sexta-feira, 26 de dezembro de 2014

Mommy (2014)

Certos filmes não se deixam dissociar de sua trivia. Exemplo é “Mommy”, obra saída da batuta de um garoto de 23 anos, Xavier Dolan (também autor do roteiro). É um filme de largo fôlego. Surpreendente (mesmo meio exasperante), que algo tão bom tenha saído de alguém tão jovem. Lembramo-nos de Orson Welles, que não muito mais velho pariu um monstro – “Cidadão Kane” (1941), obra que revolucionou Hollywood à época. 
Xavier Dolan no set com Anne Dorval
O jovem diretor canadense herdou do confrade norte-americano a megalomania e o talento. O caso de Dolan é, no entanto, mais espantoso. Embora tenha estreado no exercício do longa-metragem com “Kane”, Welles já havia experimentado na direção de alguns curtas e tivera uma intensa experiência no teatro. Era, no final das contas, um produto dos anos de 1940 – self-made man, a trocar o banco escolar pela vivência empírica do métier. Amadureceu e adquiriu erudição cedo, como não era incomum então. 
Já Dolan é um prodígio. 
O século XX foi se infantilizando e desletrando com o galgar dos anos, como bem sabemos. Portanto, impressiona que o menino de 17 anos tenha decidido trocar a faculdade pelo cinema e sido capaz, já aos 23, de erguer uma carreira digna de nota. Se lhe falta erudição cinematográfica, sobram-lhe criatividade e frescor de observação. 
Antoine-Olivier Pilon
A obra de Dolan se debruça sobre o universo jovem, deslindando temas que tangem mais ou menos fortemente a esfera da autobiografia. Mais do que fruto da arrogância – pecha que a crítica brasileira já lhe impingiu –, a escolha se deve à compreensível imaturidade do autor e à sua ausência de erudição cinematográfica. Com o tempo, sua objetiva se voltará ao outro. Movimento que já se observa: se em “Eu matei a minha mãe” (2009) e “Amores imaginários” (2010) o diretor acumulava o papel de ator principal, em “Mommy” ele se retira em prol de Antoine-Olivier Pilon, protagonista de seu curta “College Boy: Indochine” (2013). 
As escolhas estilísticas e dramatúrgicas também se sofisticaram. Em “Mommy”, como em “Eu matei a minha mãe”, o cerne é o relacionamento entre mãe e filho – a ótima Anne Dorval desempenha ambos os papéis, e, pela constância da parceria entre ambos, deve funcionar como uma espécie de mãe substituta do diretor, no âmbito cinematográfico. Todavia, se ambas as relações são tumultuosas, a retratada em “Mommy” poreja não só tensão, mas profundidade e poesia. Embora os dois filmes olhem o mundo pelos olhos dos filhos, no último a subjetiva mistura as vivências do protagonista adolescente às do diretor, já um homem. 
Xavier Dolan fez uma escolha estilística decisiva para que o júri de Cannes o tenha pareado ao mítico Jean-Luc Godard, mestre da Nouvelle Vague que este ano surpreendeu novamente com “Adieu au langage” (2014), experimentação no 3D: restringiu em 2/3 o tamanho da tela de projeção. O cinema, janela do mundo, torna-se, em “Mommy”, a fresta que dá a ver o mundo do garoto-problema Steve Després. Sucedânea de seus olhos, a câmera detém-se nas minúcias do que ele enxerga. 
A escolha restritiva – este filme, como o de Godard, são obras para o cinema, daí a simbologia da escolha de ambas pelo júri do festival francês – denota invulgar autoconfiança do autor, além de um bem-vindo sopro de inventividade. A decisão formal resvala com força dramática para o âmbito da temática: a enxutez do quadro recria para o público o mundo restrito em que habita o superexcitado personagem – cerceado pelas restrições que a doença lhe impõe; os muitos planos aproximados dão intensidade ao recorte. O mundo de “Mommy” é feito das sensações de Steve: desde sua saída do centro de correção, ao dia-a-dia turbulento com a mãe (por quem ele nutre um amor doentio), à convivência paulatina com o outro – notadamente a vizinha Kyla (Suzanne Clément). 
A câmera oscila entre a grande beleza de alguns quadros e os excessos de outros. A grandiloquência calculada não deixa, no entanto, o filme cair no maneirismo. 
Dolan tem olhos excepcionalmente treinados para a sua idade. Sua câmera inventa o mundo; ele segura firme as suas rédeas. A casinha decaída recém-alugada pela mãe (Anne Dorval/ Diane Déspres) é vista com grande sensibilidade pelo menino vindo do reformatório: os cortinados e a tapeçaria tomados por uma câmera acariciante, a dar tessitura de seda aos primeiros momentos de mãe e filho na casa nova. 
O olhar é extensivo à figura materna, amada e vilipendiada com passionalidade análoga pelo garoto. Dolan projeta suas nevroses em toda a sua obra. A bela sequência de Anne Dorval sob a macieira da casa, a degustar o fruto recém-colhido, será sucedida por uma feroz contenda entre mãe e filho; e assim sucessivamente – o filme, como a obra toda do diretor, pontua-se desses altos e baixos. O rapaz trabalha com interesse os fantasmas inerentes à fase de transição da adolescência para a vida adulta, que todos nós já vivenciamos com intensidade maior ou menor. 
Kyla/ Suzanne Clément
Um dos pontos altos de Xavier Dolan é sua sensibilidade no trabalho com os atores. Os três principais estão ótimos. Anne Dorval e Suzanne Clément, sobretudo, a primeira, derramada, a segunda, contida: contrapontos perfeitos uma da outra. No relacionamento entre ambas, e delas com o menino Antoine, Dolan impregna a película de humanidade. Em detrimento da grandiloquência pontual, o diretor põe em debate as relações humanas com sensibilidade e verossimilhança, sem o sentimentalismo barato costumeiro nos filmes que retratam a relação da criança-problema com o seu entorno. 
A delicadeza com que Dolan apreende suas atrizes é muito bem representada pela sequência que apresenta Suzanne Clément: pela câmera que deixa a mãe e o filho ruidosos e, penetrando na casa da vizinha Kyla, perscruta silenciosa o seu entorno, quiçá procurando compreender o que teria feito a professora perder a voz. Daí por diante, atam-se os percursos do trio, a experimentarem as alegrias e os sofrimentos do relacionamento recém-construído. 
Cabe, por fim, recomendar o filme pela sua qualidade sonora. O Canadá de ascendência francesa tem uma especificidade quando comparado ao país de quem herdou a língua. Enquanto que a França repudia e/ou pisoteia o inglês, ele (o filme foi realizado no Quebec) abraça o idioma de bom grado. Dolan não nega a sua juventude. Sua obra transpira cultura pop, e “Mommy” não é diferente: mistura a língua francesa e a inglesa, os cancioneiros estadunidense e canadense. O resultado é um cosmopolita filme em francês, que muito merece a nossa visita atenta.

