Exposição "Le monde enchanté de Jacques Demy", em cartaz na Cinemateca Francesa até 4/8/2013 |
Falaremos de cinema e música.
Cinema e música num post de despedida? Isso pede trilha sonora.
Ao fundo soam baixos os primeiros acordes de “Sentimental Journey”, o leitor os escuta? Percebe que a voz doce de Doris Day se avoluma enquanto caminhamos ao longo do rio Sena, em direção da Gare d’Austerlitz, em plena primavera parisiense que começa a pintar tons de verde sobre as árvores e a tingir os jardins com as cores do arco-íris? Ops, comédia romântica em vista. Corta!
Agora, o inesquecível tema de “Psicose” invade de súbito a cena. Quede árvores vicejantes, flores em botão, o rio Sena a brilhar sob a luz da primavera? Tudo está ali mas nada mais se vê. O som terrífico engole tudo, e o leitor, como o personagem, só pensa no perigo invisível que ganha corpo pela música e parece prestes a fazê-lo sucumbir... A mesma cena transformada pela trilha sonora.
Paris oferece ao público duas oportunidades de pensar sobre o papel fundamental que a música exerce no cinema. Na Cinématheque Française (metrôs Bercy/Quai de la Rapé/Bibliothéque, dependendo da intensidade do desejo de caminhar que toma o visitante), a poucos metros de nossa cena hipotética, os refletores voltam-se para o mundo cantado/encantado (enchanté, gracioso trocadilho em francês) que Jacques Demy criou ao longo de três décadas. A Cité de la Musique (metrô Porte de Pantin) amplia o escopo para pensar o papel da música no cinema mundial desde o nascimento dele (ambas as exposições valem muito a pena e a visita a uma delas garante meio ingresso à outra).
Paris oferece ao público duas oportunidades de pensar sobre o papel fundamental que a música exerce no cinema. Na Cinématheque Française (metrôs Bercy/Quai de la Rapé/Bibliothéque, dependendo da intensidade do desejo de caminhar que toma o visitante), a poucos metros de nossa cena hipotética, os refletores voltam-se para o mundo cantado/encantado (enchanté, gracioso trocadilho em francês) que Jacques Demy criou ao longo de três décadas. A Cité de la Musique (metrô Porte de Pantin) amplia o escopo para pensar o papel da música no cinema mundial desde o nascimento dele (ambas as exposições valem muito a pena e a visita a uma delas garante meio ingresso à outra).
Como se vê, as exposições se complementam.
“Musique et cinéma: le mariage du siècle?” dedica-se a responder prolixamente à questão: “Para que serve a música no cinema?”.
Um largo salão na penumbra acolhe o visitante. Pelas paredes, vinis com sucessos musicais das películas. À esquerda, fones de ouvido e monitores de 14 polegadas dispostos diante de cadeiras usadas em sets de filmagens dão ao visitante uma mostra do poder do diretor; nas telinhas, cenas de obras célebres como “Nasce uma estrela” de 54. Mais à frente, trechos curtos de outras obras primas desenrolam-se no monitor superior enquanto a banda sonora é destacada no inferior. Ali o visitante tem o poder de manipular o tempo do som e descobrir onde, na imagem, foram emitidos os sons mais agudos, por exemplo. Mais além, uma sala de edição de som acolhe os mais ousados. À sua disposição, um sintetizador de som e um catálogo de cenas de filmes os esperam para que eles deem carne a invenções cinematográficas do tipo das que abrem este post.
A exposição, interativa, é um prato cheio para os pequenos – é raro, aliás, que uma exposição em Paris fique um dia sem receber visita deles. No dia em que estive lá cruzei com um grupo de alunos do primário a apertar com curiosidade os botões da juke box gigante do subsolo para ouvir os sucessos musicais de clássicos da sétima arte rodados dos anos de 1920 a 2000. A seleção é eclética: Roy Orbison (Uma linda mulher, 1990), Vinícius de Morais (Orfeu, 1950), Maurice Chevalier (Ama-me esta noite, 1932) ecoaram democraticamente pelos quatro cantos do ambiente.
