sábado, 3 de janeiro de 2015

Os melhores e piores de 2014 (I)

O blog entra 2015 com a famigerada lista dos melhores (e piores) filmes do ano que passou. A relação, sempre se considerando o que chegou até essas plagas, é extensa – prova da boa safra de filmes em 2014. Portanto, divide-se em dois posts, e por por continentes, de modo a facilitar a sua organização. E, porque é extensa, será aqui apresentada em flashes, com breves comentários sobre cada obra e minha apreciação acerca delas. Busca especialmente provocar o leitor curioso a ir por si só às obras e tecer suas considerações sobre elas. 

Comecemos com a América do Norte, o grande mercado produtor e exibidor de cinema – falamos dos EUA, sobretudo. O Canadá, embora produza, chega muito pouco até nós. 
Joaquin Phoenix em "Ela"
O ano de 2014 abriu com uma longa seleção de indicados ao Oscar, todos a aportarem religiosamente por aqui, mesmo os medianos. Os melhores foram “O lobo de Wall Street” (“The Wolf of Wall Street”, 2013), ótimo filme do eclético (e sempre perspicaz) Martin Scorsese, saga do par de vigaristas de luxo interpretados com excelência por Leonardo Di Caprio e Jonah Hill. Infelizmente, nem o diretor, nem o protagonista, receberam as tão merecidas estatuetas, distribuídas protocolarmente entre coisas bem menos interessantes – as quais serão aqui merecidamente deixadas de lado... 
Houve também “Ela” (“Her”, 2013), encanto de filme de Spike Jonze com os ótimos Joaquin Phoenix e Amy Adams (e a voz de Scarlett Johanson, programa de computador por quem o protagonista se apaixona). É o retrato poético de um mundo cada vez mais reduzido à inteligência artificial. Vale muito a visita, assim como o melhor de todos, “Trapaça” (“American Hustle”, 2013), no qual David O. Russell (também coautor do roteiro) orquestra um time memorável composto por, novamente, Amy Adams, e também Christian Bale, Bradley Cooper e Jennifer Lawrence. A trama gira em torno dos triunfos e dissabores de um grupo de trambiqueiros. Mas vale a pena especialmente pela leitura irônica e sensual dos anos de 1970, e pela sem-cerimônia com que as quatro estrelas se permitiram transformar em tipos ultra bregas, jogando com deleite o jogo do cinema. 
A corrida para o Oscar de 2015 não demorou a começar. Os concorrentes mais ou menos se assemelham. Há os filmes verdadeiramente bons; os passáveis; e os pretensiosos e/ou estopadas. 
"Interestelar"
Destes últimos, bons exemplos são o interminável “Interestelar” (2014), patacoada de Christopher Nolan (o diretor do ótimo “A Origem”, que aqui assina o roteiro em parceria com Jonathan Nolan), com Matthew McConaughey, Anne Hathaway e Jessica Chastain. A tentativa intentada de aproximação com “2001: Uma odisseia no espaço” resulta ridícula. A passagem do tempo no espaço sideral é arbitrária, ok. Mas a viagem, a exploração, os reveses ganhariam em qualidade se fossem apresentados com maior enxuteza e menos artefatos lacrimogênios. Ganhamos um dramalhão de 3 hrs passado no espaço. Não nos assustemos se ele levar algum(ns) Oscar(s) (a surpreendente posição de 16.º melhor filme de todos os tempos, no IMDB, mostra que o povo gostou bastante do resultado...). 
Tilda Swinton em "Grande Hotel Budapeste"
Dois outros filmes que se encaixam supracitada categoria são “O Grande Hotel Budapeste” (2014), de Wes Anderson, e “Magia ao luar” ("Magic in the moonlight", 2014), de Woody Allen (também autor do roteiro). O primeiro é uma papagaiada – com todo o respeito que eu tenho por (especialmente) Ralph Fiennes, Mathieu Amalric e Tilda Swinton. Wes Anderson procura ser espirituoso e profundo, na sua reflexão sobre a “perda de elegância” do mundo e outros temas pseudofilosóficos, porém dá a essa sua obra a consistência daqueles bolos lindamente confeitados, que enchem os olhos mas não valem a mordida. 
Emma Stone e Colin Firth em "Magia ao luar"
Sobre “Magia ao luar” (“Magic in the moonlight”, 2014), aliás, sobre Woody Allen: acho louvável seu empenho por continuar trabalhando, mas suponho que a crítica recente o esteja supervalorizando. Acho que a sua obra ganharia se ele a deixasse encorpar antes de trazê-la a lume – como a gente faz com os pães antes de colocá-los no fogo. Não precisamos de mais uma refação de “Noivo neurótico, noiva nervosa”; de mais um protagonista alter-ego do autor, a arrotar erudição e ceticismo. Neste filme, ao contrário de seu último, “Blue Jasmine”, nem mesmo os protagonistas foram escolhidos com acerto. Pobre Emma Stone, sempre tão carismática, aqui apagada. Pobre Colin Firth, sempre elegante e profundo, aqui, um paspalho. Torço para que o Oscar de Melhor Roteiro original acerte outra pessoa em detrimento do Sr. Allen... 

