sexta-feira, 26 de dezembro de 2014

Mommy (2014)

Certos filmes não se deixam dissociar de sua trivia. Exemplo é “Mommy”, obra saída da batuta de um garoto de 23 anos, Xavier Dolan (também autor do roteiro). É um filme de largo fôlego. Surpreendente (mesmo meio exasperante), que algo tão bom tenha saído de alguém tão jovem. Lembramo-nos de Orson Welles, que não muito mais velho pariu um monstro – “Cidadão Kane” (1941), obra que revolucionou Hollywood à época. 
Xavier Dolan no set com Anne Dorval
O jovem diretor canadense herdou do confrade norte-americano a megalomania e o talento. O caso de Dolan é, no entanto, mais espantoso. Embora tenha estreado no exercício do longa-metragem com “Kane”, Welles já havia experimentado na direção de alguns curtas e tivera uma intensa experiência no teatro. Era, no final das contas, um produto dos anos de 1940 – self-made man, a trocar o banco escolar pela vivência empírica do métier. Amadureceu e adquiriu erudição cedo, como não era incomum então. 
Já Dolan é um prodígio. 
O século XX foi se infantilizando e desletrando com o galgar dos anos, como bem sabemos. Portanto, impressiona que o menino de 17 anos tenha decidido trocar a faculdade pelo cinema e sido capaz, já aos 23, de erguer uma carreira digna de nota. Se lhe falta erudição cinematográfica, sobram-lhe criatividade e frescor de observação. 
Antoine-Olivier Pilon
A obra de Dolan se debruça sobre o universo jovem, deslindando temas que tangem mais ou menos fortemente a esfera da autobiografia. Mais do que fruto da arrogância – pecha que a crítica brasileira já lhe impingiu –, a escolha se deve à compreensível imaturidade do autor e à sua ausência de erudição cinematográfica. Com o tempo, sua objetiva se voltará ao outro. Movimento que já se observa: se em “Eu matei a minha mãe” (2009) e “Amores imaginários” (2010) o diretor acumulava o papel de ator principal, em “Mommy” ele se retira em prol de Antoine-Olivier Pilon, protagonista de seu curta “College Boy: Indochine” (2013). 
As escolhas estilísticas e dramatúrgicas também se sofisticaram. Em “Mommy”, como em “Eu matei a minha mãe”, o cerne é o relacionamento entre mãe e filho – a ótima Anne Dorval desempenha ambos os papéis, e, pela constância da parceria entre ambos, deve funcionar como uma espécie de mãe substituta do diretor, no âmbito cinematográfico. Todavia, se ambas as relações são tumultuosas, a retratada em “Mommy” poreja não só tensão, mas profundidade e poesia. Embora os dois filmes olhem o mundo pelos olhos dos filhos, no último a subjetiva mistura as vivências do protagonista adolescente às do diretor, já um homem. 
Xavier Dolan fez uma escolha estilística decisiva para que o júri de Cannes o tenha pareado ao mítico Jean-Luc Godard, mestre da Nouvelle Vague que este ano surpreendeu novamente com “Adieu au langage” (2014), experimentação no 3D: restringiu em 2/3 o tamanho da tela de projeção. O cinema, janela do mundo, torna-se, em “Mommy”, a fresta que dá a ver o mundo do garoto-problema Steve Després. Sucedânea de seus olhos, a câmera detém-se nas minúcias do que ele enxerga. 
A escolha restritiva – este filme, como o de Godard, são obras para o cinema, daí a simbologia da escolha de ambas pelo júri do festival francês – denota invulgar autoconfiança do autor, além de um bem-vindo sopro de inventividade. A decisão formal resvala com força dramática para o âmbito da temática: a enxutez do quadro recria para o público o mundo restrito em que habita o superexcitado personagem – cerceado pelas restrições que a doença lhe impõe; os muitos planos aproximados dão intensidade ao recorte. O mundo de “Mommy” é feito das sensações de Steve: desde sua saída do centro de correção, ao dia-a-dia turbulento com a mãe (por quem ele nutre um amor doentio), à convivência paulatina com o outro – notadamente a vizinha Kyla (Suzanne Clément). 
A câmera oscila entre a grande beleza de alguns quadros e os excessos de outros. A grandiloquência calculada não deixa, no entanto, o filme cair no maneirismo. 
Dolan tem olhos excepcionalmente treinados para a sua idade. Sua câmera inventa o mundo; ele segura firme as suas rédeas. A casinha decaída recém-alugada pela mãe (Anne Dorval/ Diane Déspres) é vista com grande sensibilidade pelo menino vindo do reformatório: os cortinados e a tapeçaria tomados por uma câmera acariciante, a dar tessitura de seda aos primeiros momentos de mãe e filho na casa nova. 
O olhar é extensivo à figura materna, amada e vilipendiada com passionalidade análoga pelo garoto. Dolan projeta suas nevroses em toda a sua obra. A bela sequência de Anne Dorval sob a macieira da casa, a degustar o fruto recém-colhido, será sucedida por uma feroz contenda entre mãe e filho; e assim sucessivamente – o filme, como a obra toda do diretor, pontua-se desses altos e baixos. O rapaz trabalha com interesse os fantasmas inerentes à fase de transição da adolescência para a vida adulta, que todos nós já vivenciamos com intensidade maior ou menor. 
Kyla/ Suzanne Clément
Um dos pontos altos de Xavier Dolan é sua sensibilidade no trabalho com os atores. Os três principais estão ótimos. Anne Dorval e Suzanne Clément, sobretudo, a primeira, derramada, a segunda, contida: contrapontos perfeitos uma da outra. No relacionamento entre ambas, e delas com o menino Antoine, Dolan impregna a película de humanidade. Em detrimento da grandiloquência pontual, o diretor põe em debate as relações humanas com sensibilidade e verossimilhança, sem o sentimentalismo barato costumeiro nos filmes que retratam a relação da criança-problema com o seu entorno. 
A delicadeza com que Dolan apreende suas atrizes é muito bem representada pela sequência que apresenta Suzanne Clément: pela câmera que deixa a mãe e o filho ruidosos e, penetrando na casa da vizinha Kyla, perscruta silenciosa o seu entorno, quiçá procurando compreender o que teria feito a professora perder a voz. Daí por diante, atam-se os percursos do trio, a experimentarem as alegrias e os sofrimentos do relacionamento recém-construído. 
Cabe, por fim, recomendar o filme pela sua qualidade sonora. O Canadá de ascendência francesa tem uma especificidade quando comparado ao país de quem herdou a língua. Enquanto que a França repudia e/ou pisoteia o inglês, ele (o filme foi realizado no Quebec) abraça o idioma de bom grado. Dolan não nega a sua juventude. Sua obra transpira cultura pop, e “Mommy” não é diferente: mistura a língua francesa e a inglesa, os cancioneiros estadunidense e canadense. O resultado é um cosmopolita filme em francês, que muito merece a nossa visita atenta.

