O post anterior sobre a atriz esteve longe de fazer sucesso no blog. Fez, no entanto, incomensurável sucesso dentro de mim. Tanto que fiz a volta à web em busca de alguém que tivesse aquele tal “A luz dos meus olhos” (achei). E comprei, assim de rompante, ingresso para ver em Sampa uma “Cacilda” do Teatro Oficina (experiência memorável).
O dono de “Luz de meus olhos” (obra da Atlântida de 1947, como já anunciei) é José Carlos Neves, dono de um acervo de cinematografia e televisão brasileira e estrangeira extremamente bem fornido. Recomendo que os leitores em busca de alguma raridade o procurem e solicitem a relação de seus DVDs. A mim ele atendeu com presteza. Encontrei consigo, além do filme, um esclarecedor documentário sobre a atriz (da série “A Aventura do Teatro Paulista”, déc. de 1980).
O filme, como eu já havia anunciado amparada em Domingos Demasi, é uma chanchada-dramalhão. Obra de pouco mais de uma hora, com um aparente lapso de alguns minutos no meio (a qualidade da imagem é razoável), subaproveita a atriz. A trama se centra em Celso Guimarães e Grande Otelo, o músico cego e o rapaz que lhe serve de guia. Cacilda povoa a trama como imagem fantasmática; a musa inspiradora do artista, a quem ele conheceu enquanto estudante, na escola de música.
O flerte progride para um romance contado em flashback (e algo posado...), que degringola tão logo o rapaz descobre a doença dos olhos. Ele a abandona temendo que ela apenas fique consigo por piedade (the good old melodrama...). Reencontra-a por acaso, enquanto afina o piano da casa dela. A jovem reconhece a música que ele toca, já que foi para si que ele a compusera; desce as escadas ao seu encontro com o garbo de... de Garbo..., de Stanwyck, de Hepburn, daquelas damas a quem a lenda juntou-se ao nome e a gente só consegue enxergar encoberta pela névoa da divindade. Ela encobre os olhos – cegos – do amado (oh, sofrimento!). Por certo que ele descobre quem é. A surpresa quem experimenta é ela, quando descobre a verdade pelos olhos do – ótimo – Grande Otelo.
Aliás, que grande é Grande Otelo! A figura mais visionária dessa cena convencional; a dizer suas falas com uma fluidez que destoa do todo, talvez porque ele fora formado pelo teatro popular. Figura paradoxal. O nome é uma homenagem ao eterno mouro de Shakespeare? A grandeza da alcunha – que devia por a rir o público da época, justifica-se de sobra pelo gênio do artista.
Mas divago. Voltemos à Cacilda, nossa sofrida heroína (que fatalidade a fez cair nas malhas de tal trama, oh, céus?). A pobre menina rica tem um noivo. O antigo namorado, ainda inseguro com sua atual condição, foge de suas vistas, abandona o emprego e o guia para que ela nunca mais o encontre. Grande Otelo engatará um trabalho no teatro de revista, para onde leva a canção que dá título à obra. A essa altura, o noivo da moça, de uma abnegação ímpar, deixa-a e procura juntar o casal apaixonado (minha descrição talvez faça parecer que há um tratamento matizado nos caracteres; quando, na verdade, o que existe é uma inanição geral da trama).
A música é apresentada para uma Cacilda – digo, uma Suzana – sentada na primeira fila. O mocinho chega em cima da hora – ele era desde sempre contra a conspurcação de sua obra numa cena de teatro (...). E ambos acabam por se unir naquela cena final que vende a pipoca, que paga os artistas, que sustenta o cinema (William Holden + Audrey Hepburn em “Quando Paris Alucina”, lembram?) = o beijo. Con-ven-cio-na-líssimo, mas pelo menos temos alguns pés mais de imagens de Cacilda Becker.
