Falamos de um filme feito para um público específico. Quem não se interessa pelo cinema enquanto materialidade não verá muito interesse no caso envolvendo a jovem senhora portuguesa cuja alma fica vagando na pensão onde mora o misterioso fotógrafo responsável por lhe tirar os retratos fúnebres. O filme parecerá inverossímil àqueles afeitos ao mundo digital, aos quais soará frágil o expediente criado pelo diretor/escritor, de inserir na história um fotógrafo externo quando qualquer celular poderia capturar as imagens derradeiras da jovem morta. Mas esta é uma questão que o filme não comporta, ele que é em grande medida retrato (analógico) de seu próprio diretor.
Manoel de Oliveira, hoje com 104 anos, é o mais longevo diretor de cinema da atualidade (até onde sei). Rodou este filme depois de atuar como testemunha ocular de toda a história do cinema, além de artífice de uma parte considerável dela (começou a dirigir na aurora do cinema falado, 1931). Viveu a vitória dos longas-metragens de ficção, o apogeu e o declínio do cinema de estúdio, da “cidade dos sonhos”, do star system, de Gish, de Griffith, de Garbo, de Monroe. Ele é, digamos, um correspondente cinéfilo daquela personagem de Raul que presenciou toda a história do mundo e, portanto, pode invocá-la com grandiloquência em “Eu nasci há dez mil anos atrás”. “O estranho caso de Angélica” parece também uma espécie de invocação de uma inocência perdida da arte, de sua deglutição pelos avanços da técnica que, ao darem primazia aos efeitos pirotécnicos, lhe tiraram a espiritualidade.
Para além do fio de enredo que corre na camada mais visível do filme, Manoel de Oliveira recupera dialeticamente o funcionamento do cinema (da imagem, num sentido mais amplo) anterior ao digital. Desde o princípio. Desde um dos primeiros planos, quando a câmera detém-se diante de um ateliê fotográfico denominado “fotogenia” – característica que emerge da imagem, não sendo, portanto, intrínseca ao indivíduo. Em seguida, o jovem fotógrafo vai até a quinta onde jaz a morta. No interior da câmera com que a registra, o rosto se abre num sorriso. O fotógrafo leva os retratos e, por extensão, a própria moça para casa (a imagem analógica, diferente da digital, capta a frequência do objeto que registra; tratando-se, portanto, de uma cópia que carrega propriedades suas). Dali por diante ela passa a conviver consigo. Em sonhos, primeiro, e depois na realidade, quando decide buscá-lo para levá-lo sabe-se lá para onde, em forma de imagem, de alma.
Imagem e realidade ocupam no filme lugares intercambiáveis, assim como nele convivem em harmonia o branco e preto, o colorido, a trucagem “infantil” à la Méliès. A imagem serve de registro à posteridade de um mundo que se extingue (o filme se passa numa cidadezinha portuguesa onde atraso e progresso disputam espaço ombro a ombro). A imagem analógica, feita pelo jovem fotógrafo, tanto potencializa esse papel de guarda quanto faz emergir o paradoxal papel daquele jovem embalsamador de gente e tecnologias mortas.
Manoel de Oliveira trata o tema com uma singeleza que pode parecer ingenuidade. Não nos iludamos, ele sabe bem o que faz. Sua invocação do cinema, proferida desde os seus estertores, transforma o filme num testamento não só da obra do diretor, mas de uma arte que não existe mais. Oliveira continua trabalhando, o cinema persiste, por certo, mas nada é como antes. “O estranho caso de Angélica” recupera um papel da imagem cinematográfica que por tempos serviu de base para seu fascínio, aquele relativo ao seu poder de relativizar o papel da morte. Em seu leito de morte, cercada de uma família agonizante, Angélica interage festivamente com o seu fotógrafo: graças à fotografia e ao cinema ela poderá continuar a viver.