Foi com um misto de curiosidade e temor que revi, dias atrás, esse épico de Ridley Scott. Vi-o pela primeira vez na adolescência, época em que lia com afinco a revista Set e não perdia estreia alguma do cinema comercial. Adorei-o, então – como, aliás, também, a Academia, que o indicou a uma penca de Oscars (dos quais ele amealhou cinco: melhor filme, ator – Russell Crowe havia se tornado o queridinho de Hollywood no ano anterior, depois de seu desempenho notável em O Informante –, figurino, som e efeitos visuais).
A revisão de um antigo blockbuster pode ser temerária, depois de tanta água passada por debaixo da ponte. Muita suposta obra-prima pode, no distanciamento temporal, revelar-se lixo, como bem lembra meu amigo Chico Lopes. Outras tantas, a pátina da nostalgia se incumbe de amaciar, e aí se atribuem valores insuspeitados a objetos suspeitos. Outras, ainda, aguentam-se sólidas à revisão. Exemplo desse último caso é Gladiador, porque, acho eu, ele submete os paetês visuais a algumas ideias norteadoras interessantes (já que ambíguas). Vamos a ele e a elas.
Paradoxal crítica ao “Pão e Circo” e imposição da moralidade cristã na Roma antiga
Em 180 d. C., momento em que se passa a história, o Império Romano espraiava-se do deserto da África até às bordas do norte da Inglaterra, submetendo aos seus domínios ¼ da população do mundo. A história tem início durante a campanha do imperador Marcus Aurelios contra as tribos bárbaras da Germânia. À breve contextualização se segue a etapa final do confronto, verdadeiro genocídio protagonizado pelo forte exército do César, contra um grupo acéfalo de germanos – grupo sanguinário e desdenhoso da preponderância política e bélica do seu opositor; e, daí, ansioso por lutar até a morte. O César, idoso e enfermo, observa descrente o recrudescimento da luta, a recusa dos perdedores a se renderem e a completa destruição daquele grupo.
Maximus, o líder do exército, compartilha do sentimento de seu governante supremo. É um espanhol primevo (ainda demoraria às fronteiras dos países serem demarcadas como as conhecemos). Deseja voltar à mulher e ao filho pequeno, dos quais se separara havia dois anos, duzentos e tantos dias. Ele contava os instantes para revê-los – é curioso como o filme trabalha, em toda a sua extensão, a ambivalência da violência como espetáculo, recusando verbalmente a violência ao mesmo tempo em que avidamente a encena.
Terminada a derradeira batalha, o César e Maximus se encontram. Mais uma porção de terra conquistada, mais inimigos mortos, quando isso terminaria? Eles falam sobre a “Paz”, escassa desde muito tempo. O general deseja rever os seus. Instado pelo velho, descreve em detalhes seus domínios: as flores no jardim, o pomar, a plantação de milho, os pôneis selvagens. É uma bela cena, em que caem as patentes e os dois homens desnudam suas almas. Por ali, acaba de se desenhar a imagem dos dois: Maximus é o herói (luta por honra e glória, lembra a seus homens que os “Campos Elíseos” os estarão esperando do outro lado da vida – esta visada cristã, travestida de politeísmo, é também uma constante no filme), o marido e o pai amoroso, um homem sem manchas; o César, decrépito e cético quanto aos caminhos de seu governo, deseja entregar o Império Romano ao Senado, transformá-lo aos poucos numa democracia.
O Imperador convocara Maximus, na verdade, para fazê-lo porta-voz de seus planos junto aos seus senadores. Sabia que Commodus, seu único filho homem – natural herdeiro – não aceitaria sua decisão, já que desde muito ambicionava o posto do pai. A esta altura, o rapaz já chegara, e o público já pudera compará-lo mentalmente com Maximus.
O filme é, como se vê, um desavergonhado dramalhão (sem que, com isso, eu queira incorrer em juízo de valor negativo): estabelece uma linha divisória clara entre os bons e os maus, cujos caracteres desenham-se desde os nomes que batizam os personagens (Maximus x Commodus), apenas fazendo-se realçar no decurso da ação. Ajuda muito o fato de os dois homens serem interpretados por dois grandes do cinema americano da época, além de Crowe, Joaquim Phoenix. Ambos conseguem excelentemente dar conta de seus papéis, incorporando-os para além da flor da pele. São econômicos nos gestos: Crowe tem uma voz rouca, seca e monotonal. Parece esconder do público um mundo, ao contrário dos heróis convencionais de melodramas. E Phoenix é de uma passionalidade incrível – tortura-se pelo desejo sexual (sempre sublimado) que tem pela irmã e constrói milimetricamente o ódio violento (também de laivos sexuais) que tem pelo pai: destaque para o modo como ele o mata. Como todo bom vilão de melodrama, Phoenix rouba a cena.
