quarta-feira, 30 de abril de 2014

Vista d’olhos na Barbra Streisand diretora

Não sei por que cargas d’água resolvi rever a produção cinematográfica de Barbra Streisand, de quem, diga-se de passagem, nunca fui fã inveterada. 
Melhor, sei sim: por causa de Yentl (1983). Ainda que o espectador despreze o gênero melodramático, é impossível negar, à vista deste filme, o talento desta mulher: sua co-roteirista, diretora, atriz principal e intérprete da trilha sonora (belíssima, com música de Michel Legrand e letras de Alan e Marilyn Bergman).
Barbra – o primeiro nome basta para defini-la mundialmente – é, também sem dúvida, megalomaníaca e ególatra. Sinto alfinetadas mentais dos fãs. Acalmem-se: estou, como digo, a revê-la toda. Transformo-me, assim, numa espécie de “tiete honoris causa”: a quem a falta do background típico servirá como desculpa, por parte dos fãs de cátedra. Ao menos, espero.
Barbra é ególatra, mas, não por isso, menos talentosa. Perdoamos a egolatria dos gênios, porque nos propiciam, ao menos, o deleite artístico. Porém, não podemos deixar de constatar este traço de sua personalidade, uma vez que isso atravessou a sua arte toda (com rendimentos cênicos irregulares): 
Barbra Streisand dirige Yentl
Barbra, a garota pobre do Brooklin, judia, de nariz irregular e voz maravilhosa, deve ter sofrido para elaborar a cara de patinho feio que, teoricamente, a incompatibilizava com palcos e, sobretudo, telas – locais onde a simetria clássica das formas valia tanto quanto o talento. Ela parece tê-lo conseguido desde muito cedo, porque os 21 anos vemo-la cantar ao lado de uma Judy Garland boquiaberta, à qual anuncia, para breve, a estreia do musical da Broadway Funny Girl (1964)
Funny Girl ascenderia da Broadway às telonas (dirigido por William Wyler em 1968); e com ele a novata Barbra, amealhando, com a versão cinematográfica da peça, um Oscar – feitos que a tornam mundialmente conhecida. Porém, a woman of the world continuaria, para todo o sempre, a ser aquela garotinha do Brooklin necessitada de se autoafirmar. Bem, mas para eu não ser leviana, deixo esta questão psicanalítica para Freud. 
Porém não consigo passar ao largo da quantidade de autorreferências que há na obra (cinematográfica e musical) da artista. A menina judia emerge, claro, em Yentl, saga da garota que precisa se fingir de homem para frequentar um “yeshivá” – escola de estudo do Talmud. Mas ela ressoa no Príncipe das Marés, na fala da psicanalista sofisticada – mas carente de amor – que nada deseja além de um “garoto judeu” que a ame. E nas menções infinitas que há à sua religião nos seus concertos comercializados em DVD e CD – os quais ela também dirige. 
O Príncipe das Marés
Na mesma esteira está seu “nariz peculiar” (funny nose/ funny girl), elemento característico de sua ascendência, responsável, em seu O espelho tem duas faces (1996), pela autoimagem negativa que a garotinha tímida – agora uma bem-sucedida professora universitária – construíra de si. Abandonada pelo homem que ama, porque ele não a acha “bonita”, ela coloca contra a parede a mãe-medusa (a divina Lauren Bacall): “Se não fosse a senhora ficar todo o tempo me pedindo para levantar o nariz, talvez eu não crescesse me achando feia”. 