Ellar Coltrane, "Boyhood"
Mas nem tudo foram espinhos na terra do tio Sam. Jim Jarmusch acertou com “Amantes eternos” (“Only lovers left alive”, 2013), conto pop dos vampiros centenários (os ótimos Tilda Swinton, Tom Hiddleston e Mia Wasikowska) que vivem da saciação de seus prazeres imediatos – a arte, o amor, a fome. James Gray brilhou com “Era Uma Vez em Nova York” (“The Immigrant”, 2013), no qual ele reúne uma trinca de ouro, das melhores do ano: Marion Cotillard, Joaquin Phoenix e Jeremy Renner. Cotillard e Phoenix estarão certamente entre os indicados aos principais prêmios do ano. E Richard Linklater lançou este ano o tour de force que atende pelo nome de “Boyhood” (2014), filme realizado ao longo de doze anos, esforço realista inédito no cinema (até onde eu sei) de estudar o desenvolvimento de um garoto, da infância até a partida para a Universidade – momento simbólico para os norte-americanos. Que beleza é ainda poder ver filmes que distendem os limites do cinema; feitos com vagar, como os vídeos científicos que flagram o desabrochar das flores. O resultado paulatino do galgar dos anos sobre Ellar Coltrane, Patricia Arquette e Ethan Hawke dá um sentido poético ao envelhecimento. 
Estamos ainda nos EUA, agora na faceta autoirônica do país (tão difícil de ser tematizada).
Viggo Mortensen e Kirsten Dunst,
"As duas faces de janeiro"
“As duas faces de janeiro” (“The Two Faces of January”, 2014), muito recentemente estreado entre nós, é um bom exemplo. O longa dirigido e roteirizado por Hossein Amini, a partir do romance de Patricia Highsmith (também autora de “O Talentoso Ripley”, obra de atmosfera semelhante) traz porções bem dosadas de suspense e de humor negro. Ao longo de uma viagem idílica à Grécia, os pombinhos Viggo Mortensen e Kirsten Dunst veem-se envolvidos, juntamente com o norte-americano tradutor de grego Oscar Isaac, numa trama de quiproquós crescentes e surpreendentes. A suposta “beleza americana” se amarrota, na medida em que vemos os três caminharem de Atenas às ilhotas mais recuadas do país, progressivamente desgrenhados e maltrapilhos. O charme do filme transcende, ainda, a trama. Está na montagem e na música, que pontuam com ironia a decadência dos personagens; e na atuação impecável do trio de artistas. 
John Lloyd Young em primeiro plano,
em "The Jersey Boys"
“Jersey boys: em busca da música” (“Jersey Boys”, 2014) é outro filme a mimetizar este esforço autoirônico. De Clint Eastwood, outro diretor eclético e eficiente em todos os gêneros, o filme apresenta a versão cinematográfica do musical – quem sabe – mais bem-sucedido da história recente da Broadway (foram até agora um total de 3788 performances, desde outubro de 2005). O roteiro é de Marshall Brickman e Rick Elice, também responsáveis pela adaptação teatral da história. É uma leitura festiva – com altas doses de liberdade poética – da trajetória do grupo musical “The Four Seasons”, sucesso desde os anos de 1960 com canções como “Sherry”, “Big Girls Don't Cry” e a mais longeva de todas, “Can’t Take My Eyes off You”. John Lloyd Young desempenha o protagonista, Frankie Valli, Cinderela às avessas, ítalo-americano que enveredou pela máfia de New Jersey antes de exercer profissionalmente o invejável falsete de que a natureza lhe dotou. Suas andanças todas – mesmo as menos politicamente corretas – são pontuadas por grande senso musical e bom-humor; além de uma cinematografia que estrutura a história à guisa de obra teatral, deixando de lado o realismo próprio do cinema sem abandonar a emoção. 
No âmbito do “cinemão”, houve uma porção de bombas, mas algumas coisas bem interessantes. A saga “X-Men” encontrou a glória com “Dias de um Futuro Esquecido” (“X-Men: Days of Future Past”, Bryan Singer, 2014), união de alguns dos maiores artistas contemporâneos de Hollywood: além dos costumeiros heróis Hugh Jackman (como Wolverine) e James McAvoy (como o professor Xavier), os excelentes (e polivalentes) Michael Fassbender e Jennifer Lawrence, e Halle Berry, Anna Paquin, Ellen Page. O filme agradará não apenas quem gosta dos quadrinhos como quem aprecia cinema. Há ali timing cômico e dramático, e uso inteligente dos recursos visuais. “No Limite do Amanhã” (“Edge of Tomorrow”, 2014), de Doug Liman, com Tom Cruise, Emily Blunt e Bill Paxton, é outra boa surpresa do gênero. A ideia parte da ficção científica: num futuro não muito distante, um soldado medroso, que trabalha para o exército destrói uma arma que altera o curso da Terra, permitindo que o tempo recomece a partir daquele momento, cada vez que o personagem morre. O filme toca em questões caras ao cinema, como no papel do protagonista – vemos Tom Cruise morrer sucessivas vezes no curso do filme, algo incomum no blockbuster padrão – e na própria reversibilidade da imagem cinematográfica, que pode ser retrocedida, revisitada, reexplorada. É deste processo de revisão, dentro do curso da ação, que o soldado fanfarrão se transformará no herói que a gente conhece. Além de tudo, o filme consegue ótimo rendimento cinematográfico, por meio de um roteiro que repete e esconde acontecimentos na medida certa. 
Ansel Elgart e Kaitlyn Dever em "Homens,
mulheres e filhos"
Saindo do campo do blockbuster, mas ainda no interior do “cinemão”, há “Homens, Mulheres e Filhos” (“Men, Women & Children”, 2014), um imperdível filme (sobretudo aos pais de filhos adolescentes) de Jason Reitman. O diretor tem sensibilidade no trato com a faixa etária tematizada aqui – foi o responsável pelo encantador “Juno” (2007). Como em “Juno”, este filme tem uma pegada popular (os namoros na High School e na internet, a mãe neurótica, a filha que foge de casa para encontrar o namorado...) que mal esconde a sua profundidade. Há uma moral aqui, pois falamos da Hollywood standard, mas há também uma surpreendente alternância dos focos narrativos, que nos permite, ao final, uma leitura bem ampla daquela sociedade representada. Há, além de tudo, contidas atuações por parte de gente como Adam Sandler (popularíssimo ator, mas que raramente acerta), Jennifer Garner e dos novatos Ansel Elgort (do blockbuster teen “A culpa é das estrelas”) e Kaitlyn Dever. Para mim, a grande surpresa do gênero, em 2014. 
Do Canadá, uma única, mas notável, menção: "Mommy" (2014), de Xavier Dolan (também roteirista), com Anne Dorval, Antoine-Olivier Pilon, Suzanne Clément. Mas sobre ele eu já disse muito no post anterior, ao qual remeto o leitor
No próximo post, destaques da América Latina e da Europa.