sexta-feira, 28 de novembro de 2014

Mil vezes boa noite: das seduções de um mundo em ruínas

Algumas vezes o cinema se impregna de visceralidade tal que se torna, pelo espaço de duas horas, o espelho dos meandros mais tortuosos das nossas almas. Digo isso depois de ver e rever “Mil vezes boa noite” (Tusen ganger got natt, 2013), ótimo filme de Erik Poppe, com uma Juliette Binoche de intensidade estonteante, secundada por um Nikolaj Coster-Waldau cheio de equilíbrio e uma jovem atriz com méritos de veterana (Lauryn Canny, em sua estreia no métier). 
“Mil vezes boa noite” fala de guerra. Daquelas travadas entre dois grupos oponentes, visando à supremacia de um sobre outro (governos versus grupos terroristas; governos versus civis; tribos rivais, etc.). Porém, sobretudo, daquela travada dentro de nós mesmos, silenciosa, mas nem por isso menos brutal. 
Juliette Binoche é Rebecca, francesa radicada na Noruega, fotógrafa de zonas de conflitos com marido e duas filhas pequenas. Seria a mocinha modular, à moda das heroínas americanas de guerra (uma delas, a Hana de “O Paciente Inglês”, deu-lhe mesmo um Oscar de Melhor Atriz Coadjuvante), não se digladiassem dentro dela, em medidas análogas, o horror à barbárie e a incontrolável atração pelas situações-limites. 
É a clássica sedução do perigo – que movimenta o turismo de aventuras, dá altos retornos financeiros aos divertimentos radicais dos parques e arrasa multidões aos filmes-catástrofes; entretenimentos que oferecem ao público a possibilidade de viver em dimensão controlada as situações de tensão – que leva Rebecca a abandonar a família rumo aos fronts de batalha; para fruir a vivência do terror, desta vez empiricamente. 
Juliette é uma atriz experimentada. As heroínas convencionais são para as meninas – para as atrizes meninas; para as mentalidades meninas. A sinceridade com que ela traja as vestes da personagem, despindo-se de melodramatismos, e o despudor com que num só tempo bebe o sangue dos sujeitos que retrata e chora por eles, tornam-na a projeção de cada um de nós, da integridade que desejamos ostentar e das taras que procuramos esconder. 
A ambivalência se estabelece durante todo o curso da narração, com profundidade rara no cinema contemporâneo. O filme promove uma dissecção nas personagens de primeiro plano que me lembro de ter visto pela última vez em “Separação” (2010). 
Quem é Rebecca? A fotografa brilhante, vista como heroína pelos colegas de trabalho? A mulher cuja vida familiar é marcada pelas despedidas: esposa apaixonada porém ausente; mãe que amarga a culpa de não acompanhar o crescimento das filhas, não por amá-las de menos, mas por ser incompatível à maternidade padrão. Como ao casamento padrão. A mulher que busca transcender os limites do próprio corpo, como se quisesse fugir dele: dos mergulhos nas águas geladas do mar invernal norueguês, às corridas exaustivas a que se submete, estando ainda por cicatrizar das feridas abertas pelo último atentado a que presenciou. 
“Não podemos fugir do que somos”, ela diz ao esposo. Seu repúdio às marcas da violência que dilaceram os rostos dos outros – marcas que ela com tanto talento registra – convive dentro de si com uma sanha de atividade que a leva a querer mover-se; em detrimento das marcas que ela própria deixa pelo caminho – como a obrigação que impõe ao marido e à filha mais velha de viverem na contínua iminência de sua morte. 
É a gana de aventura, a “raiva não sei do quê” - que desde sempre habitava dentro de si – que a fazem tão boa. Rebecca, fotógrafa excepcional enquanto não se deixa envolver emocionalmente por aqueles aos quais fotografa, vê-se reduzida a frangalhos quando a filha lhe volta a objetiva, fotografando a mãe austera até que a transforma em objeto. Doravante, a profissional de sangue frio ganhará uma emotividade que, se a aproxima daqueles que constantemente a esperam em casa, também a incompatibilizará ao ofício. No rincão do Oriente Médio, Receba é incapaz de fotografar a menina-bomba que se prepara para o holocausto. A fotógrafa dá lugar à mãe. 
Mãe que, a certa altura, percebe ter se transformado no espelho da filha. Retorna de uma de suas constantes viagens para ver a garota prematuramente amadurecida. Também artista: desenhista, a traçar com o lápis o rosto morto da mãe, registro de um fato que cedo ou tarde acabaria por se consumar. Steph quererá seguir os passos de Rebecca. Descobrirá com ela os primeiros prazeres e temores das zonas de conflito, e semeará na mãe o temor primevo de perdê-la – explicitado na cena em que Rebecca vê a adolescente afegã ser preparada para morrer. 
O filme tece cinematograficamente a ambivalência, construindo imagens – fotografias e sequências – que primam num só tempo pela beleza e pelo horror. Rebecca desejava fazer os leitores de seu jornal engasgarem com os terrores que registrava; faz sua câmera funcionar à guisa de arma, transformando-se, ela, em soldada dos oprimidos; mas muitos daqueles que ela registra transbordam fotogenia. A sequência inicial, com o velório de uma mulher afegã viva – para que as rezas não se dirigissem a um corpo destroçado –, o último banho da vítima, a encomenda de sua alma ao seu Deus, e a impassibilidade com que a fotógrafa acompanha o evento antes e depois da explosão - ferida e amarfanhada -, é das mais belas rodadas nos últimos tempos. Ao iluminar os éthos guerreiros das duas mulheres, alinhando-as uma à outra, a sequência leva os espectadores a questioná-las a ambas. 
Ao mesmo tempo, as cenas da intimidade familiar dão-nos um estranhamento que também é o da protagonista, mais acostumada às suas “roupas que cheiram a morte” que à casa acolhedora da família. Embora breves sopros de felicidade façam resplandecer o belo rosto Juliette – a fotogenia em pessoa – a casa é sempre o âmbito da passagem, suas paredes a ecoarem despedidas.