Funny Girl
O onipresente fantasma explicita-se novamente em Back to Brooklin (2013), CD brilhante em que a Barbra setuagenária mostra uma voz cheia e límpida como sempre. Mesma voz que encantava a vizinhança nos idos dos 60. Em suma, a garota do Brooklin, once and for always. O percurso do subúrbio ao estrelato, que Barbra palmilhou fisicamente, ela parece não ter conseguido trilhar psicologicamente. Precisa, em cena, reafirmar ad nauseam a sua origem, o seu amor pela terra, o seu nariz torto. Coloca-os em primeiro plano para, quem sabe, finalmente os expurgar de seu inconsciente. Mas entro novamente em terreno que não domino... 
O que me irrita em Barbra Streisand – sou passional porque gosto um bocado dela, também – é a sua intencionalidade, o seu tom programático, o obâmico Yes we can que ela solta no concerto do Brooklin: prova de que todos podem tomar a balsa metafórica do subúrbio a Manhattan, tornando-se ricos e fabulosos como ela, o que é, como diria sua professora universitária do Espelho..., bullshit!... O engessamento que ela impõe aos seus concertos, visando à sua perfeição, vem, talvez, dessa necessidade de controle que ela tem; do temor do acaso. Do desejo de se sentir amada. Barbra antecipa o que os outros pensam de si, dirige seus próprios filmes e fecha os sentidos em torno de sua persona porque teme ser julgada. Deve dar um bocado de trabalho ao seu psicanalista... 
Yentl
Mas a arte não é só espaço da exacerbação dos fantasmas como de sua conjuração. Acho Yentl (1983), O Príncipe das Marés (1991) e O Espelho tem duas Faces (1996) – filmes em que Barbra atua como diretora e atriz – profundamente autobiográficos. 
Neles todos se reencena a história da mulher que toma em suas mãos as rédea da vida, palmilhando-a como invulgar protagonista. Contraria mesmo as leis divinas, no caso de Yentl, para ascender, da categoria social subalterna cabida às mulheres, ao mundo dos saberes, estritamente masculino. Barbra é, arquetipicamente, muito masculina. Em Príncipe das Marés ela desfaz os nós da psique da Nick Nolte. Já no Espelho ela é a professora universitária que domina, com talento ímpar, todo um anfiteatro de alunos. Como o faz a Barbra concertista. Megalomaníaca como ela. 
O Espelho tem duas Faces
Essa "neurose de grande diva" num só tempo me repele e me encanta. Barbra não vende mercadoria avariada. Ela se anuncia grande, e o é. É uma individualidade artística inegável, um alívio nesse mundo pasteurizado. Além da belíssima voz e do timing cômico e dramático que tem, é inteligente ao conduzir uma câmera. Dirige seus filmes com o know how da cantora, musicalmente. Dá bom ritmo a uma comédia como o Espelho tem duas faces e, no que toca a Yentl e Príncipe das Marés, dois dramas, sabe sincronizar imagens e música de modo a torná-los comoventes. Talvez demasiado corretos – mas, se não os fosse, não seriam dela. Belos, acima de tudo, por isso tenho, agora, tanto prazer em retornar a eles e a ela.