A exposição, interativa, é um prato cheio para os pequenos – é raro, aliás, que uma exposição em Paris fique um dia sem receber visita deles. No dia em que estive lá cruzei com um grupo de alunos do primário a apertar com curiosidade os botões da juke box gigante do subsolo para ouvir os sucessos musicais de clássicos da sétima arte rodados dos anos de 1920 a 2000. A seleção é eclética: Roy Orbison (Uma linda mulher, 1990), Vinícius de Morais (Orfeu, 1950), Maurice Chevalier (Ama-me esta noite, 1932) ecoaram democraticamente pelos quatro cantos do ambiente.
A intervenção ativa do visitante no ambiente dá lugar à concentração silenciosa na sala seguinte, onde três telões apresentam cenas de clássicos nos quais a música exerce papel preponderante. Em cena, Meryl Streep, levada pelas mãos do amado, aprende das alturas quão grande é a África. O tema musical de “Entre dois amores” (1985) é a alma do filme.
No andar de cima aprenderemos pela observação empírica como os temas das aberturas das obras dão o tom das mesmas – duas dezenas de vídeos sucedem-se no centro do salão de entrada, convidando o público à aproximação. Enquanto isso, salas menores convocam os interessados a ouvir os criadores explicando a gênese de suas obras. É lá que, por exemplo, Michel Legrand explica que o ritmo de “The Thomas Crown affair” (1968) foi dado pela sua música (premiada com o Oscar), criada a posteriori à rodagem e que, não obstante, definiu a decupagem do filme. Corte, fade out.
Os curiosos pela sétima arte têm alguma ideia sobre a importância de Michel Legrand na arte de Jacques Demy, já que o músico foi responsável por musicar a poesia dos principais sucessos do artista: “Guarda-chuvas do amor” (Les parapluies de Cherbourg, 1963), “Pele de asno” (Peau d’âne, 1970) e “Les demoiselles de Rochefort” (As donzelas de Rochefort, 1966).
A câmera Pathé Kid de Jacques Demy |
Caminhando pela rua cenográfica de Rochefort |
A certa altura do percurso pela vida/ obra de Demy o visitante se vê plenamente imerso nos cenários de seus filmes. Difícil é não aceitar o convite e se tornar um habitante de sua Rochefort ou do reino encantado no qual se refugia a princesa “Pelo de Asno”.
Entre cenário, telões demandam a atenção dispersa do visitante, que se descobre ora diante de um Harrison Ford que as vicissitudes da indústria do cinema impediram de conseguir, junto de Demy, sua primeira grande chance nas telas (Model Shop, 1968); ora diante de um Marcelo Mastroianni grávido de Catherine Deneuve – inversão jocosa na relação que ambos encetavam offscreen (L’évènement le plus important depuis que l’homme a marché sur la lune, 1973).
Recriação do cenário de Pelo de Asno |
Entre cenário, telões demandam a atenção dispersa do visitante, que se descobre ora diante de um Harrison Ford que as vicissitudes da indústria do cinema impediram de conseguir, junto de Demy, sua primeira grande chance nas telas (Model Shop, 1968); ora diante de um Marcelo Mastroianni grávido de Catherine Deneuve – inversão jocosa na relação que ambos encetavam offscreen (L’évènement le plus important depuis que l’homme a marché sur la lune, 1973).
No mundo enchanté de Demy apresentado pela Cinemateca ouve-se também muita música de Legrand e vê-se um belo vídeo em que Agnés Varda compila a arte do esposo. Ambos Varda e Legrand tiveram presença ativa para o preparo da mostra, e Vardas está vez por outra no recinto, a acompanhar de perto a cria, assim como fizera durante a rodagem dos filmes do companheiro: Fotografias das produções realizadas pela artista estão espalhadas pela mostra, e seu nostálgico documentário “Les demoiselles ont eu 25 ans” (1992) compõe o box com a obra completa de Demy, que o visitante cinéfilo precisa trazer de Paris, pois à venda por aqui não há sequer “Os guarda-chuvas do amor” (foi o que fiz, e logo mais vou precisar recorrer a Demy pour revivre les jours d’été – como cantam as soeurs jumelles Catherine Deneuve e Françoise Dorléac – que vivi nesses gélidos e inesquecíveis meses que passei em Paris.)