sábado, 8 de novembro de 2014

Música & Cinema no SESC Pinheiros

Foi com nostalgia que recuperei a resenha da exposição francesa "Musique et cinéma", escrita quando eu recém voltara de Paris. E os comentários dos amigos blogueiros. A Letícia, da Crítica Retrô, sonhava: “Quem sabe um dia não temos a sorte de vir uma exposição dessas para o Brasil?”. Sonho de realização improvável, mas não impossível. Prova disso é que o SESC Pinheiros (São Paulo, metrô Faria Lima) acolhe agora (e até 11 de janeiro de 2015) uma porção considerável dela. 
O questionamento segue o mesmo: “Música & cinema: O casamento do século?”. E as respostas desdobram-se com a mesma formatação da Exposição original: a penumbra a mimetizar a sala de cinema; telas brancas a reproduzirem as sequências de abertura de filmes rodados entre os anos de 1930 e 2000; enquanto pequenos monitores apresentam sequências célebres (Clouzot a testemunhar Karajan regendo a Filarmônica de Berlim; Judy Garland num dos números musicais de “Nasce uma Estrela”, 1954...) e conta as histórias a eles relacionadas. É desusado me estender aqui. Remeto o leitor à tal resenha passada, que descreve a passo a exposição. 
Da criação da Cité de la Musique, não cruzaram o Atlântico os estúdios de brinquedo; os três telões a emergirem uma grande audiência nas obras inesquecíveis. A sala dentro da qual criadores explicavam proficuamente suas criações foram transformadas nuns poucos monitores a apresentar o depoimento de escolhidos: Ennio Moriconni, Michel Deville, Eduardo Coutinho.  
O resumo é eficaz. Se lima consideravelmente a voz de nomes fundamentais da música na Sétima Arte, como Michel Legrand (a quem o lirismo da obra de Jacques Demy muito deve), também dá voz à prata da casa – igualmente abafada na exposição francesa, diga-se de passagem. Chico, Vinícius, Caetano e Gilberto Gil deram corpo e alma a filmes mais ou menos populares: de “Ópera do Malandro” (1986) a “Lisbela e o Prisioneiro” (2003); de “Veja essa canção” (1994) a “Eu tu eles” (2000). A seleção deixa de lado os usos mais cerebrais da música, como aquele que ocorre em “O Som ao Redor” (2012), para concentrar-se, sobretudo, na canção. Daí, pede a voz Eduardo Coutinho, cuja última obra, “As Canções” (2011), recupera as trilhas-sonoras das histórias de anônimos. 
O sempre sagaz Coutinho vê as vidas dos brasileiros indissoluvelmente imbricadas nas canções. Um mundo emerge dessa consideração: a revolução tecnológica que tornou possível a invenção do fonógrafo, do cinema e do rádio, que engatilhou a cultura de massas, alavancou a popularização da música enquanto item fragmentado de consumo: nos 78 rotações, nos salões de bailes dos bairros, numa variedade crescente de gêneros que aproximavam os corpos, relaxavam os costumes severos de outrora e davam voz a uma massa a quem o acesso à música clássica era impossível. Nosso século XX teve a honra de parir Cartola, Irving Berlin, Adoniran Barbosa, Cole Porter, Vinícius, George Gerswhin, Catullo da Paixão, nossos Beethovens. 
O cinema acolheu de bom grado a popular canção, sua contemporânea. A Exposição apresenta algumas das primeiras tentativas de se sincronizar som e imagem: O "Chronomégaphone Gaumont", de 1906, apresentava números musicais curtos. São da época gravações de canções populares e de trechos de óperas, reduzidos às suas mais célebres árias. 
Enquanto que, ao longo dos anos 1895-1920, instrumentistas e orquestras maiores ou menores tocavam antes, durante e/ou depois das exibições cinematográficas, além de ritmarem, dos bastidores, os affairs imaginários das estrelas silenciosas das telas (observem o violinista e a pianista que tocam para criar o mood romântico em Garbo e Nagel, n’“A Dama Misteriosa”). 
Música e cinema: o casamento do século? Um dos mais auspiciosos, por certo. Se lágrimas nos subirem aos olhos aos primeiros compassos de “Moon river”, será possivelmente porque nos lembraremos de Audrey Hepburn flanando suave pelas ruas sonolentas de Nova York, ao despertar da cidade (e de “Bonequinha de Luxo”, 1961). 
Nunca o prelúdio de Tristão e Isolda me soou tão pungente quando no momento em que fui interpelada pelo desespero de Kirsten Dunst, em “Melancolia” (1961). A música nos toca a todos menos por seu propalado “sentido universal”, e mais porque ela ganha subitamente tradução num rosto, num gesto, num acontecimento – quer sejam naqueles criados pelo cinema, que nos são dados sem pejo fitar, quer seja naqueles construídos pelos nossos cinemas individuais, nas canções que embalam as pessoas e os momentos que nos são queridos.
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SESC Pinheiros: Música e Cinema: o casamento do século?
De 20 set. 2014 a 11 jan-2015
R. Paes Leme, 195. São Paulo (metrô Faria Lima)