Após a morte do César, Maximus vê abater-se sobre si a debacle que o gênero usualmente concede ao seu tipo. Ele é irrestritamente desgraçado. Depois de tomar o lugar do César, o filho assassino manda prender e matar o herói. O know-how militar de Maximus fá-lo, no entanto, dar cabo de um grupo de soldados contratados para a tarefa. Chega aos seus domínios apenas para descobrir sua mulher e filho mortos, assassinados pelo mesmo César mesquinho que tentara lhe tirar a vida (respeitando as regras do gênero, o novo César também galgará até o último degrau da escala de maldade). E enquanto lastima o passamento dos seus, é preso, transformado em escravo e, em seguida, em Gladiador – supostamente o pior destino possível, já que a morte era reputada certa para indivíduos de tal condição.
Mas não para Maximus, uma máquina de guerra. Convocado a fazer parte das matanças, desta vez no âmbito do espetáculo, o herói não pode fazer nada senão compactuar. Naquele tempo, as arenas de gladiadores eram um entretenimento já consolidado. Não saberia dizer se havia um repúdio contra o costume, por parte da sociedade letrada de então. Santo Agostinho a execra, por sua violência aglutinante (ele narra que, tendo sido arrastado a um lugar desta sorte por um colega, tornou-se “um da turba”, vibrou, torceu, pediu mais sangue, só deixando de lado o vício quando encontrou Deus...). Parece-me, todavia, que o espetáculo era uma variante de teatro, com a diferença de que se encenava a violência vivendo-a, e não a fingindo, como ocorria no teatro. Mas essa é uma longa e complicada história... Aliás, as arenas de gladiadores eram um entretenimento que representava a guerra em microcosmo: o Império Romano foi bastante belicoso, não estranha que quisesse encenar a guerra fora dos domínios das batalhas reais.
Enfim, tudo isso para pensar no deslocamento que o filme propõe, ao tratar o tema. Segundo seu enredo, o Senado, com toda a corrupção na qual supostamente está imerso (mas que nunca aparece efetivamente), é um braço limpo do Império, em contrapartida ao novo César, agora autointitulado "Ditador". Pois o Senado repudia os espetáculos de gladiadores, assim como o fizera o velho César, e assim como fazia Maximus (que só lutava para se manter vivo e, enfim, consumar sua promessa ao seu governante: de transformar o Império Romano numa democracia). Assim, por contiguidade, o próprio filme consegue realizar a façanha de pregar o fim da violência, ao mesmo tempo em que majestosamente a encena. Excelente trabalho do diretor Ridley Scott, em conjunto com os roteiristas David Franzoni, John Logan e William Nicholson.
O interessante na ascensão meteórica de Maximus – que e torna uma espécie de “star” avant la lettre, a ganhar, agora, Roma e o célebre Coliseu – é que, com ela, invertem-se os ponteiros. Os gladiadores, escória daquela sociedade, tornam-se paulatinamente heróis. Uma cena clássica é quando os personagens mudam a “história” de certa batalha que encenam, já que, representando uma horda de opositores do Império, destroçam todos os indivíduos que desempenhavam papéis dos historicamente vitoriosos súditos romanos...
Chegando a Roma, o acaso fará Maximus naturalmente se encontrar com o seu algoz, o que acentuará as características positivas e negativas de um e de outro, respectivamente. Commodus é obrigado a ouvir do sobrinho – e futuro imperador – que o menino desejava se tornar, não um legionário, mas um gladiador; estorce-se diante dos aplausos da turba ao seu inimigo mortal; e ainda precisa amargar o repúdio da irmã, que o rejeita (já que ela, bondosa, teme a sua megalomania crescente) e que ama o outro.
Aliás, o par romântico necessário ao gênero é fornecido pela paixão que a filha do imperador nutre por Maximus – correspondida até certa altura da vida de ambos, como suas conversas nos permitem entrever. Ela procura ajudá-lo pelo amor que tem a Roma, mas sobretudo pelo que ela sente pelo homem. A união não pode se consolidar porque, diante da lógica criada pelo filme, a mulher e o filho de Maximus o estavam esperando nos Campos Elíseos. Se sempre o esperariam, certamente não iriam querer, no futuro, dividi-lo com outra mulher...
Ele precisava morrer, para atingir, nos Campos Elísios, céu tão cristão, o cume da felicidade. Morrerá, no entanto, em “honra e glória” – seu lema desde o início do filme: matando o imperador (cujo infantilismo e loucura crescentes nos são muito bem pintados) dentro da arena, diante da turba a louvá-lo e estando claramente em desvantagem, já que o outro lhe cravara a lança nas costas (é um arrematado pulha, o filme não nos cansa de mostrar), esperando vantagem no combate.
Ao fim, vemos Maximus recolhido da arena carregado pelos melhores homens do imperador, e recebido, no além-túmulo, pela mulher e filho. Commodus jaz no solo poeirento do Coliseu, onde acabará, estritamente transformado em pó.