Hollywood vive de se reinventar. A loja da esquina (1940) e Mensagem pra você (1998) são exemplos claros disso. Nos últimos dias, fiz o exercício assisti-los um depois do outro, a versão depois da obra original. O resultado foi uma mistura curiosa de nostalgia e de descoberta. Produtos fechados – put it in the can é uma das máximas da indústria –, os filmes reverberam, ecoam, renascem em nós como se fossem feitos da matéria das sempre-vivas. Nós continuamos a existir e, ao entregarmo-nos de tempos em tempos a eles, os ressignificamos.
Mensagem pra você (You’ve got mail, Nora Ephron, 1998) tem como cenário o Upper West Side nova-iorquino. Já A loja da esquina (The shop around the corner, Ernst Lubitsch, 1940) tem ambiência e diretor estrangeiros – passa-se em Budapeste e é dirigido por um diretor alemão. Ambos, todavia, cruzam-se muito mais do que se separam, a despeito das críticas tecidas à versão moderna, à época de sua estreia. No final das contas, os dois brotam de Hollywood, reproduzindo as estéticas das comédias românticas sacramentadas em ambas as décadas. E dialogam muito de perto com as sociedades de onde brotam, num e noutro tempo.
A loja da esquina é rodada no princípio da Segunda Grande Guerra e respinga a melancolia, os sonhos deixados em suspenso, o temor ante a volatilidade da vida próprios desses tempos – a sua dessemelhança com relação às patriotadas rodadas em momentos análogos surpreende. Ali, as existências dos apaixonados correspondentes anônimos Klara Novak (Margareth Sullavan) e Alfred Kralik (James Stewart), protagonistas da história, mistura-se àquelas dos demais funcionários da loja do patrão abusivo Hugo Matuschek, onde a história se passa. Se o filme se divide em duas partes, deslizando em curva ascensional das amarguras até os estertores da felicidade – como corresponde ao cinema standard da “Era de Ouro” de Hollywood –, o que remanesce é o sentimento oriundo à primeira parte: a demissão injustificada da personagem de James Stewart reverbera séculos de exploração lavoral, um mal ainda hoje insolúvel .
O filme é uma pequena obra-prima porque o mestre Lubitsch baixa o tom de todo o elenco, convidando o espectador a testemunhar as histórias narradas a meia-voz, entre os atendimentos dos fregueses da loja de presentes e as intervenções do Sr. Matuschek. Vertido de uma peça teatral, o roteiro não nega a sua procedência. Praticamente tudo se passa entre o interior da loja e as esquinas onde ela se situa, o suspense sendo criado por meio dos travellings dos funcionários a circularem entre o salão, o estoque e a sala do patrão. A partir dos cochichos de Alfred ao amigo, na tensão que preponderava naquele ambiente de trabalho, tomamos conhecimento do desabrochar de seu relacionamento com a dona da caixa de correio 236.
Mensagem pra você é, como o original de 1940, produto de seu tempo. Não apenas pela referência mais direta à World Wide Web, na aurora da qual ele foi rodado (é curioso observarmos que os modernos pombinhos navegam por meio da conexão discada, através da AOL, que faliria anos depois), mas pelo clima de otimismo geral no interior do qual o desenvolvimento tecnológico é apresentado. A história se passa numa Nova Iorque crescentemente mais segura, graças à atuação do prefeito Giuliani – citado textualmente –, coração cultural daquele país que marchava firme rumo ao século XXI, ignorante dos tempos lúgubres que se avizinhavam. O deslocamento temporal/geográfico se expressa bem pelo tom geral do filme, expansivo, e aqui não me refiro apenas às vozes das personagens, mas ao tom do discurso (a romantizar os grandes conglomerados, representados no filme por Tom Hanks, o carisma em pessoa), à seleção musical (uma polifonia que adere ao vintage, tão presente na memória coletiva – cristalizando-se entre o jazz efusivo e o idílio romântico), às cores cálidas (imperando a paleta do vermelho mesmo durante o mais agudo inverno nova-iorquino) e os sítios facilmente reconhecíveis de Manhattan (o cais, o Riverside Park, a Starbucks), a sublinharem o pitoresco da cidade devoradora, transformando-a numa variante do mundo de Oz.