quarta-feira, 15 de outubro de 2014

Shakespeare na Broadway: “A Megera Domada” segundo Cole Porter

Hollywood soube como ninguém devolver Shakespeare à sua substância espetaculosa e popularesca. Bom exemplo disso é Kiss me Kate (Dá-me um beijo, George Sidney, 1953), adaptação cinematográfica do musical da Broadway de sucesso impressionante na Nova York da virada dos anos de 1940-1950: foram 1077 performances entre 1948 e 54 (e um Tony Award em 1954). A peça promove uma releitura da shakespeareana A Megera Domada de multiplicada verve, já que, além de se aproveitar do humor inerente à obra do bardo, inspira-se nas rusgas reais ocorridas entre o célebre casal Alfred Lund e Lynn Fontane, nos bastidores da montagem da Megera..., na Broadway de 1935. 
Kathryn Grayson é Catarina em cena
Dorothy Kingsley realiza a adaptação do texto à cena musicada, Cole Porter responsabilizando-se pelo score enquanto letrista e músico. O resultado é grandioso. O texto é bem-humorado e inteligente, a alinhar com ritmo pulsante e indisfarçada ironia a comédia elegante, os desdobramentos de pretensão policialesca e o discurso metalinguístico. E a música enfeixa o que de melhor Cole Porter já compôs: “So in Love”, “Too darn hot”, “Why can't you behave”, por exemplo, inscritas no imaginário ocidental graças às interpretações de gente como Frank Sinatra e Tony Bennet (André Previn e Saul Chaplin concorreriam ao Oscar pela direção musical do longa). 
O enredo se apropria frouxamente do ocorrido entre o casal Lund e Fontane, com a diferença de que, aqui, a obra de Shakespeare é relida para um contexto contemporâneo, de vicissitudes amorosas, jazz, coristas picantes de teatro cômico-musicado e pseudo-gangsters – apropriação das várias facetas da cena cultural norte-americana de virada do século. A leitura é, como eu disse, metalinguística. Tematiza a montagem da tal adaptação de A Megera Domada, centrando-se em três momentos específicos: a escalação do elenco, os instantes antecedentes à estreia do espetáculo e, enfim, a récita (cerne do filme). 
Cole, Lili, Fred e Lois
A ideia não é nova. Basta lembrarmo-nos de Judy Garland e Mickey Rooney “putting on a show”, naquele conjunto de filmes que rodaram entre fins de 30 e princípios de 40. A estratégia narrativa, que garantia aos filmes maiores liames com a realidade (afinal, a inserção dos números musicais pareceria mais verossímil quando relacionados diretamente à ação dramática), marcharia com vigor pelos anos de 1940 e 1950 a fio: Cantando na chuva (Singin' in the rain, 1952) e A Roda da Fortuna (The Band Wagon, 1953), já tratados aqui no blog, são apenas os exemplos mais notórios. As cinematografias de Carmen Miranda e Doris Day, por exemplo, estão coalhadas de exemplos do tipo. 
Bianca/Lois e os três pretendentes
A novidade está na imersão da obra na estética teatral e no seu campo simbólico. Cole Porter, que então fenecia (ele sofria havia anos com as sequelas de um acidente que lhe destroçara as pernas), torna-se personagem, compositor do score também na diegese do filme – homenagem sensível, ainda que bem-humorada, a um dos pais do cancioneiro americano. Ele (Ron Randell no filme) apresentará pessoalmente a obra à Lili Vanessi (Kathryn Grayson), a egocêntria estrela de primeira grandeza da Broadway cujo coração de pedra estilhaça-se tão logo seu ex-marido Fred Graham (Howard Keel) enceta consigo o dueto de “So in love”. No fundo, ambos são dois românticos – descobriremos nos instantes antecedentes à estreia, enquanto, cantando o número executado pelos protagonistas de certo espetáculo no qual não passavam de coristas (“Wunderbar”), lembram-se dos anos de início de casamento, quando viviam na penúria mas sobrava amor. 
Porém, qual caixa de Pandora, a doçura subjaz à infinidade de cobras e gafanhotos que brotará de suas bocas (e gestos) ao longo do filme – e da peça dentro do filme –; neste palmilhar de mão-dupla que a arte e a vida perfazem. Já na primeira parte da trama, o idílio de “So in love” é quebrado com a entrada da terceira ponta do triângulo amoroso. Ann Miller (Lois Lane), a nova namorada de Graham, a quem caberá o papel de Bianca na peça, surge peremptoriamente apenas para dançar ao grupo “It's too darn hot”: sobram pernas, desembaraço e sensualidade; nascendo do conjunto a animosidade de Lili pela jovem que desempenharia sua irmã mais jovem – potencializada animosidade, já que existente dentro e fora da cena. 
Prepara-se a tensão para a porção central do filme, a récita e estreia, quando os nervos já à flor da pele serão tangidos por infindos quiproquós. Lois Lane mantém um segundo namorado, por sinal, seu par-romântico também em cena, rapaz de moral duvidosa responsável por plantar nos bastidores do teatro (e surpreendentemente também na cena teatral) uma dupla vinda do submundo do crime; enquanto que Lili Vanessi está de casamento marcado com Tex Callaway, um rei do gado texano que a tiraria do burburinho nova-iorquino rumo à vida rural que ela pedira a Deus – uma falácia, claro: quem imaginaria a classuda primadona tangendo bois nalgum rincão? 
Na peça criada na diegese do filme, A Megera Domada torna-se palco da exacerbação de uma tensão sexual crescente: realizada diante do público de forma simbólica; eliminada catarticamente. Catarina agride Petrúquio, que agride Catarina: a violência vigorosa, matizada por demonstrações pontuais de afeto, torna-se um sucedâneo da relação sexual. Kathryn Grayson e Howard Keel, pares românticos ocasionais na Hollywood de então, encontram-se como nunca nesses papéis: a pequeneza e a ruivice combustiva da atriz como contraparte à masculinidade do enorme galã. 
Kiss me Kate destaca-se dos filmes do gênero rodados no período ao dar um passo além do romantismo asséptico que lhes era comum. A originalidade espraia-se para o modo como as canções costuram-se à trama. A adaptação da peça ao cinema não lhe elimina a vocação teatral, daí a primazia às canções em detrimento do texto falado. Também, a invulgar relevância dada à coreografia. 
Em cena, Bob Fosse e Carol Haney
O filme encena a história da dança popular americana, iluminando-lhe mesmo umas possibilidades de futuro auspicioso: a dança de salão, o balé, o sapateado, coreografados por Hermes Pan (o histórico partícipe das stravaganzas de Ginger Rogers e Fred Astaire ganha até mesmo uma afetuosa aparição solo), dividem espaço com a experimentação; o breve número musical coreografado e dançado pelo grande Bob Fosse apresentando-o para o mundo. Na história do cinema musical norte-americano, Kiss me Kate está no meio do caminho entre Cantando na Chuva e Cabaré  (1972). Glorioso, como um e outro.

