quinta-feira, 5 de dezembro de 2013

Arte; porque a vida não basta. A Carruagem de Ouro” (1952)

“Peru, inícios de século XVIII. Uma troupe de teatro mambembe italiana aporta na colônia espanhola em busca do enriquecimento. Esta é premissa da obra-prima do francês Jean Renoir, rodada na Itália, protagonizada por uma diva italiana mas falada em inglês – deslocamento temático desdobrado na estruturação da própria trama. 
“Carruagem de Ouro” é precioso por qualquer lugar que se lhe pegue: enquanto incursão de Anna Magnani no idioma de Shakespeare, enquanto apropriação da Commedia dell'Arte, enquanto encenação da aguda influência que a pintura do Renoir pai exerceu sobre o filho cineasta, enquanto exercício metalinguístico, enquanto exemplar do gênero cômico... 
Magnani encontra aqui terreno amplo para mostrar a superlativa artista que era. Obrigada a falar inglês, a vera italiana tinge a língua de um sotaque forte, que bem combina com a personagem que leva à cena – sempre a reclamar, pródiga na gesticulação, do idioma arrevesado que a obrigam a aprender para ganhar a América. Ela é Camilla na vida e Colombina na arte, Colombina na vida e Camilla na arte, neste interpenetrar que transforma a atriz na personagem e injeta na personagem a seiva da atriz. O corpo que ganha as vestes do tipo encenado é nu de roupas mas prenhe de espírito. Na impossibilidade de a atriz despir-se de sua carne e de sua alma, ela se cede um pouco ao novo “eu” que a habita, não sem deixar de pegar um pouco dele para si. 
Camilla é, assim como o arquétipo de Colombina, pobre, fogoza e matreira. Na cena, ajuda a namorado Arlequim a proteger sua patroa e o apaixonado desta das garras do pai da mocinha. Na vida, desdobra-se entre vários amantes que ela respeita e ama com fogo e amor análogos. E é, como o arquétipo que alimenta em cena, ardilosa na hora de administrar tantos amantes. Este entremear de arte e vida emerge na mise-en-scène de Renoir, no deslizamento da câmera do palco onde desenrola-se a peça para os bastidores nos quais Camilla luta para defender as joias recém-ganhas do Vice-Rei da sanha do oficial espanhol (companheiro com o qual ela fizera a travessia da Europa à América); ou na casa de Camilla, transformada em palco, com seus tortuosos caminhos e inúmeras portas por detrás das quais ensaiam cantores, atores, guardam-se figurinos e escondem-se amantes. 
O filme se inicia como se fosse teatro. A cada abrir de cortinas sucede-se um quadro onde o acontecimento tem lugar. O teatrinho onde a troupe se apresenta é miniatura da casa-palco de Camilla, onde todos permanecem usando seus figurinos de teatro. Se lá Camilla torna-se a grande senhora, ela assume seu novo papel ainda com algo do espírito de Colombina: fogoza e expansiva, doce e romântica; pródiga de atenções para com seus apaixonados (todos). 
Anna Magnani constrói com maestria a mulher múltipla, ela que o fora cabalmente, na arte e na vida. Vemo-la tingida de corpo e alma do Sol da Itália, bela e forte como uma donna daquelas paragens. “Mamma Roma”, a metáfora de seu chão. Libertária como sua personagem de “Roma, cidade aberta”, hilária como a sua Gioia do impagável “Risate de gioia”, a encarar cantando as pedras do caminho, já que seu elemento era a felicidade. Em “Carruagem de Ouro”, Anna, ao se multiplicar, torna-se intimamente Anna. É uma alegria vê-la. 
O riso apesar dos pesares. Renoir ilumina seu filme com a luz dos quadros de seu pai. Emoldura as cenas, à guisa de quadros. Cria versões moventes do tocador de flauta adorável que o pai agigantou numa tela, coloca-os a dar cambalhotas no palco da commedia. Transforma quadros em telões de teatro. Coloca Renoir a conviver com a Commedia dell'Arte e mergulha um e outro nas melodias de Vivaldi. A mescla dá nova vida à tradição, inserindo nela o cinema, arte ainda tão jovem. Acima de tudo, apresenta a arte não apenas como metáfora da vida, mas como sua germinadora. 
Influências tão várias fazem brotar uma obra cheia de originalidade, alegre como os acordes das “Quatro Estações” que a abrem e a semeiam. Ensolarada, mas também agridoce, como se quisesse lembrar que Verão e Inverno sucedem-se incontornáveis no curso dos tempos.

3 comentários:

disse...

Análise muito pertinente, Dani! Adoro esse filme, especialmente as cores. E, claro, a sempre excelente Anna Magnani.
Beijos

Maira disse...

nossa, pelas fotos postadas, parece ser bem teatral mesmo esse filme. Imagino um filme bem fora dos padrões hollywoodianos, bem arte mesmo! bjs

Danielle Crepaldi Carvalho disse...

Lê, obrigada! A Magnani não é genial? Das maiores de todos os tempos.

Maira, é totalmente fora dos padrões, embora de Hollywood tenha saído muita Arte (com A maiúsculo). São dois tipos de linguagens diferentes e este é bem pessoal. Acho que você vai gostar.

Bjs, meninas!