“Peru, inícios de século XVIII. Uma troupe de teatro mambembe italiana aporta na colônia espanhola em busca do enriquecimento. Esta é premissa da obra-prima do francês Jean Renoir, rodada na Itália, protagonizada por uma diva italiana mas falada em inglês – deslocamento temático desdobrado na estruturação da própria trama.
“Carruagem de Ouro” é precioso por qualquer lugar que se lhe pegue: enquanto incursão de Anna Magnani no idioma de Shakespeare, enquanto apropriação da Commedia dell'Arte, enquanto encenação da aguda influência que a pintura do Renoir pai exerceu sobre o filho cineasta, enquanto exercício metalinguístico, enquanto exemplar do gênero cômico...
Magnani encontra aqui terreno amplo para mostrar a superlativa artista que era. Obrigada a falar inglês, a vera italiana tinge a língua de um sotaque forte, que bem combina com a personagem que leva à cena – sempre a reclamar, pródiga na gesticulação, do idioma arrevesado que a obrigam a aprender para ganhar a América. Ela é Camilla na vida e Colombina na arte, Colombina na vida e Camilla na arte, neste interpenetrar que transforma a atriz na personagem e injeta na personagem a seiva da atriz. O corpo que ganha as vestes do tipo encenado é nu de roupas mas prenhe de espírito. Na impossibilidade de a atriz despir-se de sua carne e de sua alma, ela se cede um pouco ao novo “eu” que a habita, não sem deixar de pegar um pouco dele para si.
Camilla é, assim como o arquétipo de Colombina, pobre, fogoza e matreira. Na cena, ajuda a namorado Arlequim a proteger sua patroa e o apaixonado desta das garras do pai da mocinha. Na vida, desdobra-se entre vários amantes que ela respeita e ama com fogo e amor análogos. E é, como o arquétipo que alimenta em cena, ardilosa na hora de administrar tantos amantes. Este entremear de arte e vida emerge na mise-en-scène de Renoir, no deslizamento da câmera do palco onde desenrola-se a peça para os bastidores nos quais Camilla luta para defender as joias recém-ganhas do Vice-Rei da sanha do oficial espanhol (companheiro com o qual ela fizera a travessia da Europa à América); ou na casa de Camilla, transformada em palco, com seus tortuosos caminhos e inúmeras portas por detrás das quais ensaiam cantores, atores, guardam-se figurinos e escondem-se amantes.
O filme se inicia como se fosse teatro. A cada abrir de cortinas sucede-se um quadro onde o acontecimento tem lugar. O teatrinho onde a troupe se apresenta é miniatura da casa-palco de Camilla, onde todos permanecem usando seus figurinos de teatro. Se lá Camilla torna-se a grande senhora, ela assume seu novo papel ainda com algo do espírito de Colombina: fogoza e expansiva, doce e romântica; pródiga de atenções para com seus apaixonados (todos).
Anna Magnani constrói com maestria a mulher múltipla, ela que o fora cabalmente, na arte e na vida. Vemo-la tingida de corpo e alma do Sol da Itália, bela e forte como uma donna daquelas paragens. “Mamma Roma”, a metáfora de seu chão. Libertária como sua personagem de “Roma, cidade aberta”, hilária como a sua Gioia do impagável “Risate de gioia”, a encarar cantando as pedras do caminho, já que seu elemento era a felicidade. Em “Carruagem de Ouro”, Anna, ao se multiplicar, torna-se intimamente Anna. É uma alegria vê-la.
O riso apesar dos pesares. Renoir ilumina seu filme com a luz dos quadros de seu pai. Emoldura as cenas, à guisa de quadros. Cria versões moventes do tocador de flauta adorável que o pai agigantou numa tela, coloca-os a dar cambalhotas no palco da commedia. Transforma quadros em telões de teatro. Coloca Renoir a conviver com a Commedia dell'Arte e mergulha um e outro nas melodias de Vivaldi. A mescla dá nova vida à tradição, inserindo nela o cinema, arte ainda tão jovem. Acima de tudo, apresenta a arte não apenas como metáfora da vida, mas como sua germinadora.
Influências tão várias fazem brotar uma obra cheia de originalidade, alegre como os acordes das “Quatro Estações” que a abrem e a semeiam. Ensolarada, mas também agridoce, como se quisesse lembrar que Verão e Inverno sucedem-se incontornáveis no curso dos tempos.