segunda-feira, 6 de outubro de 2014

Garota Exemplar/ Gone Girl (2014)

Fui ver o lançamento cinematográfico sobre o qual corre, atualmente, um rio de tinta: Garota exemplar, título nacional (estranho) para o norte-americano Gone Girl, filme adaptado do bestseller homônimo de Gillian Flynn e dirigido pelo ótimo David Fincher. Não conhecia o livro – que, parece, levantou tanta celeuma quanto as sagas Potter e Crepúsculo e o romance açucarado A culpa é das estrelas. E, aproveitando que eu estava vivendo como que numa caverna nos últimos meses, decidi continuar na ignorância no que tocava à sua trama até que eu cruzasse pessoalmente com ela, numa sala de cinema. 
O filme é interessante. Não é, porém, a nota 8,7 que lhe atribuíram no IMDB. Estou alheia ao burburinho impresso e televisivo desde que, para dar conta de minhas obrigações acadêmicas, decidi parar de ler/ver jornais, cinco meses atrás. Mas conheço bem demais a dinâmica de mercado, que alça a literatura popular aos píncaros do sucesso, impondo-lhe qualidades que ela está longe de ter, como se o topo nas listas dos "mais vendidos" lhe impregnasse - como consequência óbvia - de valor artístico. 
Os fãs do livro não estão correndo ao cinema em vão. O que também não significa que o filme seja uma obra-prima, claro. Primeiro porque não é impossível de sacarmos a trama, uma vez que a gente conheça um pouco de cinema. A obra é dividida em duas partes: 
1- Um Nick Dunne (Ben Affleck) frustrado encontra a irmã no bar de ambos, no quinto aniversário de casamento dele. Seu relacionamento vai pior que nunca – quem ganha o presente é a irmã, um daqueles jogos de tabuleiro dos anos 80, lembrança da infância de ambos (e do infantilismo de Nick, talvez, elemento que poderia – mas não é – trabalhado, para o bem da complexidade da narrativa). Voltando para casa, ele descobre o local remexido e a esposa desaparecida. Não parece se incomodar muito, até que a polícia imiscui-se no caso e ele se torna o principal suspeito de sua morte. 2- Acontece que Amy Dunne (Rosamund Pike) não está morta, tampouco foi suprimida à força de sua casa. Ao contrário, a moça forjou seu suposto assassinato até às últimas consequências, apenas para se vingar do marido que a havia humilhado, o qual ela queria ver acusado e morto (pelas leis do Missouri, onde ocorrera o suposto crime, o assassinato é punido com a cadeira elétrica). 
A narrativa cinematográfica não vai mal. Mas, depois de vermos o desenho do entrecho, fica claro que há, aí, muito barulho por nada... Que as muitas explicações visando a um pretenso realismo dessa história mirabolante apenas torna mais aparente as suas fissuras e, então, a sua tolice fundante. O seu modelo espiritual – e eu bem possivelmente estou superinterpretando – é Um corpo que cai (Vertigo, 1958). O personagem principal é enredado até às últimas consequências na encenação que a sua contraparte forja. Outro filme recente fez o mesmo, de modo mais tolo, prolixo e tedioso ainda: O Melhor Lance (La Migliore Offerta, 2013, doutro grande diretor, Giuseppe Tornatore). 
Garota exemplar é uma distração divertida, mas não passa disso. Ben Affleck é alto e bonito de se ver, mas não se pode negar que seu elemento seja mais a direção (ou o roteiro) que a atuação. O branco que ele imprime à sua encenação até que colabora, no início, para dar alguma ambiguidade ao seu personagem. Mas a densidade necessária a ele – sobretudo na terça parte da história, quando a esposa volta e ele deseja permanecer consigo, a despeito de tudo – nunca emerge. Já Rosamund Pike está bem melhor. O desafio do atual cinema-pipoca norte-americano – falo deste que tem pretensões ao Oscar e, portanto, se faz com um pouco mais de cuidado; do restante não vale a pena nos lembrarmos – é vencer os estereótipos: colocar os belos a interpretarem papéis execráveis, sem que para isso precise enfeá-los no exterior. Doris Day-like Rosamund Pike faz extremamente bem a psicopata que esconde seu desvio atrás dos modos de boa-moça e da erudição. 
O roteiro tem furos exasperantes, em sua sanha autoexplicativa. Sem que a atuação de Affleck seja um primor, percebemos logo que a errada da história é Amy: Aquele marido probo é agressivo, vingativo, gastão? Não seria isso fantasia da esposa, que é, saliente-se, uma notória escritora de aventuras adolescentes? O diário em que a jovem desfiava os seus sofrimentos não seria uma obra de ficção, como tudo o que ela escrevera? Insiste-se demasiadamente num mistério que é mais ou menos uma obviedade. 
Já a terça parte do filme, que poderia se apropriar com alguma complexidade desses elementos, é vazia: Oras, afinal, naquele relacionamento o rapaz e a moça estavam sempre a interpretar! Eram dois personagens, como todos os criados por Amy até então! Partícipes na loucura, a montarem fábulas para tocarem a vida a dois! Toda a metafísica que poderia resultar disso se reduz, no filme, a nada. 
Aí está a mais patente diferença entre Garota Exemplar (ou O Melhor Lance) e Um corpo que cai: reduzem-se um e outro, à metafísica da pipoca – facilmente digestiva e que, independente do quanto a comemos, ainda assim nos deixa esfomeados, tão logo saímos da sessão.

