A obra-prima teatral de Tennessee Williams “A streetcar named Desire”, que mereceu um primoroso tratamento cinematográfico em 1951 (por parte de Elia Kazan, a partir de roteiro produzido pelo autor da peça) – filme conhecido por nós como “Uma rua chamada Pecado”, título rebarbativo o qual, segundo o amigo Chico Lopes, escamoteia o “desejo” visceral, considerado pecaminoso... – pode ser agora fruída em sua versão original, em Sampa. De saída, recomendo fervorosamente a montagem paulistana, em cartaz no Tucarena. Para os apreciadores da obra de Tennessee Williams, ou não. Para aqueles que conhecem o filme de Kazan, ou não. Para aqueles que amam a Arte enquanto expressão mais alta da subjetividade humana – para além de rótulos ou delimitações artísticas, enfim.
Foto de divulgação da montagem paulistana de "Um bonde..." |
Maria Luisa Mendonça é uma de minhas atrizes preferidas, porque nela convivem a delicadeza das formas e a força da expressão. Antegozei, portanto, o prazer de vê-la neste papel que eu supunha – não me enganei – talhado para si.
Vivien Leigh e Marlon Brando no filme |
Foto de divulgação da peça |
A verborragia própria do autor vai bem com a boca de cena, onde o protagonismo é da voz e do corpo do ator. Mais ainda que no cinema, no qual o ator dissolve-se no ambiente, tomado usualmente de forma realista.
Foto de divulgação da peça |
Williams escolhe símbolos de legibilidade clara, para mais facilmente exacerbar as neuroses psíquicas de suas personagens – espelhos da nação. A inaptidão de Blanche Dubois – Branca do Bosque, como ela faz questão de informar a um pretendente seu – ao meio é patente. As tópicas da literatura romanesca brotam como sonho na peça, através dos devaneios de Blanche, mulher madura de corpo, mas com alma de mocinha Romântica – claramente inadaptada à realidade circundante. Blanche prefere a magia à realidade. O autor mergulha-a nos dejetos da corrompida sociedade norte-americana de fins dos anos 40. Aquele não era um tempo para utopias.
Foto de divulgação da peça |
Naquela época de perda das ilusões, o destino de Blanche é certo – queimar-se na própria chama, até as cinzas; até ser colhida pela insânia. Mendonça compreende bem demais a dimensão fatalista da personagem, e constrói uma Blanche arrebatada, bela, mistura ambivalente de desejo e amor pueril, de maturidade e meninice – como só podem ser as grandes personagens e as grandes atrizes. Constrói-a furiosamente, rasgando-se em cena, para que cada espectador penetre no âmago da personagem a quem ela empresta o seu corpo; corporificando com eloquência a definição que Jean Giraudoux dá ao Teatro:
O teatro é, não uma imagem da vida, mas uma manifestação da vida, e não uma manifestação anódina e cotidiana, mas uma verdadeira prova de energia dos músculos e dos sentimentos.
Ver Maria Luisa Mendonça em cena é vivenciar uma experiência estética ímpar, que durará no coração do espectador por uma eternidade. Bravíssima, branca flor!
*
A referência ao texto original de Giraudoux segue abaixo:
GIRAUDOUX, Jean. "Théâtre et Film". In: LAPIERRE, Marcel (org.) Anthologie du Cinema: rétrospective par les textes de l’art muet qui devint parlant. Paris: La Nouvelle Édition, p. 1946, p. 296-302.
Traduzi o artigo completo, a ser publicado em breve pela revista Pitágoras 500. Quando isso ocorrer, compartilho aqui o link.