9 comentários:

disse...

Dani, como assim você ainda não escreve profissionalmente sobre cinema? Seus artigos seriam sensacionais para publicações exclusivas, como revistas de cinema.
Muitas dicas boas neste post. Espero todos os filmes que você elogiou (em especial Boyhood!).
Beijos!

Danielle Crepaldi Carvalho disse...

Oi, Lê.

Obrigada, amiga! Então, espero um emprego desse tipo. Se você conhecer alguém de alguma revista, indica o meu blog?!
Olha, Bollywood não aparecerá aqui. Eu lamento; estava pensando nisso hoje mesmo, em como não chegam filmes de lá aos nossos cinemas, mesmo das grandes cidades. Por quê será?
Volte daqui a pouco pro próximo post!

Bjos
Dani

Vitor Costa disse...

Olá Dani, primeiramente te desejo um formidável 2015 repleto de saúde e filmes rsrs

Gostei muito da sua lista, assisti à maioria e discordo de "Interestelar". Não o considero tão medíocre assim, é claro que há seus defeitos graves. É um filme que peca pelo excesso, porém, que também possui suas qualidades e, na minha opinião, é um blockbuster arrojado que, quase se perde no seu voo, mas que se salva de ser um desastre. Talvez uma revisita à obra, suavize sua opinião.

Também discordo de "Trapaça". Na minha opinião, é um filme totalmente overrated. Visualmente belo e minimalista, porém, completamente esquecível e raso. Se não fosse pelo esforço e sintonia do elenco estrelado, a presença desse filme no Oscar seria um absurdo.

Bom, de qualquer forma, parabéns pelo excelente texto ;-)

Beijos

Danielle Crepaldi Carvalho disse...

Olá, Vitor.

Em primeiro lugar, te agradeço o comentário tão detalhado!

