Lars Von Trier, polêmico como sempre, vem agora a público com essa obra túrgida, segmentada em duas partes para fins estritamente mercadológicos – o corte inicial apresentava um filme de 5:30 horas de duração; a edição e a divisão em dois volumes tendo sido sendo realizada sem o acompanhamento do diretor.
O enredo já deve ser conhecido por quem se interessa pelo cinema enquanto arte. Joe (Charlotte Gainsbourg, ótima) é encontrada por Seligman (Stellan Skarsgard, idem) num gueto, em estado lamentável. Levada a casa do homem, passará a noite narrando-lhe sua patologia em detalhes milimétricos: desde a infância, a relação com o pai, o descobrimento do desvio, os milhares de homens e mulheres com os quais se relacionou. À medida que a noite adentra, no tempo do filme – que é quase o tempo real –, Seligman cede à mulher ouvidos atentos e mente arguta. Metaforiza, quiçá, o espectador ideal dos filmes de Trier: alguém que abra olhos e cabeça às histórias sui generis que ele conta, despido de pré-julgamentos.
A crítica especializada incensou o filme. O público recebeu-o mornamente: se a primeira parte ocupou as salas de exibição durante todas as férias de janeiro, a segundo não durou mais que um par de semanas, e apenas nas salas de arte. Ninfomaníaca I serviu de desconvite ao seu sucessor, ao grosso do público que correu aos cinemas esperando que a censura máxima imposta à obra se convertesse em tórridas cenas de sexo explícito.
O interessante do filme é o paradoxo que ele encerra. O sexo explicitado nas mais de quatro horas da obra afasta-se sensivelmente do “sexo explícito” que excita o público consumidor do gênero. Talvez porque a explicitação do ato sexual, do órgão, do sexo enquanto mecânica – o teor enciclopédico da obra, enfim – esgote o ato. Ninfomaníaca desvincula o sexo da fantasia sexual, do amor – em última instância, mesmo da degeneração, penso eu, já que mesmo a protagonista termina por aceitar a patologia como um aspecto ontológico seu. A redução do ato à sua mecânica mais elementar lhe tira todo o tesão.
Gostei da obra porque, como cinéfila, gosto de ser provocada. O trabalho mais notório de Lars Von Trier talvez seja Dogville (2003), filme que apresenta dois elementos estéticos fortes: a mise-en-scène teatral e a exploração do gênero melodramático. A bem da verdade, demorei deveras para achar algum interesse nele. Descubro-o só agora, quando, à luz de Ninfomaníaca, consigo atribuir algum sentido ao fazer cinematográfico de seu autor. Em ambos os filmes, Trier coloca em choque dois sistemas distintos (excludentes, diria eu). Em Dogville, o melodrama e a metalinguagem: o primeiro, compêndio de convenções naturalizadas, a agarrarem o espectador pela emoção; o segundo, a exploração crítica, pelo viés da razão, das convenções que criam a obra dramática. O público ali é todo o tempo retirado de sua zona de conforto. Vê Nicole Kidman sendo escravizada, estuprada, vingando-se da cidade; mas é impedido de executar a catarse suscitada pelo dramalhão porque a mesma mão que constrói a fantasia mostra a estrutura que a esculpe. O diretor ri do espectador, vítima, como a protagonista, de sua manipulação.
Já Ninfomaníaca abandona as duas mais usuais vertentes de abordagem do sexo no cinema – a pornografia (o sexo tratado de maneira chula, a libertinagem, a indecência) e o melodrama (o sexo asséptico, lavado pelo amor e pelo casamento) – para abordá-lo enquanto ciência. O pôster do primeiro volume do filme, veiculado pelo IMDB, mas que não chegou até nós, patenteia a gênese da obra mais que as fotos orgásticas do elenco, disseminadas no pôster brasileiro: a isca, a linha de pescar e a expressão “Forget about love.”
Não se trata de amor. Lembre-se da aproximação que Seligman estabelece entre a pescaria e o sexo. Também das imagens sequenciais de falos de variadas cores e tamanhos que povoam a tela grande, a certa altura da primeira parte do filme. Esgotamento enciclopédico do tema; naturalização do sexo enquanto ato mecânico, despido dos simbolismos dos quais o mundo ocidental o impregnou.
Trancados no quarto ascético de Seligman – espécie de monastério enfronhado na cidade –, Joe e o seu inopinado interlocutor cercam a questão de todos os lados. Sua relação com a moral, o casamento, a igreja, a maternidade, o pecado, o prazer, a saúde. Um e outro interlocutores estão intelectualmente nivelados. O diálogo divide-se em capítulos de uma obra que se concebe na medida em que avançam as horas, como nos notórios diálogos filosóficos dos antigos.
A costura monotonal da trama perdura até quase que seu derradeiro minuto, quando uma reviravolta ultraconvencional enceta um fim trágico inesperado (desculpa, é impossível não contá-lo – estrago a surpresa do espectador para tentar construir meu argumento): 1- Seligman foi morto por Joe porque tentou passar da teoria à prática, rompendo com o acordo tácito estabelecido durante a interação de ambos? 2- A estratégia ficcional do deus ex machina, “grand finale” descabido nessa obra tão cerebral, não serviria para colocá-la em pé de igualdade com Dogville – dito noutras palavras, não se estabelece ali um diálogo irônico com a ficção cinematográfica que historicamente trata o sexo de modo tão passional?
3 comentários:
Oi, Dani!
Como sempre com textos incríveis!
Não conheço o trabalho deste diretor...tenho que ver Dogville.
Um abraço
Dani.
Oi, Dani! Obrigada, querida!
Olha, eu te confesso que do Trier prefiro "Melancolia", que pra mim é um dos filmes mais lindos que há. "Dogville" e esse são mais cerebrais. Mas todos são bom cinema, valem bastante a pena.
Bjocas e até logo
Dani
O filme só esqueceu de dizer por qual motiva ela tava doente..seria uma DST??rsrs..
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