Se uma única razão bastasse para o público ver o novo filme de Paul Thomas Anderson, ela seria Joaquim Phoenix.
Mesmo sem simpatizar com o éthos de “rebelde sem causa” fora de época do ator, que soma grosserias a repórteres, declarações bombásticas de aposentadoria precoce e demais aparatos cênicos do tipo, não consigo negar que ele está genial como o selvagem (seu alter-ego?) tirado das trevas da sua bruteza pelo guru interpretado com igual precisão por Philip Seymour Hoffman.
“The Master” começou causando burburinho pela questão de fundo que trazia. A religião propalada pela personagem de Hoffman remeteria demasiado à cientologia – alçada à ordem do dia desde que Tom Cruise assumiu publicamente sua adesão a ela, e começaram a transpirar na imprensa as crescentes bizarrices às quais ela o induzia. Reviravoltas na vida pessoal do astro não demoraram a transformá-la em objeto cinematográfico.
Porém, a despeito do bas-fond envolvendo Cruise, o filme vale a visita por sua cuidadosa construção dos caracteres, em especial dos dois elementos centrais, o guru e o discípulo, exemplares perfeitos da ordem e do caos.
Phoenix ganha o embate, pelo aplomb do papel mas especialmente pela maestria com que ele o desempenha (porque sem dúvida ele bem o conhece...): das homéricas bebedeiras com beberagens surreais – uma delas acaba por conduzi-lo, à sua revelia, para o meio do oceano; o não-lugar absoluto, perfeito para o encontro com o guru que quererá parir, da besta, um homem – à aparente contenção (contenção ilusória, como a sensacional cena do encarceramento deixará patente aos espectadores) até a fuga do jugo do mestre (numa cena não menos impressionante, feita de uma imensidão vazia onde o bicho poderá enfim retornar ao seu elemento).
Igualmente bem está Amy Adams, exemplar aparentemente padrão da fêmea dos anos de 1950, mas que esconde em si o pragmatismo e o calculismo responsáveis por inserir o marido na posição de destaque que ele alcança.
E a cientologia?
Os curiosos por conhecer os detalhes sórdidos da religião (ou seita, como querem seus críticos) de Tom Cruise ficarão chupando o dedo. Os lastros que atam o filme a ela não são tão claros quanto o marketing que o vendeu nos fez a princípio supor.
Pelo contrário, a tal crítica aguda que o diretor supostamente voltaria à cientologia é em parte diluída devido ao “progresso mental” (não consigo encontrar palavra melhor) da personagem de Phoenix, que inicia o processo do mestre uma besta-fera e o termina um ser civilizado o bastante para que dele faça bulha numa ironissíssima cena de intercurso sexual, ao submeter ao processo a amante ocasional.
Sobra para a religião uma crítica semelhante àquela comumente voltada ao gênero autoajuda: o processo ao qual o guru submete seus fiéis é documentado numa bojuda obra em dois tomos que poderia, segundo um repórter atilado, ser reduzida a uma daquelas brochuras de três páginas entregues nos metrôs...
O sensacionalismo em torno da religião de Cruise era, ao que parece, estratégia para a venda do filme. Não precisava, considerando-se, além da construção nuançada das personagens, a solidez narrativa da história contada por Paul Thomas Anderson; narrativa altamente influenciada pelo cinema de Hollywood dos anos de 1950 – e nesse sentido me parece acertado o recorte temporal escolhido, já que música, figurino e enquadramentos muito cooperam para a reconstrução da época. 2013 continua a homenagem ao cinema clássico levada a cabo nos últimos anos. O destaque dado ao filme nesta festa do Oscar mostra que a Academia continua regozijando do fato.
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Acabei (em 27 fev.) de passar por um trecho de L'Esprit du Temps, do sempre brilhante Edgar Morin, que creio que nos ajude a compreender a personagem de Phoenix. A civilização não passa de uma fina casca que mal cerceia o homem, no fundo um ser violento, prestes à ebulição, diz o ensaísta. Segue o trecho em francês, para a reflexão daqueles que se entusiasmarem (devemos isso aos bons filmes).(...) il y a un fond de violence dans l’être humain que précède notre civilisation, toute civilisation, et qui ne peut être réduit définitivement par aucun des moyens actuellement connus de civilisation. La civilisation est une mince pellicule qui peut se solidifier et contenir le feu central, mais sans l’éteindre. La civilisation du confort paisible, de la vie sans risques, du bonheur qui veut ignorer la mort continue-t-elle une croûte de plus en plus ferme au-dessus des énergies démentes de l’espèce ? Ici encore, la réponse est double. Si effectivement la surface se durcit et se referme sur le feu central, alors la pression interne se décuple. Que la croûte vienne à se rompre, et les monstres brisant leurs chaînes feront irruption, non plus sur les écrans et les journaux, mais en chacun de nous. Toutes les expériences nous prouvent que nul n’est définitivement civilisé (...). (pg. 135)
3 comentários:
Joaquim Phoenix ganhar será mais do que justo e ao mesmo tempo uma das maiores surpresas da cerimonia.
Também acho, Marcelo!
Quando terminei de assistir o filme pela primeira vez, há alguns dias, eu sequer sabir dizer se tinha ou não gostado dele, tamanho o impacto que ele me causou. Por isso decidi adiar a resenha sobre ele, eu tinha certeza de que precisa vê-lo mais uma vez antes de fazer quaisquer considerações. Neste meio tempo ele foi crescendo em minha mente, como um mosaico de peças soltas, que de repente começava a fazer sentido. Na última quinta-feira eu o assisti pela segunda vez, foi só a confirmação, este é um dos melhores filmes do ano, não só pelas atuações, mas principalmente pelo roteiro...
Dani, querida, te convido para ler depois as minhas considerações sobre ele: http://sublimeirrealidade.blogspot.com.br/2013/02/o-mestre.html
Abraço forte!
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