Você tem em parte razão quanto a "Interestelar" e a "Trapaça". Na verdade, nem achei o primeiro totalmente descartável, nem o segundo uma obra-prima. É o problema de resenharmos um filme em um parágrafo: precisamos concentrar a argumentação em linhas de força que nem sempre resultam justas. "Interestelar" não me deixou com vontade de abandonar a sala de cinema - sentimento que eu tive ao longo de "A árvore da vida", por exemplo. Mas tenho um problema com filmes pretensiosos: aquelas grandes palavras e grandes imagens em torno de uma ideia já testada com mais sucesso me aborreceram... Quanto a "Trapaça", acaba mesmo sendo uma comédia desopilante. Mas ela se quer puramente digestiva, tanto quanto grandes obras dos anos 30 e 40, como "My Man Godfrey", que se tornaram notórias por juntarem excelente elenco e timing. O filme ganha ao brincar, ao saber-se "filme", e não um compêndio filosófico, como se julga o primeiro. Mas, sim, aceito seu desafio de revisitar "Interestelar"!

Abs
Danielle

Vitor Costa disse...

Sem dúvida, "Interestelar" é pretensioso, transborda ambição narrativa, porém, de alguma forma, excessos a parte, eu enxerguei algo ali, além da idolatria das "nolansetes", além da semelhança com 2001, além da verborragia sobre o amor, algo que despertou a minha auspiciosa paixão pelo desconhecido, deve ter sido a genial trilha do Zimmer, sei lá haha
Trapaça, concordo Dani, é um desfile elegante de estrelas afiadas dentro de uma história funcional e nostálgica. Tem seus méritos, mas deveria ser tratada com a despretensão que assume e não como a obra-prima do superestimado David O. Russel.
Sempre bom expressar cinefilia com pessoas esclarecidas como você. Aliás, obrigado por me aceitar no Face, Dani :-)

Danielle Crepaldi Carvalho disse...

Oi, Vitor!

A trilha sonora é um dos pontos altos de "Interestelar", mesmo. Ah, sério que há "nolansetes"? Não sabia, mas faz sentido, considerando a nota inflada no IMDB.
Quanto a "Trapaça", concordo totalmente contigo. Ele funciona na sua despretensão. Não é obra-prima. Não houve obra-prima nesse Oscar, em minha opinião, salvo o italiano "A Grande Beleza".

É um prazer tê-lo no Face, Vitor, e falar de cinema contigo! Há pouca gente com quem a gente possa verdadeiramente falar a esse respeito, hoje em dia.

Abraços e até logo.
Danielle

ANTONIO NAHUD disse...

Excelente análise, Danny. Discordo em uma coisa ou outra. Fiquei encantado com a magia de O GRANDE HOTEL BUDAPESTE, vejo Wes Anderson como um moderno Preston Sturges. Já o filme de Jarmusch é pretensioso e vazio; grandes atores vivendo personagens ocos. A chatice de A TRAPAÇA vale por Jennifer Lawrence. Fiquei interessado em assistir AS DUAS FACES DE JANEIRO. Juntar Viggo Mortensen e Patricia Highsmith é puro frenesi! Bjs

Danielle Crepaldi Carvalho disse...

Oi, Antonio!

Obrigada, meu amigo!
Ah, eu não gostei nada de "O Grande Hotel Budapeste". Achei too much, um exagero de adereços, estrelas, cenários para pouca ideia. O problema é que não achei graça dele. E quando a gente não acha graça de comédia, aí não há o que se salve. Mas devo ter perdido a piada, porque o filme está concorrendo a uma penca de Oscars, não? Concordo que "Amantes Eternos" seja meio pretensioso. Gostei mais dele passado um tempo do que à primeira vista, aliás... "As duas faces..." é ótimo, não perca!

Bjos
Dani

Vitor Costa disse...

Dani, tive o grande deleite de contemplar uma das mais bem-sucedidas odisseias cinematográficas já realizadas, "Boyhood" é uma experiência única, é a fusão mais orgânica que já assisti entre vida e cinema. A identificação foi inevitável e extraordinária, como a própria vida é. E LinkLater, um artesão do tempo, mostrou como é grande a simplicidade, como são valiosos os detalhes de cada fase da vida, como existe beleza no cotidiano de uma família qualquer, como a minha ou a sua. Um filme que transgride, despretensiosamente, o modo de pensar cinema.
Concordo com tudo o que disse sobre esse filme Dani e espero muito que ele leve o Oscar, embora Birdman seja formidável também, mas levemente inferior. Os outros ainda não vi, mas duvido que eles superem essas duas pérolas do ano e, talvez, da década.
Beijos

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