Nova York, uma das cidades-fetiche do cinema, aparece nas telas paulistanas em três produções recentes: o indie Tudo acontece em Nova York (Swim little fish swim, 2013), produção franco-americana dirigida e protagonizada por Ruben Amar e Lola Bessis; o norte-americano Bem-vindo a Nova York (Welcome to New York, 2014) com Jacqueline Bisset e Gérard Depardieu; e finalmente, o objeto de nosso post, Era uma vez em Nova York (The Immigrant, 2013), produção norte-americana protagonizada por brilhantes Marion Cottilard e Joaquin Phoenix e dirigida com pulso por James Gray.
A metrópole surge, aqui, em tons lúgubres. A história se passa nos albores dos anos de 1920, época de intensa imigração de europeus à América. Centra-se na polonesa Ewa Cybulska (Cottilard), que, como tantos, fugiu da minguante Europa do pós-guerra rumo ao promissor mundo novo representado pelos Estados Unidos.
Ewa desembarca numa das ilhas adjacentes à cidade com a irmã Magda, jovem frágil e doente. Sua Via-Sacra começa tão logo ela aporta. Principia por se ver apartada da irmã, vítima de tuberculose (portanto, objeto de quarentena) para, em seguida, ser ameaçada com a extradição, devido à conduta moralmente repreensível que supostamente tivera a bordo. Sem família que a protegesse – os tios naturalizados americanos não aparecem para buscar as irmãs –, temerosa de se distanciar de Magda, Ewa aceita o auxílio de Bruno Weiss (Phoenix), que, de passagem pelo local, surpreendentemente se interessa por sua situação.
Como se é de supor, Bruno não é o filantropo que aparenta. Após abrigá-la, convoca-a a tomar parte nos espetáculos burlescos que ele dirige, num reles café-concerto da cidade. Dali à prostituição é um pulo. O palco serve de vitrine às jovens, vendidas, depois, a granel, ao público frequentador do local. Puritana de trato, Ewa vê-se, em cena, transformada na alegoria da Estátua da Liberdade: fantasia que num só tempo metaforiza seu declínio àquela sorte de espetáculos “livres”, em que a exibição do corpo nos palcos prenunciava os prazeres do leito, e serve de ironia à sua situação de cativeiro – torna-se cada vez mais atada a Bruno, cujos contatos na imigração poderiam salvar a vida da irmã, e cujos clientes arregimentados lhe garantiam o pão.
A trama acena em razoável medida ao melodrama, como se observa. A novidade, aqui, é o burilamento bastante acima de média dado às personagens de Ewa e Bruno, graças tanto ao roteiro quanto aos méritos pessoais desse excelente par de artistas que é Marion Cottilard e Joaquin Phoenix. Ambos são, eu diria, o ponto alto desse filme já muito bem resolvido no que toca à fotografia, roteiro e direção. Aliás, Marion, em Piaf (2007), e Phoenix, em (por exemplo) Gladiator, já demonstraram capacidade invulgar de deslocar os caracteres epidérmicos deste gênero da obviedade rumo a inesperadas alturas. Phoenix desdobra diante das câmeras um de seus intermináveis (mas não por isso menos interessantes) enfants terribles – a exemplo do Leonard Kraditor de Two Lovers (de 2008, também sob a batuta de Gray) e do Freddie Quell de The Master (2012). Tais personagens passionais espelham – eu já o disse alhures– o tipo sanguíneo do ator, daí a ele fazê-los com tanta verdade. Marion, ao contrário dele, a despersonalização em pessoa, dá neste filme uma Ewa prenhe de ambiguidades: rígida e incandescente; Madalena com laivos de Virgem Maria, a galgar vacilante o caminho do inferno aos céus.
Era uma vez em Nova York abraça aparentemente o enquadramento do Melodrama, mas alça alguns voos inesperados. Volve uma visada cristã à existência enquanto Via-Sacra do pecado à salvação. Mas tal leitura não é feita sem sobressaltos – daí o interesse do drama. O corpo da mocinha – dotado de pureza irretocável, segundo as convenções do melodrama –, é transformado, no filme, no altar onde se expiam seus pecados. Quanto mais “decaída”, tanto mais digna de nota aos olhos de Deus ela é. Todavia, malgrado a leitura deveras torta que Ewa faz do Evangelho, nesta história em que fatalismo e casualidade curiosamente dão-se as mãos, ainda assim é dado a ela vislumbrar a promessa de felicidade: traduzida pela tela bipartida onde se veem, num só tempo, a aproximação da sonhada Nova York e o afastamento do algoz.
Aliás, achados cinematográficos e simbólicos do tipo exemplificam o cuidado de um filme preocupado em aliar tema e forma. Outros exemplos: A melancólica paleta do amarelo que o envelhece. A poesia de certos lampejos de reconstrução de época, a somarem o histórico e o fictício: Caruso (Joseph Calleja) levando sua arte aos imigrantes-prisioneiros; o ilusionista romântico (Jeremy Renner), graças ao qual a vida desgraçada da mocinha se impregna de alguma magia... E, enfim, o batom com que Ewa adorna os lábios, feito de seu sangue derramado – metáfora cabal dos amargores que subjazem à beleza da aparência.