A escala dos conflitos também é ampliada. Meg e Tom, que se conhecem graças não mais às cartas, mas aos e-mails, são agora dois adversários nos negócios – ela, proprietária de uma pequena loja de livros infantis; ele, de uma rede de grandes livrarias em franca expansão, a Fox Books. Porque não o oposto? O filme reproduz o status quo social, resvalado ao cinema industrial, de que a suavidade pertence ao âmbito feminino, e a assertividade nos negócios ao masculino. Não por outro motivo as flores preferidas da moça são as frágeis e frescas margaridas. Neste quesito, Mensagem pra você retrocede no tempo quando comparado à Loja da Esquina, no qual a agudeza é característica preponderante da mulher, e a delicadeza, do homem. Mas Lubisch era um diretor muito a frente de seu tempo.
Meg Ryan reverbera no filme a faceta principal de sua persona cinematográfica, a fragilidade; característica que a fizera amada pelas plateias dos anos 90. Com Tom Hanks ela fizera anos antes Sintonia do Amor (Sleepless in Seatle, 1993), variedade moderna de outro clássico americano, Tarde demais para esquecer (An affair to remember, 1957), e ali também ela estava distante da determinação da personagem original, levada à cena por Deborah Kerr. Os olhos verdes e os longos cabelos louros da atriz – embora mais curtos em Mensagem pra você – talhavam-na às heroínas romanescas típicas, o que Hollywood, ao invés de subverter, exaltou. Revi-a recentemente em Kate e Leopold (de James Mangold, 2001) e a sua mulher de negócios, teoricamente uma "devoradora de homens", parece a todo o momento prestes a cair em prantos, como se fosse receptáculo de todas as dores do mundo. Esta é a Meg Ryan inventada e destruída por Hollywood tão logo a idade a impediu de continuar reproduzindo o tipo. Certas coisas nunca mudam.
Voltemos à Loja da Esquina. A obra de Lubitsch tem uma vocação inegável ao teatro, da qual ela se originou. O húngaro Miklós László, autor da peça que se transformaria em filme, chega mesmo a ser explicitamente mencionado, em forma de chiste: certo funcionário da loja comemora com a esposa o fato de ele precisar fazer hora extra e ser, portanto, felizmente desincumbido de ir jantar com “os Lászlós”. O filme é um manancial de ditos espirituosos, alguns transpostos textualmente à Mensagem pra você, a exemplo de “Você tem no peito uma caixa registradora ao invés de um coração.” ou “Você não passa de um terno.” Por isso, acusaram a versão dos anos 90 de ser demasiado derivativa.
Vendo Mensagem pra você do distanciamento temporal – afinal, vão quase 20 anos desde o seu lançamento – conseguimos ressaltar o que ele tem de original e mesmo (na falta de melhor palavra) de profético. O filme traz num segundo plano um debate sobre o status dos relacionamentos interpessoais no princípio da massificação do ambiente virtual. É curioso revê-lo nesses nossos dias permeados pelas redes sociais, quando as compras pela internet ameaçam a existência de conglomerados como o de Tom Hanks, o grande vitorioso da contenda entre a “tradição” e o “progresso” encenada no filme. A diretora Nora Ephron não era boba, e redige (com Delia Ephron) um roteiro repleto de alusões cinematográficas contemporâneas e posteriores a Shop around the corner – daí a intitular a lojinha de Meg segundo o título do filme de Lubitsch, ou a inserir nele inúmeras referências à trilogia do Poderoso Chefão, perfeitas ao ambiente masculino/mafioso onde circula a personagem de Tom – a quem o sobrenome “Fox”, “Raposa”, tão bem define.
Nora tinha um desvelo quase que religioso pelos clássicos (é também dela a direção e o roteiro de Sintonia do Amor, escrito em co-autoria) dos quais depreendia não apenas os temas como a atmosfera de suas tramas. Os passeios pelas ruas de Nova Iorque, que ela soube tão bem roteirizar (outro bem acabado exemplo disso é a obra-prima Harry e Sally, também com Meg Ryan, dirigido por Rob Reiner em 1989), permeados pelo cancioneiro norte-americano, nos dão, nesses tempos espinhentos, uma saudade imensa da cidade inventada à medida dos corações nostálgicos. Mensagem pra você sustenta-se hoje como justa homenagem ao cinema clássico americano. Visto em paralelo à Loja da Esquina, explicita quão grande foi a influência da “Era de Ouro” do cinema no burilamento da produção cinematográfica de todo o século XX. E sem saber, testemunha os estertores do gênero “comédia romântica”, e o charme inescapável dos ídolos por ele criados – não apenas de Meg Ryan, minha musa absoluta da adolescência.