicada na "Todas as Musas" ano 4, n. 1 (jul./dez. 2012)
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Versão adensada da resenha saiu publicada na "Todas as Musas" ano 4, n. 1 (jul./dez. 2012)
12 comentários:
Danielle, impressionante! Realmente eu não sabia que o Pessoa tinha toda essa ligação com o cinema... Mas, tb reconheço que não conheço bem a fundo sua obra...
É notório a percepção da força do cinema que faz com que ele queira escrever em outro idioma diferente do seu...
Um bjão, Dani!
Oi, Edison!
Nem eu, meu amigo! Acho que ninguém supunha isso. A informação é fresca - veio direto da Casa de Fernando Pessoa, em Lisboa, de onde eu trouxe o livro.
O famigerado baú do escritor está sendo desvendado aos poucos, e surpreendendo.
Quando à língua, Pessoa teve formação bilíngue, circulava tão bem pelo inglês quanto pelo português. O francês era o principal idioma de cultura da época, daí seu conhecimento também dele. Mas é curiosíssimo o modo como o escritor oscila entre as três línguas ao escrever os scripts!
Bjs
Dani
Oi, Dani!
O nosso amigo Edison já disse tudo que eu dizer. Também não sabia que Fernando Pessoa tinha escrito roteiros e que era ligado no cinema.
Se focasse um roteiro com os seus heterônimo ficaria bacana.
Bjs
Rê
Oi, Renata.
Menina, se esses roteiros virassem filmes teríamos agora uma visão bem diferente sobre quem foi Fernando Pessoa. Imagine se, além da única obra que o escritor publicou em vida, ele também tivesse roteirizado um desses blockbusters do suspense cinematográfico americano, como a série "The thin man" ("O homem sombra", sensacional!)? É divertido ver que toda a profundidade da reflexão dele caminhava em paralelo com o estender de olhos para esse veículo popular que é o cinema...
Bjs
Dani
Que grandeza! Pessoa continua nos surpreendendo.
O Falcão Maltês
Gosto muito de Fernando Pessoa e tenho certeza de que ele teria muitos outros roteiros para inventar. Realmente me espantou que tivesse interesse pelo cinema comercial. A história de A. e D. com certeza seria bastante inventiva para um filme, embora um pouco confusa.
Beijos!
Lê, meu espanto também foi imenso :D
Concordo contigo sobre esse roteiro que você mencionou. Ele não deve nada aos rocamboles detetivescos protagonizados por Myrna Loy e William Powell na série de filmes "The thin man" (dos anos 30-40), a "Arséne Lupin" (32) e à grande quantidade de romances policiais vertidos para as telas graças ao fascínio que eles geravam nos leitores.
Pessoa não ficava atrás. Interessado em literatura policial, ele estende suas características para os argumentos que escreve - tanto que neste que você cita, o bandido cai de paraquedas, o que revela a atração que o tipo exercia no escritor.
Bjs e obrigada pela leitura!
Dani
Oiii, li e adorei o seu blog.
Tenho um blog de cinema a algum tempo e frequento alguns conhecidos como o do Falcão Maltes e Blog do cinema Clássico.
Se puder siga o meu e coloque em destaque com os outros blogs, que farei o mesmo com o seu.
Abraços.
Oi, Marcelo.
Vai ser um prazer seguir seu blog!
Abraços e obrigada pelo elogio e por passar por aqui.
Danielle
Dai, O Falcão Maltês entra de férias amanhã. Desejo um Feliz Natal e um ano de 2012 bastante proveitoso.
Até Janeiro!
O Falcão Maltês
Impressionante como voce consegue resumir tanta informacao e ainda de uma forma agradável... Wow, amiga, parabéns por tanto talento!!!!!!!!
Querido, você é demais! Obrigada pelas palavras carinhosas!
bjocas
Dani
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