domingo, 20 de abril de 2014

Ninfomaníaca (2014): sexo verbal

Lars Von Trier, polêmico como sempre, vem agora a público com essa obra túrgida, segmentada em duas partes para fins estritamente mercadológicos – o corte inicial apresentava um filme de 5:30 horas de duração; a edição e a divisão em dois volumes tendo sido sendo realizada sem o acompanhamento do diretor. 
O enredo já deve ser conhecido por quem se interessa pelo cinema enquanto arte. Joe (Charlotte Gainsbourg, ótima) é encontrada por Seligman (Stellan Skarsgard, idem) num gueto, em estado lamentável. Levada a casa do homem, passará a noite narrando-lhe sua patologia em detalhes milimétricos: desde a infância, a relação com o pai, o descobrimento do desvio, os milhares de homens e mulheres com os quais se relacionou. À medida que a noite adentra, no tempo do filme – que é quase o tempo real –, Seligman cede à mulher ouvidos atentos e mente arguta. Metaforiza, quiçá, o espectador ideal dos filmes de Trier: alguém que abra olhos e cabeça às histórias sui generis que ele conta, despido de pré-julgamentos. 
A crítica especializada incensou o filme. O público recebeu-o mornamente: se a primeira parte ocupou as salas de exibição durante todas as férias de janeiro, a segundo não durou mais que um par de semanas, e apenas nas salas de arte. Ninfomaníaca I serviu de desconvite ao seu sucessor, ao grosso do público que correu aos cinemas esperando que a censura máxima imposta à obra se convertesse em tórridas cenas de sexo explícito. 
O interessante do filme é o paradoxo que ele encerra. O sexo explicitado nas mais de quatro horas da obra afasta-se sensivelmente do “sexo explícito” que excita o público consumidor do gênero. Talvez porque a explicitação do ato sexual, do órgão, do sexo enquanto mecânica – o teor enciclopédico da obra, enfim – esgote o ato. Ninfomaníaca desvincula o sexo da fantasia sexual, do amor – em última instância, mesmo da degeneração, penso eu, já que mesmo a protagonista termina por aceitar a patologia como um aspecto ontológico seu. A redução do ato à sua mecânica mais elementar lhe tira todo o tesão. 
Gostei da obra porque, como cinéfila, gosto de ser provocada. O trabalho mais notório de Lars Von Trier talvez seja Dogville (2003), filme que apresenta dois elementos estéticos fortes: a mise-en-scène teatral e a exploração do gênero melodramático. A bem da verdade, demorei deveras para achar algum interesse nele. Descubro-o só agora, quando, à luz de Ninfomaníaca, consigo atribuir algum sentido ao fazer cinematográfico de seu autor. Em ambos os filmes, Trier coloca em choque dois sistemas distintos (excludentes, diria eu). Em Dogville, o melodrama e a metalinguagem: o primeiro, compêndio de convenções naturalizadas, a agarrarem o espectador pela emoção; o segundo, a exploração crítica, pelo viés da razão, das convenções que criam a obra dramática. O público ali é todo o tempo retirado de sua zona de conforto. Vê Nicole Kidman sendo escravizada, estuprada, vingando-se da cidade; mas é impedido de executar a catarse suscitada pelo dramalhão porque a mesma mão que constrói a fantasia mostra a estrutura que a esculpe. O diretor ri do espectador, vítima, como a protagonista, de sua manipulação. 
Ninfomaníaca abandona as duas mais usuais vertentes de abordagem do sexo no cinema – a pornografia (o sexo tratado de maneira chula, a libertinagem, a indecência) e o melodrama (o sexo asséptico, lavado pelo amor e pelo casamento) – para abordá-lo enquanto ciência. O pôster do primeiro volume do filme, veiculado pelo IMDB, mas que não chegou até nós, patenteia a gênese da obra mais que as fotos orgásticas do elenco, disseminadas no pôster brasileiro: a isca, a linha de pescar e a expressão “Forget about love.” 
Não se trata de amor. Lembre-se da aproximação que Seligman estabelece entre a pescaria e o sexo. Também das imagens sequenciais de falos de variadas cores e tamanhos que povoam a tela grande, a certa altura da primeira parte do filme. Esgotamento enciclopédico do tema; naturalização do sexo enquanto ato mecânico, despido dos simbolismos dos quais o mundo ocidental o impregnou. 
Trancados no quarto ascético de Seligman – espécie de monastério enfronhado na cidade –, Joe e o seu inopinado interlocutor cercam a questão de todos os lados. Sua relação com a moral, o casamento, a igreja, a maternidade, o pecado, o prazer, a saúde. Um e outro interlocutores estão intelectualmente nivelados. O diálogo divide-se em capítulos de uma obra que se concebe na medida em que avançam as horas, como nos notórios diálogos filosóficos dos antigos. 
A costura monotonal da trama perdura até quase que seu derradeiro minuto, quando uma reviravolta ultraconvencional enceta um fim trágico inesperado (desculpa, é impossível não contá-lo – estrago a surpresa do espectador para tentar construir meu argumento): 1- Seligman foi morto por Joe porque tentou passar da teoria à prática, rompendo com o acordo tácito estabelecido durante a interação de ambos? 2- A estratégia ficcional do deus ex machina, “grand finale” descabido nessa obra tão cerebral, não serviria para colocá-la em pé de igualdade com Dogville – dito noutras palavras, não se estabelece ali um diálogo irônico com a ficção cinematográfica que historicamente trata o sexo de modo tão passional?