Pano para a transcriação contemporânea da nossa diva. Em cena, o Teatro Oficina apresenta “Cacilda!!!” (as exclamações fazem juz à obra) – terceira parte da quatrilogia saída da fértil imaginação de Zé Celso Martinez Corrêa, lépido de corpo e alma, a negar em todas as 6 (seis) horas de espetáculo os seus setenta anos passados.
A quem não conhece a troupe do Zé Celso, recomendo uma visita ao prédio do Oficina. O lugar é emblemático. Espremido pelas construções que cresceram com a especulação imobiliária, abre-se à negação do jogo do capitalismo em prol do jogo dramático.
Daí as 6 horas de duração do espetáculo – ruptura com um suposto bom senso contemporâneo que pede arte em homeopáticas doses de um par de horas, a serem encaixadas entre os afazeres do dia-a-dia. Experimenta-se, ali, uma relação sui generis com a cena teatral. Rompe-se a quarta-parede (ok, isso já é comum); o palco vira passarela carnavalesca (apoteoses constantes); feito de andaimes, é espaço em eterna construção; o público participa da encenação, compartilhando empiricamente da vida e da morte de Cacilda, já que a vive ali entre a plateia/palco, espaços cujos limites se embaralham.
“Cacilda!!!” divide-se entre a fundação do TBC e os embates de 1968 (dos artistas de teatro pela queda da censura e proteção ao métier). Começa no plano superior, onde a artista encontra-se com seu Walmor (que coisas tão belas disse dela no documentário do acervo de José Carlos). Ali ele decide se matar para viver junto dela uma nova vida de palco. Cleyde também surge, fiel escudeira da irmã também na vida da morte.
Alude-se à eternidade da arte, assim como a segunda parte lê os protestos de 2013 no espelho de 1968. Força-se a relação, talvez, mas ao mesmo tempo se acena para beleza do homem combativo. O saldo é o renascimento de Cacilda, multiplicada em cena em “Pegas fogos” mil, na Carmen do Abílio Pereira de Almeida, no mendigo que espera infinitamente Godot, em tantas outras personagens, em cada um de nós que a ajuda a vivê-la naquela noite. No galpão do Oficina, Cacilda vive.
E então, ecoa uma canção. Conheço-a de algum lugar. Fico sabendo que José Miguel Wisnik a compôs para “Cacilda!”, a primeira Cacilda do Oficina. Ouvi-a infinitas vezes na voz de Maria Bethânia, naquele glorioso “Diamante Verdadeiro”, álbum em que ela canta poesias e declama canções. “Com que lábios te beijei/ lábios de amor, lábios de atriz”. Arte e vida amalgamadas. Vou para casa cantando-a, e Cacilda vive em mim.
Alude-se à eternidade da arte, assim como a segunda parte lê os protestos de 2013 no espelho de 1968. Força-se a relação, talvez, mas ao mesmo tempo se acena para beleza do homem combativo. O saldo é o renascimento de Cacilda, multiplicada em cena em “Pegas fogos” mil, na Carmen do Abílio Pereira de Almeida, no mendigo que espera infinitamente Godot, em tantas outras personagens, em cada um de nós que a ajuda a vivê-la naquela noite. No galpão do Oficina, Cacilda vive.
E então, ecoa uma canção. Conheço-a de algum lugar. Fico sabendo que José Miguel Wisnik a compôs para “Cacilda!”, a primeira Cacilda do Oficina. Ouvi-a infinitas vezes na voz de Maria Bethânia, naquele glorioso “Diamante Verdadeiro”, álbum em que ela canta poesias e declama canções. “Com que lábios te beijei/ lábios de amor, lábios de atriz”. Arte e vida amalgamadas. Vou para casa cantando-a, e Cacilda vive em mim.
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As fotos que ilustram o texto são de minha autoria, tiradas durante a peça (com autorização da equipe).
O prometido contato de José Carlos Neves é o que segue: magobardo@yahoo.com
O prometido contato de José Carlos Neves é o que segue: magobardo@yahoo.com
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