“Carruagem de Ouro” é precioso por qualquer lugar que se lhe pegue: enquanto incursão de Anna Magnani no idioma de Shakespeare, enquanto apropriação da Commedia dell'Arte, enquanto encenação da aguda influência que a pintura do Renoir pai exerceu sobre o filho cineasta, enquanto exercício metalinguístico, enquanto exemplar do gênero cômico...
Magnani encontra aqui terreno amplo para mostrar a superlativa artista que era. Obrigada a falar inglês, a vera italiana tinge a língua de um sotaque forte, que bem combina com a personagem que leva à cena – sempre a reclamar, pródiga na gesticulação, do idioma arrevesado que a obrigam a aprender para ganhar a América. Ela é Camilla na vida e Colombina na arte, Colombina na vida e Camilla na arte, neste interpenetrar que transforma a atriz na personagem e injeta na personagem a seiva da atriz. O corpo que ganha as vestes do tipo encenado é nu de roupas mas prenhe de espírito. Na impossibilidade de a atriz despir-se de sua carne e de sua alma, ela se cede um pouco ao novo “eu” que a habita, não sem deixar de pegar um pouco dele para si.
Camilla é, assim como o arquétipo de Colombina, pobre, fogoza e matreira. Na cena, ajuda a namorado Arlequim a proteger sua patroa e o apaixonado desta das garras do pai da mocinha. Na vida, desdobra-se entre vários amantes que ela respeita e ama com fogo e amor análogos. E é, como o arquétipo que alimenta em cena, ardilosa na hora de administrar tantos amantes. Este entremear de arte e vida emerge na mise-en-scène de Renoir, no deslizamento da câmera do palco onde desenrola-se a peça para os bastidores nos quais Camilla luta para defender as joias recém-ganhas do Vice-Rei da sanha do oficial espanhol (companheiro com o qual ela fizera a travessia da Europa à América); ou na casa de Camilla, transformada em palco, com seus tortuosos caminhos e inúmeras portas por detrás das quais ensaiam cantores, atores, guardam-se figurinos e escondem-se amantes.
O filme se inicia como se fosse teatro. A cada abrir de cortinas sucede-se um quadro onde o acontecimento tem lugar. O teatrinho onde a troupe se apresenta é miniatura da casa-palco de Camilla, onde todos permanecem usando seus figurinos de teatro. Se lá Camilla torna-se a grande senhora, ela assume seu novo papel ainda com algo do espírito de Colombina: fogoza e expansiva, doce e romântica; pródiga de atenções para com seus apaixonados (todos).
Anna Magnani constrói com maestria a mulher múltipla, ela que o fora cabalmente, na arte e na vida. Vemo-la tingida de corpo e alma do Sol da Itália, bela e forte como uma donna daquelas paragens. “Mamma Roma”, a metáfora de seu chão. Libertária como sua personagem de “Roma, cidade aberta”, hilária como a sua Gioia do impagável “Risate de gioia”, a encarar cantando as pedras do caminho, já que seu elemento era a felicidade. Em “Carruagem de Ouro”, Anna, ao se multiplicar, torna-se intimamente Anna. É uma alegria vê-la.
O riso apesar dos pesares. Renoir ilumina seu filme com a luz dos quadros de seu pai. Emoldura as cenas, à guisa de quadros. Cria versões moventes do tocador de flauta adorável que o pai agigantou numa tela, coloca-os a dar cambalhotas no palco da commedia. Transforma quadros em telões de teatro. Coloca Renoir a conviver com a Commedia dell'Arte e mergulha um e outro nas melodias de Vivaldi. A mescla dá nova vida à tradição, inserindo nela o cinema, arte ainda tão jovem. Acima de tudo, apresenta a arte não apenas como metáfora da vida, mas como sua germinadora.
Influências tão várias fazem brotar uma obra cheia de originalidade, alegre como os acordes das “Quatro Estações” que a abrem e a semeiam. Ensolarada, mas também agridoce, como se quisesse lembrar que Verão e Inverno sucedem-se incontornáveis no curso dos tempos.
3 comentários:
Análise muito pertinente, Dani! Adoro esse filme, especialmente as cores. E, claro, a sempre excelente Anna Magnani.
Beijos
nossa, pelas fotos postadas, parece ser bem teatral mesmo esse filme. Imagino um filme bem fora dos padrões hollywoodianos, bem arte mesmo! bjs
Lê, obrigada! A Magnani não é genial? Das maiores de todos os tempos.
Maira, é totalmente fora dos padrões, embora de Hollywood tenha saído muita Arte (com A maiúsculo). São dois tipos de linguagens diferentes e este é bem pessoal. Acho que você vai gostar.
Bjs, meninas!
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