sexta-feira, 19 de setembro de 2014

Era uma vez em Nova York...

Nova York, uma das cidades-fetiche do cinema, aparece nas telas paulistanas em três produções recentes: o indie Tudo acontece em Nova York (Swim little fish swim, 2013), produção franco-americana dirigida e protagonizada por Ruben Amar e Lola Bessis; o norte-americano Bem-vindo a Nova York (Welcome to New York, 2014) com Jacqueline Bisset e Gérard Depardieu; e finalmente, o objeto de nosso post, Era uma vez em Nova York (The Immigrant, 2013), produção norte-americana protagonizada por brilhantes Marion Cottilard e Joaquin Phoenix e dirigida com pulso por James Gray. 
A metrópole surge, aqui, em tons lúgubres. A história se passa nos albores dos anos de 1920, época de intensa imigração de europeus à América. Centra-se na polonesa Ewa Cybulska (Cottilard), que, como tantos, fugiu da minguante Europa do pós-guerra rumo ao promissor mundo novo representado pelos Estados Unidos. 
Ewa desembarca numa das ilhas adjacentes à cidade com a irmã Magda, jovem frágil e doente. Sua Via-Sacra começa tão logo ela aporta. Principia por se ver apartada da irmã, vítima de tuberculose (portanto, objeto de quarentena) para, em seguida, ser ameaçada com a extradição, devido à conduta moralmente repreensível que supostamente tivera a bordo. Sem família que a protegesse – os tios naturalizados americanos não aparecem para buscar as irmãs –, temerosa de se distanciar de Magda, Ewa aceita o auxílio de Bruno Weiss (Phoenix), que, de passagem pelo local, surpreendentemente se interessa por sua situação. 
Como se é de supor, Bruno não é o filantropo que aparenta. Após abrigá-la, convoca-a a tomar parte nos espetáculos burlescos que ele dirige, num reles café-concerto da cidade. Dali à prostituição é um pulo. O palco serve de vitrine às jovens, vendidas, depois, a granel, ao público frequentador do local. Puritana de trato, Ewa vê-se, em cena, transformada na alegoria da Estátua da Liberdade: fantasia que num só tempo metaforiza seu declínio àquela sorte de espetáculos “livres”, em que a exibição do corpo nos palcos prenunciava os prazeres do leito, e serve de ironia à sua situação de cativeiro – torna-se cada vez mais atada a Bruno, cujos contatos na imigração poderiam salvar a vida da irmã, e cujos clientes arregimentados lhe garantiam o pão. 
A trama acena em razoável medida ao melodrama, como se observa. A novidade, aqui, é o burilamento bastante acima de média dado às personagens de Ewa e Bruno, graças tanto ao roteiro quanto aos méritos pessoais desse excelente par de artistas que é Marion Cottilard e Joaquin Phoenix. Ambos são, eu diria, o ponto alto desse filme já muito bem resolvido no que toca à fotografia, roteiro e direção. Aliás, Marion, em Piaf (2007), e Phoenix, em (por exemplo) Gladiator, já demonstraram capacidade invulgar de deslocar os caracteres epidérmicos deste gênero da obviedade rumo a inesperadas alturas. Phoenix desdobra diante das câmeras um de seus intermináveis (mas não por isso menos interessantes) enfants terribles – a exemplo do Leonard Kraditor de Two Lovers (de 2008, também sob a batuta de Gray) e do Freddie Quell de The Master (2012). Tais personagens passionais espelham – eu já o disse alhures– o tipo sanguíneo do ator, daí a ele fazê-los com tanta verdade. Marion, ao contrário dele, a despersonalização em pessoa, dá neste filme uma Ewa prenhe de ambiguidades: rígida e incandescente; Madalena com laivos de Virgem Maria, a galgar vacilante o caminho do inferno aos céus. 
Era uma vez em Nova York abraça aparentemente o enquadramento do Melodrama, mas alça alguns voos inesperados. Volve uma visada cristã à existência enquanto Via-Sacra do pecado à salvação. Mas tal leitura não é feita sem sobressaltos – daí o interesse do drama. O corpo da mocinha – dotado de pureza irretocável, segundo as convenções do melodrama –, é transformado, no filme, no altar onde se expiam seus pecados. Quanto mais “decaída”, tanto mais digna de nota aos olhos de Deus ela é. Todavia, malgrado a leitura deveras torta que Ewa faz do Evangelho, nesta história em que fatalismo e casualidade curiosamente dão-se as mãos, ainda assim é dado a ela vislumbrar a promessa de felicidade: traduzida pela tela bipartida onde se veem, num só tempo, a aproximação da sonhada Nova York e o afastamento do algoz. 
Aliás, achados cinematográficos e simbólicos do tipo exemplificam o cuidado de um filme preocupado em aliar tema e forma. Outros exemplos: A melancólica paleta do amarelo que o envelhece. A poesia de certos lampejos de reconstrução de época, a somarem o histórico e o fictício: Caruso (Joseph Calleja) levando sua arte aos imigrantes-prisioneiros; o ilusionista romântico (Jeremy Renner), graças ao qual a vida desgraçada da mocinha se impregna de alguma magia... E, enfim, o batom com que Ewa adorna os lábios, feito de seu sangue derramado – metáfora cabal dos amargores que subjazem à beleza da aparência.

