Um plano fechado de uma mulher idosa a testar a garganta à exaustão, como a querer botar para fora as entranhas. O rosto rubro vagarosamente readquire as cores naturais, enquanto, offscreen, ruídos análogos preenchem a cena, refletidos pelos seus olhos – pelos seus olhos e pelo seu rosto crispado, sustentados diante de nós, espectadores, com uma insistência que beira a soberba. O plano se abre, situando a protagonista em meio ao som ambiente e, enfim, ao grupo de teatro junto do qual ela realiza sucessivos exercícios que, embora aparentemente nonsense, parecem reverberar o desassossego que lhe vai na alma.
Hannah apresenta-se ao público entre gritos de ficção e giros em falso, evocando num só tempo o papel catártico/ profilático que desempenha a arte, ao criar aparências do mundo, e a essência da qual a personagem, enquanto ser de ficção, é feita: como o palíndromo de que se constrói o seu nome, cabe a si rodar em círculos, voltar-se sobre seus próprios passos.
A narrativa (dirigida por Andrea Pallaoro, autor do roteiro com Orlando Tirado) é protagonizada pela imensa Charlotte Rampling, a provar que não há limites a uma atriz. Por conta dela, damos de ombros para a ocasional falta de timing e para o excessivo erratismo da obra. A narrativa subjetiva, elíptica como o esforço da mulher de esconder – do mundo e de si mesma – o segredo em torno de seu marido recentemente aprisionado, sustenta-se graças à maestria desta atriz. Aberto às mais ínfimas nuances, o seu rosto materializa, tal e qual paisagem, o poder da arte de inventar mundos. Admirá-lo é admirar a essência do próprio cinema.
O suspense que o filme cria no que toca ao crime cometido pelo marido, que me aborreceu à primeira vista (autores vêm continuamente lançando mão da alinearidade e das lacunas, num esforço de salvar enredos frágeis), foi crescendo dentro de mim depois que saí do cinema. A subjetiva indireta que organiza a narrativa salva o roteiro da inanição. Ao olhar o mundo por meio dos olhos da personagem, a câmera coloca num primeiro plano as suas sensações, enxergando com lente de aumento, junto com Hannah, o plot que a faz girar em falso.
A história se costura entre as idas e vindas desta senhora, das aulas de teatro à casa dos patrões, onde trabalha como doméstica. Em sua casa de classe média, as primeiras interações com o marido prenunciam os desdobramentos da história: o silêncio, o companheirismo obrigatório. No outro dia, ambos se aprumam, ele despede-se do cão da família, ela o deixa na delegacia. Volta para casa, para o cão que espera o dono em vão. Tenta sem sucesso contato com o filho e o neto. Segue ao trabalho, onde os jovens patrões e o garoto cego são uma espécie de família substituta, tratando-a, os patrões, com uma distanciada politesse (a história se passa na Bélgica, e Rampling fala francês à perfeição). Ali, como em tudo, o calor humano é comedido.
Depreendemos o drama a partir dos interstícios. O filho não mais deseja ver os pais. Ficcionalizando ao marido um encontro amistoso que teria tido com rapaz, no dia do aniversário do neto, o pai diz que nunca perdoaria o filho. Mais tarde, Hannah encontra fotografias que ela olha e descarta com asco, na lixeira comum do prédio. O velho é provavelmente um pedófilo, mas o filme não se debruça sobre a questão; não se volta aos julgamentos morais, já que o que está à baila é o lugar de Hannah nesse seu mundo que se desmorona.
Um achado cinematográfico é o trabalho com a luz, a bipartição do quadro entre a obscuridade e a clareza: o jardim florido da casa dos patrões, banhado pela luz matinal, e a escuridão do closet onde a personagem guarda as roupas recém-dobradas. A escuridão já havia, na mesa da cozinha, descido sobre a personagem e o seu marido, o qual, ato-contínuo, troca a lâmpada que queimara. Hannah está todo o tempo a flertar com as luzes e as trevas, nesta circularidade que lhe é consubstancial.
É na arte que ela vislumbra alguma possibilidade de salvação. Porém, a história resvala para uma melancolia infinita. Se, entre os colegas das aulas de teatro, ela encena com o marido a separação – “Nada mais pode haver entre nós. Eis aqui a minha aliança” –, na vida real o divórcio de corpo e espírito é impossível: há a longa vida pregressa em comum, impossível de se sepultar; há o repúdio incontornável do filho.
A arte não pode oferecer senão flashes momentâneos de luz. O enredo roda em torvelinho com a personagem, e imagem mais bela disso é a sua fuga desesperada da aula de teatro, pelas escadarias circulares do metrô, até a sua chegada à plataforma. O salto no abismo, esperado, porém sustado, com que o filme se fecha, acena para o eterno recomeço – da narrativa e do desespero da personagem. E acena, por fim, para o incontornável papel da arte, tábua de salvação (às vezes demasiado rasa) diante da gratuidade da vida.
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