3 comentários:

Edison Eduarddo disse...

Oi, Dani... Tudo bem?
Vim reler o "Hugo Cabret" que vi hj e ADOREI!
Como sabes, assisti ao "Mommy". Gostei muito deste também...
(spoiler) O Steve consegue fugir e voltar para casa, para os braços e as discussões com a mãe? Será?
O tamanho enquadrado da tela tá sendo uma tendência do cinema atual???
Perguntas que não saíram da cabeça ao final...
Um bjão!
Edison

Danielle Crepaldi Carvalho disse...

Oie, Edison.

Comigo tudo bem! E você?
Lindo o "Hugo Cabret", né? Que pena você ter perdido o filme no cinema. Em 3D, foi um dos acontecimentos cinematográficos do século XXI!

"Mommy" é muito bom. Aquele final fica em aberto, mas, conhecendo a obra do autor, penso que ele visionou um fim nada auspicioso para o menino (aquele pulo da janela equivaleria a um suicídio, ao meu ver, que na visão do garoto é um sinônimo de liberdade).

Não vi muitas mais coisas com esse enquadramento sui generis da tela. Aqui isso tem um fim estilístico, então funcionou bastante bem. Que outros filmes você viu assim?

Bjão. Continue a passar por aqui!
Dani

Edison Eduarddo disse...

Oi, Dami...

O outro filme com o enquadramento mais fechado é "O Homem das Multidões", brasileiro. Também dá um sentido de que o personagem está preso à sua rotina e ambiente.

Demoro mas sempre passo por aqui. Suas resenhas são ótimas e iluminam muito a minha visão dos filmes.

Eu vi há pouco (ma TV) o "Meia-noite em Paris" mas nem comentei (daqueles filmes que metade ama e metade odeia) pq achei muito ruim!
Enfim... Bjos!

Edison