domingo, 31 de agosto de 2014

“O Gladiador” (2000): Melodrama pagão

Foi com um misto de curiosidade e temor que revi, dias atrás, esse épico de Ridley Scott. Vi-o pela primeira vez na adolescência, época em que lia com afinco a revista Set e não perdia estreia alguma do cinema comercial. Adorei-o, então – como, aliás, também, a Academia, que o indicou a uma penca de Oscars (dos quais ele amealhou cinco: melhor filme, ator – Russell Crowe havia se tornado o queridinho de Hollywood no ano anterior, depois de seu desempenho notável em O Informante –, figurino, som e efeitos visuais). 
A revisão de um antigo blockbuster pode ser temerária, depois de tanta água passada por debaixo da ponte. Muita suposta obra-prima pode, no distanciamento temporal, revelar-se lixo, como bem lembra meu amigo Chico Lopes. Outras tantas, a pátina da nostalgia se incumbe de amaciar, e aí se atribuem valores insuspeitados a objetos suspeitos. Outras, ainda, aguentam-se sólidas à revisão. Exemplo desse último caso é Gladiador, porque, acho eu, ele submete os paetês visuais a algumas ideias norteadoras interessantes (já que ambíguas). Vamos a ele e a elas. 

Paradoxal crítica ao “Pão e Circo” e imposição da moralidade cristã na Roma antiga 

Em 180 d. C., momento em que se passa a história, o Império Romano espraiava-se do deserto da África até às bordas do norte da Inglaterra, submetendo aos seus domínios ¼ da população do mundo. A história tem início durante a campanha do imperador Marcus Aurelios contra as tribos bárbaras da Germânia. À breve contextualização se segue a etapa final do confronto, verdadeiro genocídio protagonizado pelo forte exército do César, contra um grupo acéfalo de germanos – grupo sanguinário e desdenhoso da preponderância política e bélica do seu opositor; e, daí, ansioso por lutar até a morte. O César, idoso e enfermo, observa descrente o recrudescimento da luta, a recusa dos perdedores a se renderem e a completa destruição daquele grupo. 
Maximus, o líder do exército, compartilha do sentimento de seu governante supremo. É um espanhol primevo (ainda demoraria às fronteiras dos países serem demarcadas como as conhecemos). Deseja voltar à mulher e ao filho pequeno, dos quais se separara havia dois anos, duzentos e tantos dias. Ele contava os instantes para revê-los – é curioso como o filme trabalha, em toda a sua extensão, a ambivalência da violência como espetáculo, recusando verbalmente a violência ao mesmo tempo em que avidamente a encena. 
Terminada a derradeira batalha, o César e Maximus se encontram. Mais uma porção de terra conquistada, mais inimigos mortos, quando isso terminaria? Eles falam sobre a “Paz”, escassa desde muito tempo. O general deseja rever os seus. Instado pelo velho, descreve em detalhes seus domínios: as flores no jardim, o pomar, a plantação de milho, os pôneis selvagens. É uma bela cena, em que caem as patentes e os dois homens desnudam suas almas. Por ali, acaba de se desenhar a imagem dos dois: Maximus é o herói (luta por honra e glória, lembra a seus homens que os “Campos Elíseos” os estarão esperando do outro lado da vida – esta visada cristã, travestida de politeísmo, é também uma constante no filme), o marido e o pai amoroso, um homem sem manchas; o César, decrépito e cético quanto aos caminhos de seu governo, deseja entregar o Império Romano ao Senado, transformá-lo aos poucos numa democracia. 

O Imperador convocara Maximus, na verdade, para fazê-lo porta-voz de seus planos junto aos seus senadores. Sabia que Commodus, seu único filho homem – natural herdeiro – não aceitaria sua decisão, já que desde muito ambicionava o posto do pai. A esta altura, o rapaz já chegara, e o público já pudera compará-lo mentalmente com Maximus. 
O filme é, como se vê, um desavergonhado dramalhão (sem que, com isso, eu queira incorrer em juízo de valor negativo): estabelece uma linha divisória clara entre os bons e os maus, cujos caracteres desenham-se desde os nomes que batizam os personagens (Maximus x Commodus), apenas fazendo-se realçar no decurso da ação. Ajuda muito o fato de os dois homens serem interpretados por dois grandes do cinema americano da época, além de Crowe, Joaquim Phoenix. Ambos conseguem excelentemente dar conta de seus papéis, incorporando-os para além da flor da pele. São econômicos nos gestos: Crowe tem uma voz rouca, seca e monotonal. Parece esconder do público um mundo, ao contrário dos heróis convencionais de melodramas. E Phoenix é de uma passionalidade incrível – tortura-se pelo desejo sexual (sempre sublimado) que tem pela irmã e constrói milimetricamente o ódio violento (também de laivos sexuais) que tem pelo pai: destaque para o modo como ele o mata. Como todo bom vilão de melodrama, Phoenix rouba a cena. 
Após a morte do César, Maximus vê abater-se sobre si a debacle que o gênero usualmente concede ao seu tipo. Ele é irrestritamente desgraçado. Depois de tomar o lugar do César, o filho assassino manda prender e matar o herói. O know-how militar de Maximus fá-lo, no entanto, dar cabo de um grupo de soldados contratados para a tarefa. Chega aos seus domínios apenas para descobrir sua mulher e filho mortos, assassinados pelo mesmo César mesquinho que tentara lhe tirar a vida (respeitando as regras do gênero, o novo César também galgará até o último degrau da escala de maldade). E enquanto lastima o passamento dos seus, é preso, transformado em escravo e, em seguida, em Gladiador – supostamente o pior destino possível, já que a morte era reputada certa para indivíduos de tal condição. 
Mas não para Maximus, uma máquina de guerra. Convocado a fazer parte das matanças, desta vez no âmbito do espetáculo, o herói não pode fazer nada senão compactuar. Naquele tempo, as arenas de gladiadores eram um entretenimento já consolidado. Não saberia dizer se havia um repúdio contra o costume, por parte da sociedade letrada de então. Santo Agostinho a execra, por sua violência aglutinante (ele narra que, tendo sido arrastado a um lugar desta sorte por um colega, tornou-se “um da turba”, vibrou, torceu, pediu mais sangue, só deixando de lado o vício quando encontrou Deus...). Parece-me, todavia, que o espetáculo era uma variante de teatro, com a diferença de que se encenava a violência vivendo-a, e não a fingindo, como ocorria no teatro. Mas essa é uma longa e complicada história... Aliás, as arenas de gladiadores eram um entretenimento que representava a guerra em microcosmo: o Império Romano foi bastante belicoso, não estranha que quisesse encenar a guerra fora dos domínios das batalhas reais. 
Enfim, tudo isso para pensar no deslocamento que o filme propõe, ao tratar o tema. Segundo seu enredo, o Senado, com toda a corrupção na qual supostamente está imerso (mas que nunca aparece efetivamente), é um braço limpo do Império, em contrapartida ao novo César, agora autointitulado "Ditador". Pois o Senado repudia os espetáculos de gladiadores, assim como o fizera o velho César, e assim como fazia Maximus (que só lutava para se manter vivo e, enfim, consumar sua promessa ao seu governante: de transformar o Império Romano numa democracia). Assim, por contiguidade, o próprio filme consegue realizar a façanha de pregar o fim da violência, ao mesmo tempo em que majestosamente a encena. Excelente trabalho do diretor Ridley Scott, em conjunto com os roteiristas David Franzoni, John Logan e William Nicholson. 
O interessante na ascensão meteórica de Maximus – que e torna uma espécie de “star” avant la lettre, a ganhar, agora, Roma e o célebre Coliseu – é que, com ela, invertem-se os ponteiros. Os gladiadores, escória daquela sociedade, tornam-se paulatinamente heróis. Uma cena clássica é quando os personagens mudam a “história” de certa batalha que encenam, já que, representando uma horda de opositores do Império, destroçam todos os indivíduos que desempenhavam papéis dos historicamente vitoriosos súditos romanos... 
Chegando a Roma, o acaso fará Maximus naturalmente se encontrar com o seu algoz, o que acentuará as características positivas e negativas de um e de outro, respectivamente. Commodus é obrigado a ouvir do sobrinho – e futuro imperador – que o menino desejava se tornar, não um legionário, mas um gladiador; estorce-se diante dos aplausos da turba ao seu inimigo mortal; e ainda precisa amargar o repúdio da irmã, que o rejeita (já que ela, bondosa, teme a sua megalomania crescente) e que ama o outro. 
Aliás, o par romântico necessário ao gênero é fornecido pela paixão que a filha do imperador nutre por Maximus – correspondida até certa altura da vida de ambos, como suas conversas nos permitem entrever. Ela procura ajudá-lo pelo amor que tem a Roma, mas sobretudo pelo que ela sente pelo homem. A união não pode se consolidar porque, diante da lógica criada pelo filme, a mulher e o filho de Maximus o estavam esperando nos Campos Elíseos. Se sempre o esperariam, certamente não iriam querer, no futuro, dividi-lo com outra mulher... 
Ele precisava morrer, para atingir, nos Campos Elísios, céu tão cristão, o cume da felicidade. Morrerá, no entanto, em “honra e glória” – seu lema desde o início do filme: matando o imperador (cujo infantilismo e loucura crescentes nos são muito bem pintados) dentro da arena, diante da turba a louvá-lo e estando claramente em desvantagem, já que o outro lhe cravara a lança nas costas (é um arrematado pulha, o filme não nos cansa de mostrar), esperando vantagem no combate. 
Ao fim, vemos Maximus recolhido da arena carregado pelos melhores homens do imperador, e recebido, no além-túmulo, pela mulher e filho. Commodus jaz no solo poeirento do Coliseu, onde acabará, estritamente transformado em pó.